“O
HOMEM REAL E O HOMEM APARENTE”
Swami Vivekananda
(Conferência
dada em Nova York)
Parte
l
Nos encontramos aqui, mas nossos olhos miram para diante,
procurando ver há várias milhas de distância. O homem tem feito o
mesmo desde que começou a pensar: Olha sempre adiante, sempre mais
além. Quer saber aonde vai, mesmo depois da dissolução de seu corpo.
Têm-se proposto várias teorias; tece sistemas atrás de sistemas,
sugerindo explicações. Algumas têm sido rechaçadas, outras aceitas;
assim seguirão as coisas enquanto o homem estiver aqui. Enquanto
continuar pensando. Cada um desses sistemas contém algo da verdade.
Proponho-me explanar e resumir as investigações sobre este ponto que
foi fato na Índia. Tratarei de harmonizar os diversos conceitos que, de
tempos em tempos, apareceram entre os filósofos hindus. Procurarei,
também, harmonizar aos psicólogos e metafísicos e, se for possível,
irmana-los com os pensadores científicos modernos.
O único propósito da filosofia vedanta é indagar sobre a
unidade. À mente hindu não lhe interessa particularmente; vai sempre
atrás do geral; melhor dizendo, do universal. “Qual é aquele
conceito com o qual se conhecem todos os demais?”. Este é o tema
único. “Assim como pelo conhecimento de um torrão de argila
conhecemos tudo o que é argila, assim também, que é aquele, cujo
conhecimento nos dará o todo do universo?”. Tal é a investigação
única. Segundo os filósofos hindus, o universo inteiro pode reduzir-se
a um só material, que eles chamam “akasha”. Tudo quanto vemos ao
nosso redor, tudo o que sentimos, tocamos, provamos, é simplesmente a
manifestação diferenciada de akasha, que penetra tudo, sutil. Tudo o
que chamamos de sólidos, líquidos gases, figuras, formas ou corpos; a
terra, o sol, a lua e as estrelas, tudo se compõe deste akasha.
Que força, ao atuar sobre este akasha, fabrica com o nosso
universo? Todo poder, manifestando-se como força ou atração, mais
até, como pensamento, não é senão uma manifestação diferente do
poder único, ao que os hindus chamam “prana”, o qual, atuando sobre
akasha, está criando o universo inteiro. Ao iniciar-se um ciclo ou
período, prana dorme no oceano infinito de akasha; mantém-se imóvel,
em princípio. A ação de prana engendra movimento no oceano de akasha;
ao mover-se e vibrar prana, vão surgindo deste oceano os diversos
sistemas celestes, sóis, luas, estrelas, terra, seres humanos, animais,
plantas, assim como a manifestação das distintas forças e diversos
fenômenos.
Segundo esses filósofos, toda manifestação de poder é,
portanto, este prana; toda manifestação material é akasha. Uma vez
que este ciclo ou período chegue a seu término, tudo quanto chamamos
sólido se fundirá e tomará a forma seguinte mais fina, ou seja, a
líquida; esta, por sua vez, se fundirá na gasosa e esta em vibrações
de calor mais sutis e mais uniformes; por último, tudo voltará ao
estado original de akasha. O que agora chamamos atração, repulsão e
movimento, se reduzirá lentamente ao prana original. Diz-se que este
prana dorme, durante um período, para emergir novamente e dar nova vida
a todas essas formas e, ao término do novo ciclo, submergir-se outra
vez. Assim, este processo de criação surge e se funde, oscila para
trás e para frente. Segundo a linguagem da ciência moderna, mantém-se
estático durante um período e dinâmico em outro. Durante um tempo,
assume o estado potencial e no seguinte período, faz-se inativo. Estas
alternativas vem produzindo-se desde a eternidade.
No entanto, esta análise é só parcial. Até a ciência física
moderna sabe de tudo isso; suas investigações não podem ir mais
além; mas o interrogante fica em pé. Não descobrimos, todavia, aquilo
que, uma vez conhecido, nos fará conhecer os demais. Temos reduzido o
universo inteiro a dois elementos componentes, chamados matéria e
energia, ou seja, o que os antigos filósofos da Índia chamavam akasha
e prana; demos um passo a mais e procuremos reduzir este akasha e este
prana à sua origem. Ambos podem ser reduzidos a uma entidade, superior
até, chamada mente; têm sido produzidos na mente, de “mahat”, os
poderes mentais existentes em todo o universo. O pensamento é uma
manifestação do ser, ainda mais sutil que akasha ou prana; é ele quem
se divide para formar aqueles dois. O pensamento universal existiu desde
o princípio e se manifestou, mudou e evoluiu até converter-se nestes
dois: akasha e prana, cuja combinação produziu o universo.
Tratemos agora da psicologia. Os estou olhando; as sensações
externas me chegam pelos olhos; são levadas pelos nervos sensórios ao
cérebro. Os olhos não são os órgãos da visão; só são os
instrumentos externos; porque se destruírem em mim o órgão real, o
que transmite a sensação ao cérebro, embora tivesse vinte e oito
olhos, na poderia vê-los. A reprodução na retina seria completamente
possível, mas não os viria. Por conseguinte, os órgãos e o
instrumento, são coisas distintas. Detrás do instrumento, ou seja, os
olhos, há de haver um órgão; o mesmo ocorre nas demais sensações. O
nariz não é o sentido do olfato, senão o instrumento; por detrás
deste, acha-se um órgão.
Para cada sentido que possuímos, temos, primeiro o instrumento
externo no corpo físico e atrás deste, no mesmo corpo físico, o
órgão; não obstante, estes dois não são suficientes. Suponhamos que
enquanto estou falando com vós, me escutais com profunda atenção.
Acontece algo, digamos, soa um timbre; talvez não ouvistes tal som. Sua
vibração chega a vosso ouvido, golpeia o tímpano, é conduzido pelo
nervo ao cérebro; já que o processo foi completo e conseguiu levar o
impulso ao cérebro, por que não ouvistes? Porque faltou algo; a mente
não se conectou com o órgão. Quando a mente se separa do órgão,
embora este transmita alguma impressão, ela não a recebe; só quando
está conectada com o órgão, podeis receber as impressões que aquele
lhe transmite. Mesmo assim não se completa todo o processo. O
instrumento pode receber a sensação do exterior, os órgãos levá-la
para dentro, a mente conectar-se com o órgão e, contudo, não se
completar a percepção. Faz falta outro fator; a produção de uma
reação interna; com esta reação, vem o conhecimento. O que está
fora envia, por assim dizer, a corrente da notícia ao meu cérebro;
minha mente a toma e a apresenta ao intelecto, o qual a classifica em
relação a impressões prévias e envia uma corrente de reação e com
esta, chega a percepção. Aqui, pois, atua a vontade. O estado da mente
que reage se chama “buddhi”, o intelecto.
Não obstante, nem sequer isto tudo completa o total.
Necessitamos dar outro passo. Suponhamos que temos aqui um projetor e
também uma tela na qual estou tratando de projetar uma imagem. Que devo
fazer? Dirigir os diversos raios de luz através do projetor de maneira
que caiam sobre minha tela e se agrupem ali; é necessário projetar a
imagem sobre algo que não se mova; não podendo faze-lo sobre algo que
está em movimento, esse algo deve ser fixo, porque os raios de luz que
projetam sobre ele se movem, e estes raios de luz em movimento se
reunirão, unificarão, coordenarão e completarão sobre algo que está
fixo.
Similar é o caso com as sensações que nossos órgãos
transmitem ao interior e apresentam à nossa mente, e que esta, por sua
vez, apresenta ao intelecto. Este processo não será completo se não
há algo permanente no fundo, sobre o qual a imagem, por assim dizer,
possa reconstruir-se e nele possam unificar-se todas as impressões. Que
é a unidade do conjunto modificante de nosso ser?
Que é que mantém a identidade da coisa em movimento, momento a
momento? Sobre o que se juntam todas as nossas diferentes impressões;
sobre o que se unem, residem e formam um todo unindo nossas
percepções? Descobrimos que para servir atingir esta finalidade, há
de haver algo imóvel em relação ao corpo e a mente. A tela sobre a
qual o projetor projeta a imagem está imóvel, em relação com os
raios de luz; de outra maneira não haveria imagem. É dizer que o
expectador deve ser um individuo. Este algo sobre o qual a mente pinta
todos seus quadros, este algo sobre o qual nossas sensações
transmitidas pela mente e o intelecto se situam, agrupam e formam uma
unidade, é o que chamamos de alma do homem.
Temos visto que a mente cósmica universal é a que se divide em
akasha e prana. Em nós, mais além da mente, encontramos a alma; no
universo, atrás da mente universal, existe uma Alma e se chama Deus. No
individuo, é a alma do homem. No universo, no cosmos, da mesma maneira
que a mente universal chega a ser, por evolução, akasha e prana, vemos
também que a Alma universal mesma chega a ser, por evolução, mente.
Acontece realmente assim no homem individual? É sua mente a criadora de
seu corpo e sua alma a criadora de sua mente? Dito de outro modo, seu
corpo, sua mente e sua alma são três existências diferentes e são
três em uma, ou são estados diferentes de existência do mesmo ser
unitário? Trataremos, gradualmente, de encontrar resposta a esta
pergunta.
Já demos o primeiro passo; temos este corpo externo, atrás dos
mesmos os órgãos, a mente, o intelecto e atrás deste a alma. Neste
primeiro passo encontramos, digamos assim, que a alma está separada do
corpo, separada mesmo da mente. Aqui divergem as opiniões do mundo
religioso e pela seguinte razão: todos os pontos de vista religiosos
que se incluem na denominação geral de dualistas, sustentam que a alma
possui várias qualidades, que os sentimentos de prazer, de gozo e de
dor pertencem, realmente, à alma. Os não dualistas ou monistas negam
que a alma possua tais qualidades; afirmam que carece de qualificação.
Permitam-me que me ocupe primeiro dos dualistas e trate de
apresentar sua atitude com respeito à alma e seu destino; logo me
ocuparei do sistema que os contradiz e, finalmente, trataremos de
descobrir a harmonia que o monismo nos trará. A alma do homem, por
estar separada da mente e do corpo, uma vez que não está composta de
akasha e prana, é imortal; por que? Que entendemos por mortalidade?
Decomposição. Esta só não pode produzir-se em coisas que são o
resultado de uma composição, qualquer composto de dois ou mais
ingredientes, se decomporão. Unicamente o que não for resultado de
composição, nunca pode ser decomposto; por conseguinte, nunca pode
morrer, é imortal, existiu por toda a eternidade, não foi criado. Todo
objeto criado é simplesmente um composto, uma combinação em novas
formas de coisas pré-existentes. Nunca se viu algo criado a partir de
nada. Sendo assim, a alma do homem, por ser simples, existiu sempre e
seguirá existindo sempre. Quando este corpo cai, a alma continuará
vivendo.
Segundo os vedantistas, ao dissolver-se o corpo, as forças
vitais do homem voltam à sua mente e quando esta se dissolve, por assim
dizer, em prana e prana entra na alma do homem, esta alma sai revestida
com o que chamam de corpo sutil, o corpo mental ou espiritual, como
gosteis de chamá-lo. Neste corpo estão os samskaras do homem. Que são
os samskaras? A mente se parece com um lago e cada pensamento a uma onda
deste lago. Da mesma maneira que as ondas se levantam, logo baixam e
desaparecem, assim também essas ondas mentais se levantam na
substância mental e logo desaparecem, mas não para sempre. Fazem-se
mais e mais finas, mas estão todas ali, prontas para levantar-se
novamente, quando forem evocadas. A memória é, simplesmente, o retorno
à forma de ondas de pensamentos que passaram a um estado mais sutil de
existência. De maneira que tudo o que pensamos, cada ação realizada,
estão alojados na mente, estão ali em forma sutil. Quando o homem
morre, a soma total das impressões está na mente, a qual atua de novo
em um pouco de material sutil, como meio. A alma revestida, digamos
assim, com estas impressões e com o corpo sutil, parte e seu destino é
guiado pela resultante de todas as diferentes forças, representadas
pelas diversas impressões. Para nós, existem três metas diferentes
para a alma.
Quem está próximo da perfeição, os que muito pouca impureza
têm, vão às mais elevadas das esferas, ao brahmaloka ou esfera de
Brahma, pelos raios do sol; as pessoas de classes intermediárias que
fizeram algo bom com a idéia de ganhar o paraíso, vão aos céus da
esfera lunar e ali ocupam corpos de deuses, mas voltarão a ser humanos,
para ter outra oportunidade de alcançar a perfeição. Os muito maus
convertem-se em fantasmas e demônios e logo em animais; depois voltam a
ser homens e lhes é dada outra oportunidade para aperfeiçoarem-se.
Esta terra chama-se “karma-bhumi”, a esfera do carma.
Unicamente aqui é onde o homem cria seu carma bom ou mal. Quando o
homem quer ir ao céu e com tal fim faz boas obras, converte-se em um
deus e como tal não acumula mal carma. Simplesmente desfruta dos
efeitos das boas obras que fez na terra. E quando se esgota seu bom
carma, a força resultante de todo o mal carma acumulado anteriormente
em vida, atua sobre ele e o traz novamente a terra. Da mesma maneira os
que se convertem em fantasmas, mantém-se em tal estado, sem criar novo
carma, mas sofrem os maus resultados de suas más ações passadas e,
mais tarde, entram em um corpo animal, por um tempo, sem criar novo
carma. Terminado este período, voltam a ser homens novamente. Os
estados de recompensa ou de castigo devidos ao carma bom ou mal, estão
isentos de força para gera-lo de novo, só pode desfruta-los ou
sofre-los, segundo o caso.
O carma extraordinariamente bom e o extraordinariamente mal dão
frutos muito rapidamente. Por exemplo, se um homem fez muitas coisas
más por toda sua vida, mas fez uma boa ação, o resultado desta
aparecerá imediatamente; mas enquanto desfruta do bom efeito da mesma,
todas as más ações haverão de produzir também seus efeitos. Os
homens que realizam certos atos bons e grandes, mas levaram uma vida
não muito correta, sobrevirão deuses e depois de viver por algum tempo
em corpos de deuses e de desfrutar os poderes dos mesmos, voltarão a
ser homens; apenas se esgota a força das boas ações, surge o antigo
mal para ser pago e esgotado. Quem cometeu atos extremamente maus, tomam
corpos de fantasmas e demônios; uma vez esgotado o efeito das más
ações, a pequena boa ação que realizou, faz com que volte a ser
homem. O caminho a brahmaloka, de onde não há saída ou retorno,
chama-se “devayana”, ou seja, o caminho a Deus; o caminho ao céu é
conhecido como “pitriyana”, ou seja, o caminho aos pais.
Por conseguinte, segundo a filosofia vedanta, o homem é o maior
ser existente no universo e este mundo de trabalho é o melhor lugar no
mesmo universo, porque aqui está a melhor e maior oportunidade para
alcançar a perfeição. Os anjos e deuses, como quereis chamá-los, se
farão homens, se quiserem chegar a ser perfeitos. Esta vida humana é o
grande centro, o maravilhoso equilíbrio, a grande oportunidade.
Chegamos agora, a outro aspecto da filosofia. Há budistas que
negam toda a teoria da alma que acabo de expor. “De que serve – diz
o budista – supor algo como substrato, como fundo deste corpo e mente?
Por que não deixamos que os pensamentos continuem? Por que admitir uma
terceira substância, além deste composto de mente e corpo, uma
terceira substância chamada alma? Qual é objetivo: acaso não é o
organismo suficiente para explicar a si mesmo? Por que recorrer
novamente a uma terceira hipótese?”. Estes argumentos são
contundentes, encerram um raciocínio muito forte. Até onde a
investigação exterior alcança, este organismo leva em si sua própria
explicação; ao menos muitos de nós o vimos deste ponto de vista. Por
que, então, se necessita que haja uma alma como substrato, como algo
que não é nem mente nem corpo, senão o fundo para ambos? Deixe que
haja unicamente corpo e mente.
Corpo é o nome de uma corrente de matéria que muda
constantemente; mente é o nome de uma corrente de consciência ou de
pensamento que muda continuamente também. Que é que produz a aparente
unidade entre esses dois? Esta unidade, digamos, não existe na
realidade. Tome-se, por exemplo, uma tocha acesa e faça-a girar
rapidamente. Vamos um círculo de fogo. O círculo não existe
realmente, mas a tocha, movendo-se continuamente, produz a aparência de
círculo. De maneira que não há unidade nesta vida; é uma massa de
matéria precipitando-se continuamente para baixo, só ao conjunto desta
matéria se pode chamar unidade. O mesmo ocorre com a mente; cada
pensamento está separado de todos os demais. Só a corrente impetuosa
deixa atrás de si a ilusão de unidade; não se necessita de uma
terceira substância. Este fenômeno universal de corpo e mente é o
único que realmente existe; não há que supor nada atrás do mesmo.
Se verá que esta idéia budista tem sido adotada nos tempos
modernos por várias seitas e escolas, todas as quais a apresentam como
novo e como de sua própria invenção. Tem sido conceito central da
maioria das filosofias budistas, a saber: que este mundo basta a si
mesmo; que não necessitamos buscar fundo algum; que o único universo
que existe é o dos sentidos e que não tem objetivo a hipótese de que
algo sustenta o universo. Tudo é um conglomerado de qualidades, por que
há de haver uma substancia hipotética à qual tais qualidades sejam
inerentes? A idéia de
substância provém do rápido intercâmbio de qualidades, não de algo
imutável existente atrás delas.
Vemos quão admiráveis são alguns destes argumentos e como se
acomodam facilmente à experiência corrente dos humanos. Com efeito,
nem um entre um milhão é capaz de pensar em algo que não seja um
fenômeno. Para a imensa maioria dos homens, a natureza aparece como uma
massa de mudanças
que se modificam, giram, se combinam e se mesclam. Poucos de nós chegam
a vislumbrar o tranqüilo mar situado por detrás dessas mudanças.
Para nós forma sempre encrespadas ondas; este universo só nos parece
uma gigantesca sucessão de ondas. Encontramos, assim, estas duas
opiniões; uma, que detrás da mente e do corpo, há algo que é
substância imutável e imóvel e a outra, que não existe no universo
tal coisa, como imutabilidade e imobilidade, que tudo é mudança
e nada mais que mudança.
Para solucionar esta diferença, há que se dar um passo a mais e chegar
ao conceito não-dualista ou monista.
O sistema monista diz que o dualista está correto ao encontrar
por detrás de tudo, o fundo que não muda; não podemos conceber mudança alguma sem que haja algo que não mude.
Podemos conceber algo que mude somente conhecendo algo que mude menos;
este mesmo aparecerá mais mutável, em comparação com algo que seja
menos e assim indefinidamente, até que nos inclinamos a admitir que há
de haver algo que não muda. Esta manifestação será encontrada em um
estado de não-manifestada, em calma silenciosa, em um estado de
equilíbrio de forças opostas em que, por assim dizer, nenhuma força
atuava, pois estas só atuam quando se perturba o equilíbrio. Se temos
alguma coisa como certa, é isso. Quando o dualista afirma que há algo
que não muda, está certo, mas está equivocado em sua análise de que
é algo subjacente que não é nem o corpo, nem a mente, mas algo
separado de ambos.
Os budistas, ao dizer que o universo inteiro é uma série de
mudanças, estão perfeitamente certos, posto que enquanto me mantenha
separado do universo, enquanto me detenha a observar algo diante de mim,
enquanto haja duas coisas, o observador e o observado, o universo
parecerá mutável, mudando constantemente. Mas a realidade é que neste
universo temos às vezes mutabilidade e imutabilidade. Não é que a
alma, a mente e o corpo sejam três existências separadas; os três
constituem um só mecanismo. Uma mesma coisa aparece como corpo, como
mente e como o que está além do corpo e mente; mas não é esses três
ao mesmo tempo. Quem vê o corpo, não vê sequer a mente; quem vê a
mente não vê o que é chamado de alma; e para quem vê a alma, o corpo
e a mente se desvanecem. Quem vê movimento, unicamente, nunca vê calma
absoluta e para quem vê calma absoluta, o movimento se desvanece. Ao
confundir uma corda com uma serpente, para quem acredita na serpente, a
corda desaparecerá; uma vez que cessa o erro, vê a corda, e a serpente
se desvanece.
Só há uma existência que tudo abarca e aparece como múltiplo.
Este eu, ou alma, ou substância, é tudo quanto existe no universo. Tal
eu ou substância, ou alma é, na linguagem monista, Brahman, o qual
parece múltiplo devido a interposição de nome e forma. Observem as
ondas do mar. Nenhuma delas é realmente diferente do mar, mas o que é
que faz a onda parecer diferente? Nome e forma; a forma da onda e o nome
que lhe damos, ou seja, “onda”. Isso é o que a diferencia do mar. E
quando desaparecem o nome e a forma, fica o mesmo mar. Quem pode
estabelecer diferença real entre a onda e o mar? Dessa forma, o
universo inteiro é essa Existência única; o nome e a forma criaram
todas estas diversas diferenças.
Quando o sol brilha sobre milhões de gotículas de água, vemos
em cada partícula uma perfeita representação do sol; da mesma forma,
a alma uma, o eu único, a existência una do universo, ao refletir-se
em todas as numerosas gotas de variados nomes e formas, parecem ser
múltiplas. Mas, na realidade, é só uma. Não há nem eu, nem tu, tudo
é uno, não é tudo eu, nem tudo tu, a idéia de dualidade, de dois, é
inteiramente falsa e o universo inteiro, segundo o conhecemos
ordinariamente, é resultado desse falso conhecimento. Quando chega o
discernimento e o homem descobre que não há dois, mas um, se dá conta
que ele mesmo é este universo. “Sou eu mesmo este universo, tal como
existe agora, uma série contínua de mudanças; mais além de todas as
qualidades, o eternamente perfeito, o eternamente bendito”.
Por conseguinte, não há mais que um Atman, um Eu eternamente
puro, eternamente perfeito, imutável, inalterável. Nunca muda e todas
as mudanças do universo não são senão aparências desse Eu único.
Sobre seu nome e forma foram construídos todos estes sonhos; é
a forma o que faz a onda diferente do mar. Suponhamos que a onda se
acalme, se manterá a forma? Não, se desvanecerá. A existência da
onda depende inteiramente da existência do mar; mas esta, de maneira
alguma, depende da existência da onda. A forma se mantém enquanto a
onda persiste, mas quando esta cessa, a forma se desvanece, não pode se
manter. Este nome e essa forma são o resultado do que se chama maia.
Maia é o que faz os indivíduos, faz que uns pareçam diferentes dos
outros, contudo, maia não tem existência, não se pode dizer que
existe. Tampouco não se pode dizer que a forma exista, porque depende
da existência de outra coisa, nem se pode dizer que não exista, ao ver
que causa todas essas diferenças. Portanto, segundo a filosofia advaita,
esta maia ou ignorância (o nome e a forma ou, como se chamou na Europa,
tempo, espaço e causa) procede desta Existência infinita una,
mostrando-nos a multiplicidade deste universo; mas, em substância, este
universo é uno. Enquanto um crê que existem duas realidades
fundamentais, está equivocado. Quando chega a se dar conta de que só
existe uma, está correto.
Parte
ll
Swami Vivekananda
O leão da India