I
A Busca do Homem — A Mente Torturada — O Caminho
Tradicional — A Armadilha da Respeitabilidade — O Ente Humano e o Indivíduo — A
Batalha da Existência — A Natureza Básica do Homem — A Responsabilidade — A
Verdade — A Dissipação de Energia — A Libertação da Autoridade.
Através
das idades veio o homem buscando uma certa coisa além de si próprio, além do
bem-estar material — uma coisa que se pode chamar verdade, Deus ou realidade,
um estado atemporal — algo que não possa ser perturbado pelas circunstâncias,
pelo pensamento ou pela corrupção humana.
O
homem sempre indagou: Qual a finalidade de tudo isto? Tem a vida alguma
significação? Vendo a enorme confusão reinante na vida, as brutalidades, as
revoltas, as guerras, as intermináveis divisões dá religião, da ideologia, da
nacionalidade, pergunta o homem, com um profundo sentimento de frustração, o
que se deve fazer, o que é isso que se chama viver e se alguma coisa existe
além de seus limites.
E,
não podendo encontrar essa coisa sem nome e de mil nomes que sempre buscou, o
homem cultivou a fé — fé num salvador ou num ideal, a fé que invariavelmente
gera a violência.
Nesta
batalha constante que chamamos "viver", procuramos estabelecer um
código de conduta, conforme a sociedade em que somos criados, quer seja uma
sociedade comunista, quer uma pretensa sociedade livre; aceitamos um padrão de
comportamento como parte de nossa tradição hinduísta, muçulmana, cristã ou
outra. Esperamos que alguém nos diga o que é conduta justa ou injusta,
pensamento correto ou incorreto e, pela observância desse padrão, nossa conduta
e nosso pensar se tornam mecânicos, nossas reações, automáticas. Pode-se
observar isso muito facilmente em nós mesmos.
Durante
séculos fomos amparados por nossos instrutores, nossas autoridades, nossos
livros, nossos santos. Pedimos: "Dizei-me tudo; mostrai-me o que existe
além dos montes, das montanhas e da Terra" — e satisfazemo-nos com suas
descrições, quer dizer, vivemos de palavras, e nossas vidas são superficiais e
vazias. Não somos originais. Temos vivido das coisas que nos tem dito, ou
guiados por nossas inclinações, nossas tendências, ou impelidos a aceitar pelas
circunstâncias e o ambiente. Somos o resultado de toda espécie de influências e
em nós nada existe de novo, nada descoberto por nós mesmos, nada original,
inédito, claro.
Consoante
a história teológica garantem-nos os guias religiosos que, se observarmos
determinados rituais, recitarmos certas preces e versos sagrados, obedecermos a
alguns padrões, refrearmos nossos desejos, controlarmos nossos pensamentos,
sublimarmos nossas paixões, se nos abstivermos dos prazeres sexuais, então,
após torturar suficientemente o corpo e o espírito, encontraremos uma certa
coisa além desta vida desprezível. É isso o que tem feito, no decurso das idades,
milhões de indivíduos ditos religiosos, quer pelo isolamento, nos desertos, nas
montanhas, numa caverna, quer peregrinando de aldeia em aldeia a esmolar, quer
em grupos, ingressando em mosteiros e forçando a mente a ajustar-se a padrões
estabelecidos. Mas, a mente que foi torturada, subjugada, a mente que deseja
fugir a toda agitação, que renunciou ao mundo exterior e se tornou embotada
pela disciplina e o ajustamento — essa mente, por mais longamente que busque, o
que achar será em conformidade com sua própria deformação.
Assim,
para descobrir se de fato existe ou não alguma coisa além desta existência
ansiosa, culpada, temerosa, competidora, parece-me necessário tomarmos um
caminho completamente diferente. O caminho tradicional parte da periferia para dentro,
para, através do tempo, da prática e da renúncia, atingir gradualmente aquela
flor interior, aquela íntima beleza e amor — enfim, tudo fazer para nos
tornarmos estreitos, vulgares e falsos; retirar as camadas uma a uma; precisar
do tempo: amanhã ou na próxima vida chegaremos — e quando, afinal, atingimos o
centro, não encontramos nada, porque nossa mente se tornou incapaz, embotada,
insensível.
Após
observar esse processo, perguntamos a nós mesmos se não haverá outro caminho
totalmente diferente, isto é, se não teremos possibilidade de
"explodir" do centro.
O
mundo aceita e segue o caminho tradicional. A causa primária da desordem em nós
existente é estarmos buscando a realidade prometida por outrem; mecanicamente
seguimos todo aquele que nos garante uma vida espiritual confortável. É um fato
verdadeiramente singular esse, que, embora em maioria sejamos contrários à
tirania política e à ditadura, interiormente aceitamos a autoridade, a tirania
de outrem, permitindo-lhe deformar a nossa mente e a nossa vida. Assim, se de
todo rejeitarmos, não intelectual, porém realmente, a autoridade dita
espiritual, as cerimônias, rituais e dogmas, isso significará que estamos
sozinhos, em conflito com a sociedade; deixaremos de ser entes humanos
respeitáveis. Ora, um ente humano respeitável nenhuma possibilidade tem de
aproximar-se daquela infinita, imensurável realidade.
Começais
agora por rejeitar uma coisa que é totalmente falsa — o caminho tradicional —
mas, se o rejeitardes como reação, tereis criado outro padrão no qual vos
vereis aprisionado como numa armadilha; se intelectualmente dizeis a vós mesmo
que essa rejeição é uma idéia importante, e nada fazeis, não ireis mais longe.
Se entretanto a rejeitardes por terdes compreendido quanto é estúpida "e
imatura, se a rejeitais com alta inteligência, porque sois livre e sem medo,
criareis muita perturbação dentro e ao redor de vós, mas vos livrareis da
armadilha da respeitabilidade. Vereis então que cessou o vosso buscar. Esta é a
primeira coisa que temos de aprender: não buscar. Quando buscais, agis, com
efeito, como se estivésseis apenas a olhar vitrinas.
A
pergunta sobre se há Deus, verdade, ou realidade — ou como se queira chamá-lo —
jamais será respondida pelos livros, pelos sacerdotes, filósofos
ou salvadores. Ninguém e nada pode responder a essa pergunta, porém,
somente vós mesmo, e essa é a razão por que deveis conhecer-vos. Só há falta de
madureza na total ignorância de si mesmo. A compreensão de si próprio é o
começo da sabedoria.
E,
que é vós mesmo, o vós individual? Penso que há uma diferença entre o ente
humano e o indivíduo. O indivíduo é a entidade local, o habitante de qualquer
país, pertencente a determinada cultura, uma dada sociedade, uma certa
religião. O ente humano não é uma entidade local. Ele está em toda parte. Se o
indivíduo só atua num certo canto, isolado do vasto campo da vida, sua ação
está totalmente desligada do todo. Portanto, é necessário ter em mente que
estamos falando do todo e não da parte, porque no maior está contido o menor,
mas o menor não contém o maior. O indivíduo é aquela insignificante entidade
condicionada, aflita, frustrada, satisfeita com seus pequeninos deuses e
tradições; já o ente humano está interessado no bem-estar geral, no sofrimento
geral e na total confusão em que se acha o mundo.
Nós,
entes humanos, somos os mesmos que éramos há milhões de anos — enormemente
ávidos, invejosos, agressivos, ciumentos, ansiosos e desesperados, com
ocasionais lampejos de alegria e afeição. Somos uma estranha mistura de ódio,
medo e ternura; somos a um tempo a violência e a paz. Têm-se feito progressos,
exteriormente, do carro de boi ao avião a jato, porém, psicologicamente, o
indivíduo não mudou em nada, e a estrutura da sociedade, em todo o mundo, foi
criada por indivíduos. A estrutura social, exterior, é o resultado da estrutura
psicológica, interior, das relações humanas, pois o indivíduo é o resultado da
experiência, dos conhecimentos e da conduta do homem, englobadamente. Cada um
de nós é o depósito de todo o passado. O indivíduo é o ente humano que
representa toda a humanidade. Toda a história humana está escrita em nós.
Observai
o que realmente está ocorrendo dentro e fora de vós mesmo, na cultura de
competição em que viveis, com seu desejo de poder, posição, prestígio, nome,
sucesso etc.; observai as realizações de que tanto vos orgulhais, todo esse
campo que chamais viver e no qual há conflito em todas as formas de relação,
suscitando ódio, antagonismo, brutalidade e guerras
intermináveis. Esse campo, essa vida, é tudo o que conhecemos, e como somos
incapazes de compreender a enorme batalha da existência, naturalmente lhe temos
medo e dela tentamos fugir pelas mais sutis e variadas maneiras. Temos também
medo ao desconhecido — temor da morte, temor do que reside além do amanhã.
Assim, temos medo ao conhecido e medo ao desconhecido. Tal é a nossa vida
diária; nela, não há esperança alguma e, por conseguinte, qualquer espécie de
filosofia, qualquer espécie de teologia representa meramente uma fuga à
realidade — do que é.
Todas
as formas exteriores de mudança, produzidas pelas guerras, revoluções,
reformas; pelas leis e ideologias, falharam completamente, pois não mudaram a
natureza básica do homem e, portanto, da sociedade. Como seres humanos, vivendo
neste mundo monstruoso, perguntemos a nós mesmos: "Pode esta sociedade,
baseada na competição, na brutalidade e no medo, terminar? — terminar, não como
um conceito intelectual, como uma esperança, porém como um fato real, de modo
que a mente se torne vigorosa, nova, inocente, capaz de criar um mundo
totalmente diferente?" Creio que isso só ocorrerá se cada um de nós
reconhecer o fato central de que, como indivíduos, como entes humanos — seja
qual for a parte do universo em que vivamos, não importando a que cultura
pertençamos — somos inteiramente responsáveis por toda a situação do mundo.
Somos,
cada um de nós, responsáveis por todas as guerras, geradas pela agressividade
de nossas vidas, pelo nosso nacionalismo, egoísmo, nossos deuses, preconceitos,
ideais — pois tudo isso está a dividir-nos. E só quando percebemos, não
intelectualmente, porém realmente, tão realmente como reconhecemos que estamos
com fome ou que sentimos dor, bem como quando vós e eu percebemos que somos os
responsáveis por todo este caos, por todas as aflições existentes no mundo
inteiro, porque para isso contribuímos em nossa vida diária e porque fazemos
parte desta monstruosa sociedade, com suas guerras, divisões, sua fealdade,
brutalidade e avidez — só então poderemos agir.
Mas,
que pode fazer um ente humano, que podeis vós e que posso eu fazer para criar
uma sociedade completamente diferente? Estamos fazendo a nós mesmos uma
pergunta muito séria. É necessário fazer alguma coisa? Que podemos fazer?
Alguém no-lo dirá? Muita gente no-lo tem dito. Os chamados guias espirituais,
que supõem compreender essas coisas melhor do que nós, no-lo disseram, tentando
modificar-nos e moldar-nos em novos padrões, e isso não nos levou muito longe;
homens sofisticados e eruditos no-lo têm dito, e também eles não nos levaram
mais longe. Disseram-nos que todos os caminhos levam à verdade; vós tendes o
vosso caminho, como hinduísta, outros o tem como cristão, e outros, ainda, o
têm como muçulmano; mas, todos esses caminhos vão encontrar-se diante da mesma
porta. Isso, quando o consideramos bem, é um evidente absurdo. A verdade não
tem caminho, e essa é sua beleza; ela é viva. Uma coisa morta tem um caminho a
ela conducente, porque é estática, mas, quando perceberdes que a verdade é algo
que vive, que se move, que não tem pouso, que não tem templo, mesquita ou
igreja, e que a ela nenhuma religião, nenhum instrutor, nenhum filósofo pode
levar-vos — vereis, então, também, que essa coisa viva é o que realmente sois —
vossa irascibilidade, vossa brutalidade, vossa violência, vosso desespero, a agonia
e o sofrimento em que viveis. Na compreensão de tudo isso se encontra a
verdade. E só o compreendereis se souberdes como olhar tais coisas de vossa
vida. Mas não se pode olhá-las através de uma ideologia, de uma cortina de
palavras, através de esperanças e temores.
Como
vedes, não podeis depender de ninguém. Não há guia, não há instrutor, não há
autoridade. Só existe vós, vossas relações com outros e com o mundo, e nada
mais. Quando se percebe esse fato, ou ele produz um grande desespero, causador
de pessimismo e amargura; ou, enfrentando o fato de que vós e ninguém mais sois
o responsável pelo mundo e por vós mesmo, pelo que pensais, pelo que sentis,
pela maneira como agis, desaparece de todo a autocompaixão. Normalmente,
gostamos de culpar os outros, o que é uma forma de autocompaixão.
Poderemos,
então, vós e eu, promover em nós mesmos — sem dependermos de nenhuma influência
exterior, de nenhuma persuasão, sem nenhum medo de punição — poderemos promover
em nossa própria essência uma revolução total, uma mutação psicológica, para
que não sejamos mais brutais, violentos,
competidores, ansiosos, medrosos, ávidos, invejosos — enfim, todas as
manifestações de nossa natureza que formaram a sociedade corrompida em que vivemos
nossa vida de cada dia?
Importa
compreender desde já que não estou formulando nenhuma filosofia ou estrutura de
idéias ou conceitos teológicos. Todas as ideologias se me afiguram totalmente
absurdas. O importante não é uma filosofia da vida, porém que observemos o que
realmente está ocorrendo em nossa vida diária, interior e exteriormente. Se
observardes muito atentamente o que se está passando, se o examinardes, vereis
que tudo se baseia num conceito intelectual. Mas o intelecto não constitui o
campo total da existência; ele é um fragmento, e todo fragmento, por mais
engenhosamente ajustado, por mais antigo e tradicional que seja, continua a ser
uma parte insignificante da existência, e nós temos de interessar-nos pela
totalidade da vida. Quando consideramos o que está ocorrendo no mundo,
começamos a compreender que não há processo exterior nem processo interior; há
só um processo unitário, um movimento integral, total, sendo que o movimento
interior se expressa exteriormente, e o movimento exterior, por sua vez, reage
ao interior. Ser capaz de olhar esse fato — eis o que é necessário, só isso;
porque, se sabemos olhar, tudo se torna claríssimo. O ato de olhar não requer
nenhuma filosofia, nenhum instrutor. Ninguém precisa ensinar-vos como
olhar. Olhais, simplesmente.
Assim,
vendo todo esse quadro, vendo-o não verbalmente porém realmente, podeis
transformar-vos, natural e espontaneamente? Esse é que é o verdadeiro problema.
Será possível promover uma revolução completa na psique?
Eu
gostaria de saber qual é a vossa reação a uma pergunta dessas. Direis,
porventura: "Não desejo mudar" — e a maioria das pessoas não o
deseja, principalmente aqueles que se acham em relativa segurança, social e
economicamente, ou que conservam crenças dogmáticas e se satisfazem em aceitar
a si próprios e às coisas tais como são ou em forma ligeiramente modificada.
Tais pessoas não nos interessam. Ou talvez digais, mais sutilmente: "Ora,
isso é dificílimo, está fora do meu alcance". Nesse caso, já fechastes o
caminho, já cessastes de investigar e será completamente inútil prosseguir. Ou,
ainda, direis: "Percebo a necessidade de uma transformação interior,
fundamental, em mim mesmo, mas como empreendê-la? Peço-vos me mostreis o
caminho, me ajudeis a alcançá-la". Se assim falardes, então o que vos
interessa não é a transformação em si, não estais realmente interessado numa
revolução fundamental: estais, meramente, a buscar um método, um sistema capaz
de efetuar a mudança.
Se
fôssemos tão sem juízo que vos déssemos um sistema, e vós tão sem juízo que o
seguísseis, estaríeis meramente a copiar, a imitar, a ajustar-vos, a aceitar,
e, fazendo tal coisa, teríeis estabelecido em vós mesmo a autoridade de outrem,
do que resultaria conflito entre vós e essa autoridade. Pensais que deveis
fazer tal e tal coisa porque vo-la mandaram fazer e, no entanto, sois incapaz
de fazê-la. Tendes vossas peculiares inclinações, tendências e pressões, que
colidem com o sistema que julgais dever seguir e,' por conseguinte, existe uma
contradição. Levareis, assim, uma vida dupla, entre a ideologia do sistema e a
realidade de vossa existência diária. No esforço para ajustar-vos à ideologia,
recalcais a vós mesmo e, no entanto, o que é realmente verdadeiro não é a
ideologia, porém aquilo que sois. Se tentardes estudar-vos de acordo com
outrem, permanecereis sempre um ente humano sem originalidade.
O
homem que diz: "Desejo mudar, dizei-me como consegui-lo" — parece
muito atento, muito sério, mas não o é. Deseja uma autoridade que ele espera
estabelecerá a ordem nele próprio. Mas, pode algum dia a autoridade promover a
ordem interior? A ordem imposta de fora gera sempre, necessariamente, a
desordem. Podeis perceber essa verdade intelectualmente, mas sereis capaz de
aplicá-la de maneira que vossa mente não mais projete qualquer autoridade — a
autoridade de um livro, de um instrutor, da esposa ou do marido, dos pais, de
um amigo, ou da sociedade? Como sempre funcionamos segundo o padrão de uma
fórmula, essa fórmula torna-se em ideologia e autoridade; mas, assim que
perceberdes realmente que- a pergunta "como mudar?" cria uma nova
autoridade, tereis acabado com a autoridade para sempre.
Repitamo-lo
claramente: Veio que tenho de mudar completamente, desde as raízes de meu ser;
não posso mais depender de nenhuma tradição, porque foi a tradição que criou
essa colossal indolência, aceitação
e obediência; não posso
contar com outrem para me ajudar a mudar, com nenhum instrutor, nenhum
deus, nenhuma crença, nenhum sistema, nenhuma pressão ou influência
externa. Que sucede então?
Em
primeiro lugar, podeis rejeitar toda autoridade? Se podeis, isso significa que
já não tendes medo. E então que acontece? Quando rejeitais algo falso que
trazeis convosco há gerações, quando largais uma carga de qualquer espécie, que
acontece? Aumentais vossa energia, não? Ficais com mais capacidade, mais
ímpeto, maior intensidade e vitalidade. Se não sentis isso, nesse caso não
largastes a carga, não vos livrastes do peso morto da autoridade.
Mas,
uma vez vos tenhais livrado dessa carga e tenhais aquela energia em que não há
medo de espécie alguma — medo de errar, de agir incorretamente — essa própria
energia não é então mutação? Necessitamos de grande abundância de energia, e a
dissipamos com o medo; mas, quando existe a energia que vem depois de nos
livrarmos de todas as formas do medo, essa própria energia produz a revolução
interior, radical. Nada tendes que fazer nesse sentido.
Ficais
então a sós com vós mesmo, e esse é o estado real que convém ao homem que
considera a sério estas coisas. E como já não contais com a ajuda de nenhuma
pessoa ou coisa, estais livre para fazer descobertas. Quando há liberdade, há
energia; quando há liberdade, ela não pode fazer nada errado. A liberdade
difere inteiramente da revolta. Não há agir correta ou incorretamente, quando
há liberdade. Sois livre e, desse centro, agis. Por conseguinte, não há medo, e
a mente sem medo é capaz de infinito amor. E o amor pode fazer o que quer.
O que
agora vamos fazer, por conseguinte, é aprender a conhecer-nos, não de acordo
comigo ou de acordo com um certo analista ou filósofo; porque, se o fazemos de
acordo com outras pessoas, aprendemos a conhecer essas pessoas e não a nós
mesmos. Vamos aprender o que somos realmente.
Tendo
percebido que não podemos depender de nenhuma autoridade exterior para promover
a revolução total na estrutura de nossa própria psique, apresenta-se a
dificuldade infinitamente maior de rejeitarmos nossa própria autoridade
interior, a autoridade de nossas próprias e insignificantes experiências e
opiniões acumuladas, conhecimentos, idéias e ideais. Digamos que tivestes ontem
uma experiência que vos ensinou algo, e isso que ela ensinou se torna uma nova
autoridade, e vossa autoridade de ontem é tão destrutiva quanto a autoridade de
um milhar de anos. A compreensão de nós mesmos não requer nenhuma autoridade,
nem a do dia anterior nem a de há mil anos, porque somos entidades vivas,
sempre em movimento, sempre a fluir e jamais se detendo. Se olhamos a nós
mesmos com a autoridade morta de ontem, nunca compreenderemos o movimento vivo
e a beleza e natureza desse movimento.
Livrar-se
de toda autoridade, seja própria, seja de outrem, é morrer para todas as coisas
de ontem — para que a mente seja sempre fresca, sempre juvenil, inocente, cheia
de vigor e de paixão. Só nesse estado é que se aprende e observa. Para tanto,
requer-se grande capacidade de percebimento, de real percebimento do que se
está passando no interior de vós mesmo, sem corrigirdes o que vedes, nem
dizerdes o que deveria ou não deveria ser. Porque, tão logo corrigis, estais
estabelecendo outra autoridade, um censor.
Vamos,
pois, investigar juntos a nós mesmos; ninguém ficará explicando enquanto ides
lendo, concordando ou discordando do explicador ao mesmo tempo que ides
seguindo as palavras do texto, porém vamos fazer juntos uma viagem, uma viagem
de exploração dos mais secretos recessos de nossa mente. Para empreender essa
viagem, precisamos estar livres; não podemos transportar uma carga de opiniões,
preconceitos e conclusões — todos os trastes imprestáveis que juntamos no
decurso dos últimos dois mil anos ou mais. Esquecei-vos de tudo o que sabeis a
respeito de vós mesmo. Esquecei-vos de tudo o que pensastes a vosso respeito;
vamos iniciar a marcha como se nada soubéssemos.
A
noite passada choveu torrencialmente e agora o céu está começando a limpar-se;
é um dia novo, fresco. Encontremo-nos com este dia novo como se fosse nosso
único dia. Iniciemos juntos a jornada, deixando para trás todas as lembranças
de ontem, e comecemos a compreender-nos pela primeira vez.
II
O Aprender a Conhecer-se — A Simplicidade e a
Humildade — O Condicionamento.
Se
considerais importante conhecerdes a vós mesmo só porque eu ou outro disse que
é importante, receio então que esteja terminada toda comunicação entre nós.
Mas, se concordamos ser de vital importância compreendermos a nós mesmos,
totalmente, torna-se então diferente a relação entre vós e mim e poderemos
explorar juntos, fazer com agrado uma investigação cuidadosa e inteligente.
Eu
não vos exijo fé; não me estou arvorando em autoridade. Nada tenho para
ensinar-vos — nenhuma filosofia nova, nenhum sistema novo, nenhum caminho novo
para a realidade; não há caminho para a realidade, como não o há para a
verdade. Toda autoridade, de qualquer espécie que seja, sobretudo no campo do
pensamento e da compreensão, é a coisa mais destrutiva e danosa que existe. Os
guias destroem os seguidores, e os seguidores destroem os guias. Tendes de ser
vosso próprio instrutor e vosso próprio discípulo. Tendes de questionar tudo o
que o homem aceitou como valioso e necessário.
Se
não seguis alguém, vos sentis muito solitário. Ficai solitário, pois. Porque
tendes medo de ficar só? Porque vos defrontais com vós mesmo, tal como sois, e
descobris que sois vazio, embotado, estúpido, repulsivo, pecador, ansioso — uma
entidade insignificante, sem originalidade. Enfrentai o fato; olhai-o e não
fujais dele. Tão logo começais a fugir, começa a existir o medo. Ao
investigar-nos não nos estamos isolando do resto do mundo. Não se trata de um
processo mórbido. O homem, em todo o mundo, se vê enredado nos mesmos problemas
diários, tal como nós, e, assim, investigando a nós mesmos, não estamos de modo
nenhum procedendo como neuróticos, porque não há diferença entre o individual e
o coletivo. Este é um fato real. Criei o mundo tal como sou. Portanto, não nos
desorientemos nesta batalha entre a parte e o todo.
Tenho
de estar cônscio de todo o campo de meu próprio ser, que é constituído da
consciência individual e social. É só quando a mente transcende a consciência
individual e social, que posso tornar-me a luz de mim mesmo, a luz que nunca se
apaga.
Pois
bem; onde começarmos a compreender a nós mesmos? Aqui estou eu, e como é que
vou estudar-me, observar-me, ver o que realmente está sucedendo em meu
interior? Só posso observar-me em relação, porque a vida é toda de relação. De
nada serve ficar sentado num canto a meditar sobre mim mesmo. Não posso existir
sozinho. Só existo em relação com pessoas, coisas e idéias e, estudando minha
relação com as pessoas e coisas exteriores, assim como com as interiores,
começo a compreender a mim mesmo. Qualquer outra forma de compreensão é mera
abstração, e não posso estudar-me abstratamente; não sou uma entidade abstrata;
por conseguinte, tenho de estudar-me na realidade concreta — assim como sou, e
não como desejo ser.
A
compreensão não é um processo intelectual. A aquisição de conhecimentos a vosso
próprio respeito e o aprendizado de vós mesmo são duas coisas diferentes,
porque o conhecimento que a vosso respeito acumulais é sempre do passado, e à
mente que leva a carga do passado é uma mente lamentável. O aprendizado de vós
mesmo não é como o aprendizado de uma língua, uma técnica ou uma ciência; neste
último caso, naturalmente, tendes de acumular e memorizar, pois seria absurdo
voltar sempre de novo ao começo. Mas, no campo psicológico, o aprendizado de
vós mesmo está sempre no presente, ao passo que o conhecimento está sempre no
passado e, como a maioria de nós vive no passado e está satisfeita com o
passado, o conhecimento se torna sumamente importante para nós. É por essa
razão que endeusamos o homem erudito, talentoso, sagaz. Mas, se estais
aprendendo a todo momento, a cada minuto, aprendendo pelo observar e pelo
escutar, aprendendo pelo ver e atuar, vereis então que o aprender é um
movimento infinito, sem o passado.
Se
dizeis que aprendereis a conhecer-vos gradualmente, acrescentando sempre mais
alguma coisa, pouco a pouco, não vos estais estudando agora como sois, porém
por meio do conhecimento adquirido. O aprender requer muita sensibilidade. Não
há sensibilidade se existe alguma idéia, que é do passado, dominando o
presente. A mente já não é então ágil, flexível, alertada. A maioria de nós não
é sensível, nem mesmo fisicamente. Comemos em excesso, sem nos importarmos com
o regime mais adequado; abusamos do fumo e da bebida, e, dessa maneira, o nosso
corpo se torna pesado e insensível; a capacidade de atenção do próprio
organismo se embota. Como pode haver uma mente muito alertada, sensível, clara,
se o próprio organismo está embotado e pesado? Podemos ser sensíveis a certas
coisas que nos atingem particularmente, mas, para sermos completamente
sensíveis a tudo o que decorre das exigências da vida, não deve haver separação
entre o organismo e a psique. Trata-se
de um movimento total.
Para
compreendermos qualquer coisa, temos de viver com ela, observá-la, conhecer-lhe
todo o conteúdo, a natureza, a estrutura, o movimento. Já experimentastes viver
com vós mesmos? Se o experimentardes, começareis a ver que "vós" não
sois uma entidade estática, porém uma coisa vigorosa, viva. E, para poder viver
com uma coisa viva, vossa mente também tem de estar viva. Não pode, porém,
estar viva, se está enredada em opiniões, juízos e valores.
Para
observardes o movimento de vossa mente e de vosso coração, de vosso ser inteiro,
necessitais de uma mente livre; e não de uma mente que concorda e discorda, que
toma partido numa discussão, disputando por causa de meras palavras, porém que
acompanha a discussão com a intenção de compreender. Isso é dificílimo, porque
não sabemos olhar nem escutar o nosso próprio ser, assim como não sabemos olhar
a beleza de um rio, ou escutar o murmúrio da brisa entre as árvores.
Quando
condenamos ou justificamos, não podemos ver com clareza, e também
não podemos fazê-lo
quando nossa mente está a
tagarelar incessantemente; não observamos então o que é; só olhamos nossas
próprias "projeções". Temos,
cada um de nós, uma imagem do que pensamos ser ou deveríamos ser, e essa
imagem, esse retrato, nos impede inteiramente de vermos a nós mesmos como
realmente somos.
Uma
das coisas mais difíceis do mundo é olharmos qualquer coisa com simplicidade.
Como nossa mente é muito complexa, perdemos a simplicidade. Não me refiro à
simplicidade no vestir ou no comer, no usar apenas uma tanga ou bater um recorde
de jejum, ou qualquer outra das absurdas infantilidades que os santos praticam;
refiro-me àquela simplicidade que nos torna capazes de olhar as coisas
diretamente e sem medo, capazes de olhar a nós mesmos sem nenhuma deformação,
de dizer que mentimos quando mentimos e não esconder o fato ou dele fugir.
Outrossim,
para compreendermos a nós mesmos, necessitamos de muita humildade. Se começais
dizendo: "Eu me conheço" — já travastes o processo do
auto-aprendizado; ou, se dizeis "Não há muito que aprender a meu respeito,
porque sou apenas um feixe de memórias, idéias, experiências e tradições"
— tereis também parado o processo de aprendizado a vosso próprio respeito. No
momento em que alcançais qualquer alvo, perdeis o atributo da inocência e da
humildade; no momento em que chegais a uma conclusão ou começais a examinar com
base no conhecimento, está tudo acabado, porque então estais traduzindo tudo o
que é vivo em termos do velho. Mas se, ao contrário, não tendes nenhum ponto de
apoio, nenhuma certeza, nenhuma perfeição, estais em liberdade para olhar, e
quando olhais uma coisa em liberdade, ela é sempre nova. Um homem seguro de si
é um ente morto.
Mas,
como ser livre para olhar e aprender, quando nossa mente, da hora do nascimento
à hora da morte, é moldada, por uma determinada cultura, no estreito padrão do
"eu"? Há séculos vimos sendo condicionados pela nacionalidade, a
casta, a classe, a tradição, a religião, a língua, a educação, a literatura, a
arte, o costume, a convenção, a propaganda de todo gênero, a pressão econômica,
a alimentação que tomamos, o clima em que vivemos, nossa família, nossos
amigos, nossas experiências — todas as influências possíveis e imagináveis — e,
por conseguinte, nossas reações a cada problema são condicionadas.
Percebeis
que estais condicionado? Esta é a primeira coisa que deveis perguntar a vós
mesmo, e não como vos libertardes do condicionamento. Pode ser que nunca vos
livrareis dele, e se disserdes "Preciso livrar-me dele", podereis
cair noutra armadilha, noutra forma de condicionamento. Assim, percebeis que
estais condicionado? Sabeis que até mesmo quando olhais uma árvore e dizeis
"Aquela árvore é uma figueira" ou "Aquela árvore é um
carvalho", o dar nome à árvore, que é conhecimento botânico, de tal maneira
vos condiciona a mente que a palavra se interpõe entre vós e o real
percebimento da árvore? Para entrardes em contato com a árvore tendes de
tocá-la com a mão, e a palavra não vos ajudará a tocá-la.
Como
podeis saber que estais condicionado? Que é que vos diz isso? Que é que vos diz
que estais com fome? — não como teoria, porém o fato real da fome? Do mesmo
modo, como é que descobris o fato real de que estais condicionado? Pela vossa
reação a um problema, a um desafio, não é? Reagis a cada desafio segundo o
vosso condicionamento e como vosso condicionamento é inadequado reagirá sempre
inadequadamente.
Quando
vos tornais cônscio dele, esse condicionamento de raça, de religião e cultura
vos faz sentir aprisionado? Considerai uma única modalidade de condicionamento,
a nacionalidade, considerai-a seriamente, com pleno percebimento, para verdes
se vos agrada ou se vos revolta, e se vos revolta, se sentis vontade de
libertar-vos de todo condicionamento. Se vosso condicionamento vos satisfaz, é
óbvio que nada fareis a respeito dele; mas, se não vos sentis satisfeito ao vos
tornardes cônscio dele, percebereis que nunca fazeis coisa alguma sem ele.
Nunca Por conseguinte, estais sempre vivendo no passado, com os mortos.
Só
percebereis por vós mesmo o quanto estais condicionado quando se manifestar um
conflito na continuidade do prazer ou na fuga à dor. Se tudo ao redor de vós
decorre de maneira perfeitamente feliz, vossa esposa vos ama, vós a amais,
tendes uma bonita casa, filhos interessantes e dinheiro à farta, nesse caso não
estais cônscio de vosso condicionamento. Mas, quando surge uma perturbação,
quando vossa esposa olha para outro homem, ou perdeis vossa fortuna, ou vos
vedes ameaçado pela guerra ou qualquer outra coisa que cause dor ou ansiedade —
então sabeis que estais condicionado. Quando lutais contra uma perturbação
qualquer ou vos defendeis de uma dada ameaça exterior ou interior, sabeis então
que estais condicionado. E, como a maioria se vê perturbada na maior parte do
tempo, seja superficialmente, seja profundamente, essa nossa própria
perturbação indica que estamos condicionados. Enquanto um animal é mimado,
reage agradavelmente, mas no momento em que se vê hostilizado, toda a violência
de sua natureza se revela.
Vemo-nos
perturbados a respeito da vida, da política, da situação econômica, do horror,
da brutalidade e do sofrimento existentes tanto no mundo como em nós mesmos, e
essa perturbação nos revela quão estreitamente condicionados estamos. Que
devemos fazer? Aceitar a perturbação e ir vivendo com ela, como o faz a maioria
dos homens? Acostumar-nos com ela, assim como nos acostumamos com uma dor nas
costas? Conformar-nos com ela?
É
tendência de todos nós conformar-nos com as coisas, acostumar-nos com elas,
delas culpando as circunstâncias. "Ah, se as coisas estivessem correndo
bem, eu seria diferente", dizemos, ou "Dai-me a oportunidade e eu me
preencherei", ou "Esmaga-me a injustiça de tudo isso" — sempre a
culparmos das nossas perturbações os outros ou o nosso ambiente ou a situação
econômica.
Se
nos acostumamos com a perturbação, isso significa que nossa mente se embota,
assim como uma pessoa pode acostumar-se de tal maneira com a beleza que a
cerca, que nem a nota mais. Tornamo-nos indiferentes, calejados, insensíveis, e
nossa mente se embota mais e mais. Se não podemos acostumar-nos com a
perturbação, dela tratamos de fugir, recorrendo a uma certa droga, ou
ingressando num partido político, bradando, escrevendo, assistindo a uma
partida de futebol, indo a uma igreja ou templo, ou procurando outro tipo de
divertimento.
Por
que razão fugimos dos fatos reais? Temos medo da morte — isso apenas para
exemplo — e inventamos teorias, esperanças e crenças de toda espécie, para
disfarçarmos o fato da morte, mas esse fato continua existente. Para
compreendermos um fato cumpre olhá-lo e não fugir dele. Em geral, temos tanto
medo do viver como do morrer. Temos medo de nossa família, da opinião pública,
de perder nosso emprego, nossa segurança, medo de centenas de outras coisas. O
fato simples é que temos medo, e não que temos medo disto ou daquilo. Mas, porque é que não podemos enfrentar esse
fato?
Só
podemos enfrentar um fato no presente; mas, se nunca o deixais estar presente,
porque estais sempre a fugir dele, nunca podereis enfrentá-lo, e, tendo criado
uma verdadeira rede de fugas, estamos dominados pelo hábito da fuga.
Ora,
se sois sensível, sério, por pouco que seja, não só estareis cônscio de vosso
condicionamento, mas também dos perigos dele decorrentes, da brutalidade e do
ódio a que ele conduz. Por que então, se estais vendo o perigo de vosso
condicionamento, não agis? É por que sois indolente? Indolência é falta de
energia; entretanto, não vos faltará energia em presença de um perigo físico
imediato — uma serpente no vosso caminho, um precipício, um incêndio. Por que
então não agis ao verdes o perigo de vosso condicionamento? Se vísseis o perigo
do nacionalismo para vossa própria segurança, não agiríeis?
A
resposta é que não vedes. Por um processo intelectual de análise podeis ver que
o nacionalismo leva à autodestruição, mas nisso não há nenhum conteúdo
emocional. Só quando há esse conteúdo emocional, tendes vitalidade.
Se
vedes o perigo de vosso condicionamento como um mero conceito intelectual,
jamais fareis coisa alguma em relação a ele. No perceber um perigo como uma mera
idéia, há conflito entre a idéia e a ação e esse conflito tira-vos a energia.
Só quando vedes o condicionamento e o seu perigo imediatamente, tal como vedes
um precipício, é só então que agis; portanto, ver é agir.
A
maioria de nós percorre a vida desatentamente, reagindo sem pensar, de acordo
com o ambiente em que fomos criados, e tais reações só acarretam mais servidão,
mais condicionamento; mas, no momento em que aplicardes toda a atenção ao vosso
condicionamento, ver-vos-eis inteiramente livres do passado; ele se desprenderá
naturalmente de vós.
III
A Consciência — A Totalidade da Vida — O Percebimento
Ao
vos tornardes cônscio do vosso condicionamento compreendereis a totalidade de
vossa consciência. A consciência é o campo total onde funciona o pensamento e
existem as relações. Todos os motivos, intenções, desejos, prazeres, temores,
inspiração, anseios, esperanças, dores, alegrias, se encontram nesse campo. Mas
nós dividimos a consciência em ativa e latente, em nível superior e nível
inferior; quer dizer, na superfície todos os pensamentos, sentimentos e
atividades de cada dia e, abaixo deles, o chamado subconsciente, as coisas que
não nos são familiares, que ocasionalmente se expressam por meio de certas
sugestões, intuições e sonhos.
Ocupamo-nos
com um pequeno canto da consciência, que constitui a maior parte de nossa vida;
quanto ao resto, a que chamamos subconsciente, com todos os seus motivos,
temores, atributos raciais e hereditários, não sabemos sequer como penetrá-lo.
Agora, pergunto-vos: Existe mesmo tal coisa — o subconsciente? Empregamos muito
livremente essa palavra. Admitimos que essa coisa existe e todas as frases e
terminologias dos analistas e psicólogos se insinuaram na nossa linguagem; mas,
existe ela? E, por que razão lhe atribuímos tamanha importância? A mim ela
parece tão trivial e estúpida como a mente consciente, tão estreita, tão
fanática, condicionada, ansiosa e sem valor quanto ela.
Assim,
será possível ficarmos completamente cônscios de todo o campo da consciência e
não meramente de uma parte, de um fragmento? Se puderdes tornar-vos cônscio da
totalidade, agireis sempre com vossa atenção total e não com uma atenção
parcial. Importa compreender isso, porque, quando se está cônscio de todo o
campo da consciência, não há atrito. Quando se divide a consciência — toda ela
constituída de pensamento, sentimento e ação — em diferentes níveis, é então
que há atrito.
Vivemos
de maneira fragmentária. No escritório somos uma coisa, em casa somos outra
coisa; falais de democracia e, no íntimo, sois autocrata; falais em amor ao
próximo e ao mesmo tempo o estais matando na competição; uma parte de vós está
ativa, a olhar, independentemente da outra. Estais cônscio dessa existência
fragmentária em vós mesmo? E será possível ao cérebro, que dividiu o seu
próprio funcionamento, o seu próprio pensar em fragmentos, tornar-se cônscio do
campo inteiro? É possível olharmos o todo da consciência completa e totalmente,
o que significa sermos entes humanos totais?
Se, a
fim de compreender a estrutura total do "eu", de extraordinária
complexidade, procederdes passo a passo, descobrindo camada por camada,
examinando cada pensamento, sentimento e_ motivo, ver-vos-eis todo enredado no
processo analítico, que vos levará semanas, meses, anos; e quando admitimos o
tempo no processo da autocompreensão, temos de estar preparados para toda
espécie de deformação, porquanto o "eu" é uma entidade complexa, que
se move, vive, luta, deseja, nega; sujeita a pressões e tensões de toda
espécie, que nela atuam continuamente. Descobrireis, assim, por vós mesmo, que
não é esse o caminho que deveis seguir; compreendereis que a única maneira de
olhardes a vós mesmo é fazê-lo totalmente, imediatamente, fora do tempo; e só
podeis ver a totalidade de vós mesmo quando a mente não está fragmentada. O que
vedes em sua totalidade é a verdade.
Mas,
sois capaz disso? A maioria não o é, porque nunca nos abeiramos do problema com
seriedade, porque na realidade nunca olhamos a nós mesmos. Nunca! Lançamos a
culpa a outros, satisfazemo-nos com explicações, ou temos medo de olhar. Mas,
quando olhardes totalmente, aplicareis toda a vossa atenção, todo o vosso ser,
tudo o que tendes, vossos olhos, vossos ouvidos, vossos nervos; estareis atento
com o mais completo auto-abandono e não haverá então mais lugar para o medo,
para a contradição e, por conseguinte, não haverá mais conflito.
Atenção
não é a mesma coisa que concentração. A concentração é exclusão; a atenção é
percebimento total, que nada exclui. A maioria de nós não me parece estar
cônscia, não só do que estamos dizendo aqui, mas também de nosso ambiente, das
cores que nos rodeiam, das pessoas, da forma das árvores, das nuvens, do
movimento da água. Isso acontece, talvez, porque estamos tão interessados em
nós mesmos, em nossos insignificantes problemas, nossas próprias idéias, nossos
prazeres, ocupações e ambições, que não podemos ficar objetivamente cônscios.
Entretanto, muito se fala de percebimento. Certa vez, na índia, eu viajava de
automóvel. Um motorista conduzia o carro, e eu ia sentado a seu lado. Atrás,
três homens discutiam com muito ardor sobre o percebimento, fazendo-me de vez
em quando perguntas sobre o assunto. Naquele momento, o motorista, que estava a
olhar para outra parte, infelizmente, atropelou uma cabra, e aqueles três homens
prosseguiram na discussão sobre o percebimento, completamente alheios ao
atropelamento da cabra. Quando essa falta de atenção lhes foi apontada, os três
cavalheiros, que tanto se empenhavam em estar atentos, demonstraram grande
surpresa.
A
mesma coisa acontece com a maioria de nós. Não estamos conscientes nem das
coisas exteriores nem das interiores. Se desejais compreender a beleza de uma
ave, de uma mosca, de uma folha, de uma pessoa, com todas as suas
complexidades, tendes de dispensar-lhe toda a vossa atenção — e isso é
percebimento. E só podeis dar toda a atenção quando tendes zelo, quer dizer,
quando amais realmente o compreender; aplicais então ao descobrimento todo o
vosso coração e toda a vossa mente.
Esse
percebimento é coisa semelhante a viverdes com uma serpente em vosso quarto;
observais cada um dos seus movimentos, sois altamente sensível a cada ruído que
ela produz. Um tal estado de atenção é energia total; nesse percebimento se
revela instantaneamente a totalidade de vós mesmo.
Ao
vos olhardes dessa maneira profunda, podeis descer mais fundo ainda. Empregando as palavras "mais
fundo" não estamos fazendo comparação. Nós pensamos comparativamente —
profundo e superficial, feliz e infeliz. Estamos sempre a medir, a comparar.
Mas, será que existe em alguém mesmo tal estado — o superficial e o profundo?
Quando digo "minha mente é superficial, mesquinha, estreita,
limitada" — como sei dessas coisas? Porque comparei minha mente com vossa
mente, que é mais brilhante, tem mais capacidade, é mais inteligente e
alertada. Posso conhecer minha pequenez sem comparação? Quando sinto fome, não
comparo essa fome com a fome que ontem senti. A fome de ontem é uma idéia, uma
lembrança.
Se
estou sempre a medir-me por vós, a esforçar-me para ser igual a vós, estou
então negando a mim mesmo. Por conseguinte, estou criando uma ilusão. Ao
compreender que a comparação, em qualquer forma, só leva a uma ilusão e um
sofrimento maiores ainda (tal como acontece quando analiso a mim mesmo,
aumentando o meu conhecimento pouco a pouco, ou identificando-me com algo fora
de mim mesmo — o Estado, um salvador ou uma ideologia), ao compreender que
todos esses processos só levam a mais ajustamento e conflito, abandono toda
comparação. Minha mente já não está a buscar. Muito importa compreender isso.
Minha mente já não está então a tatear, a buscar, a indagar. Isso não significa
estar satisfeito com as coisas como são, porém, sim, que a mente não tem ilusão
nenhuma. Pode então mover-se numa dimensão totalmente diferente. A dimensão na
qual vivemos nossa vida cotidiana, de dor, de prazer, de medo, condiciona a
mente, limita-lhe a natureza, e quando aquela dor, aquele prazer e aquele medo
deixaram de existir (o que não significa não ter mais alegria; a alegria é
coisa totalmente diferente do prazer), a mente passa então a funcionar numa
dimensão diferente, na qual não existe conflito, nenhuma idéia de diferença.
Verbalmente,
só podemos chegar até esse ponto; o que existe além não pode ser expresso em
palavras, porque a palavra não é a coisa. Até aqui, pudemos descrever,
explicar, mas nem palavras nem explicações podem abrir a porta. O que abrirá a
porta é o percebimento e a atenção diários — percebimento da maneira como
falamos, do que dizemos, de nossa maneira de andar, do que pensamos. Isso é
como limpar e manter em ordem um aposento.
Manter o aposento em ordem é importante a um respeito e totalmente sem
importância a outro respeito. Deve haver ordem no aposento, mas a ordem não
abrirá a porta ou a janela. O que abre a porta não é vossa volição ou desejo.
Não se pode de modo nenhum chamar o outro "estado de espírito". O que
se pode fazer é apenas manter o aposento em ordem, o que significa ser virtuoso
por amor à virtude e não pelo que isso nos trará, ser equilibrado, racional,
ordenado. Então, talvez, se tiverdes sorte, a janela se abrirá e a brisa
entrará. Ou pode ser que não. Tudo depende do estado de vossa mente. E esse
estado da mente só pode ser compreendido por vós mesmo ao observá-lo sem tentar
moldá-lo, sem ser parcial, sem contrariá-lo, sem jamais concordar, justificar,
condenar, julgar; quer dizer, estar vigilante sem fazer nenhuma escolha. E, em
razão desse percebimento sem escolha, a porta talvez se abrirá e conhecereis
aquela dimensão em que não existe o conflito nem o tempo.
IV
A Busca do Prazer - O Desejo — A Perversão pelo
Pensamento -A Memória — A Alegria.
No
capítulo precedente, dissemos que a alegria era uma coisa inteiramente
diferente do prazer; por conseguinte, vejamos o que está implicado no prazer e
se é possível viver-se num mundo em que não exista o prazer, porém um
extraordinário estado de alegria, de bem-aventurança.
Estamos,
todos nós, empenhados na busca do prazer, nesta ou naquela forma — prazer
intelectual, sensual ou cultural; o prazer de reformar, de dizer aos outros o
que devem fazer, de atenuar os males da sociedade, de fazer o bem; o prazer de
ter conhecimentos mais vastos, maior satisfação física, mais experiências, mais
compreensão da vida, de possuir todas as qualidades engenhosas e sutis da mente;
e, naturalmente, o prazer supremo: a posse de Deus.
O
prazer é a estrutura da sociedade. Da infância à morte, secreta ou
ardilosamente, ou abertamente, buscamos o prazer. Assim, qualquer que seja a
nossa forma de prazer, acho que devemos vê-la muito claramente, porque será ela
que irá guiar e moldar a nossa vida. Por conseguinte, o importante é que cada
um de nós investigue com atenção, cautela, precisão, a questão do prazer,
porque achar o prazer e depois nutri-lo e mantê-lo constitui uma necessidade básica
da vida e sem ele a existência se torna monótona, estúpida, ensombrada pela
solidão e sem nenhum significado.
Perguntareis:
"Então por que razão não deve a vida ser guiada pelo prazer?" — Pela
razão muito simples que o prazer traz necessariamente a dor, a frustração, o
sofrimento, o medo, e, como resultado do medo, a violência. Se desejais viver
dessa maneira, vivei; aliás, é o que a maioria faz. Mas, se desejais livrar-vos
do sofrimento, deveis compreender a inteira estrutura do prazer.
Compreender
o prazer não significa negá-lo. Não o estamos condenando ou dizendo que é bom
ou mau, mas, se o cultivamos, façamo-lo de olhos abertos, sabendo que a mente
que está sempre a buscar o prazer encontrará inevitavelmente a sua sombra — a
dor. As duas coisas não podem ser separadas, embora busquemos o prazer e
procuremos evitar a dor.
Ora,
por que é que a mente está sempre a exigir prazer? Por que razão fazemos coisas
nobres e ignóbeis sempre com esse desejo secreto de prazer? Por que nos
sacrificamos e sofremos, sempre pendentes desse tênue fio do prazer? Que é o
prazer, e como nasce? Não sei se alguns dentre vós já fizeram a si próprios
essas perguntas e foram até a última conseqüência das respostas.
O
prazer se torna existente em quatro fases: percepção, sensação, contato e
desejo. Vejo um belo automóvel, por exemplo; vem em seguida uma sensação, uma
reação; depois o toco com as mãos ou imagino tocá-lo; e vem então o desejo de
possuir o carro e ostentar-me com ele. Ou vejo uma nuvem formosa, uma montanha
claramente delineada contra o céu, uma folha que acaba de brotar na primavera,
um vale profundo, cheio de encantos e esplendor, um glorioso pôr-do-sol, um
belo rosto, inteligente, vivo e «5o cônscio de sua beleza e, portanto, já sem
beleza. Olho essas coisas com intenso deleite e, enquanto as observo, não há
observador, porém, tão-só a beleza pura, qual a do amor. Por um momento estou
ausente com todos os meus problemas, ansiedades e aflições; só existe aquela
coisa maravilhosa. Posso olhá-la com alegria e no próximo momento esquecê-la,
ou, então, a mente pode interferir — e aí começa o problema: minha mente pensa
naquilo que viu e na sua beleza; digo de mim para mim que gostaria de tornar a
vê-lo muitas vezes. O pensamento começa a comparar, a julgar, a dizer: "Quero
repetir isso amanhã". A
continuidade de uma experiência que por um segundo proporcionou deleite é
mantida pelo pensamento.
O
mesmo sucede em relação ao desejo sexual ou outro. Não há nada de mau no
desejo. Reagir é perfeitamente normal. Se me picais com um alfinete, eu reajo,
a não ser que esteja paralisado. Mas, o pensamento interfere, fica a ruminar
aquele deleite e o converte em prazer. O pensamento deseja repetir a
experiência e, quanto mais repetida, tanto mais mecânica ela se torna; quanto
mais pensais nela, tanto mais força o pensamento confere ao prazer. Desse modo,
o pensamento cria e mantém o prazer através do desejo e dá-lhe continuidade;
por conseguinte, a reação natural do desejo, ante uma coisa bela, é pervertida
pelo pensamento. O pensamento a converte em memória, que é então nutrida pelo
pensar repetidamente naquela coisa.
Naturalmente,
a memória tem seu lugar próprio, num certo nível. Sem ela, não teríamos
possibilidade de atuar na vida de cada dia. Em sua própria esfera, a memória
tem de ser proficiente, mas há um estado da mente onde há muito pouco lugar
para ela. A mente que não está tolhida pela memória tem a verdadeira liberdade.
Já
notastes que, quando reagis a uma dada coisa totalmente, com todo o coração,
quase não fica memória? £ só quando não respondeis a um desafio com todo o
vosso ser que se apresenta o conflito, a luta, que acarreta confusão e prazer
ou dor. A luta gera memória. Essa memória é continuamente acrescentada por
outras memórias, e são essas memórias que reagem. Tudo o que é resultado da
memória é velho e, por conseguinte, nunca é livre. Liberdade de pensamento é
algo que não existe; é puro contra-senso.
O
pensamento nunca é novo, porque o pensamento é a resposta da memória, da
experiência, do conhecimento. O pensamento, que é velho, torna também velho
aquilo que olhastes com deleite e que por um momento sentistes profundamente,
do velho vem o prazer; nunca do novo. No novo não existe o tempo.
Assim,
se puderdes olhar todas as coisas sem permitir a intrusão do prazer — olhar uma
rosa, uma ave, a cor de um sari, a beleza de uma extensão de água rutilando ao
sol, ou qualquer coisa deleitável — se puderdes olhar assim, sem desejardes que
a experiência se repita, então não haverá dor, nem medo e, por conseguinte,
haverá uma alegria infinita.
É a
luta para repetir e perpetuar o prazer que o converte em dor. Observai isso em
vós mesmo. A própria exigência da repetição do prazer produz dor, porque ele
nunca é a mesma coisa de ontem. Lutais para alcançar o mesmo deleite não só
para o vosso senso estético, mas também para a vossa mente, e ficais magoado e
desapontado, porque ele vos é negado.
Já
observastes o que acontece quando vos é negado um pequeno prazer? Quando não
tendes o que desejais, vos tornais ansioso, invejoso, rancoroso. Já notastes
que quando vos é negado o prazer de fumar ou de beber, o prazer sexual ou outro
qualquer — já notastes as lutas que tendes de sustentar? E tudo isso é uma
forma de medo, não é verdade? Tendes medo de não obter o que desejais ou de perder
o que possuis. Quando uma dada fé ou ideologia que cultivais há muitos anos é
abalada ou vos é arrebatada pela lógica da vida, não tendes medo de vos verdes
só? Essa crença vos proporcionou durante anos satisfação e prazer, e quando vos
é retirada ficais desgovernado, vazio, e o medo perdura até achardes outras
formas de prazer, outra crença.
Isso
me parece muito simples, e, por ser tão simples, não queremos ver a sua
simplicidade. Gostamos de complicar tudo. Se vossa esposa vos abandona, não
sentis ciúme? Não sentis raiva? Não odiais o homem que a seduziu? E que é tudo
isso senão o medo de perder o que vos dava muito prazer, de perder essa
companhia, perder aquela segurança e satisfação conferidas pela posse?
Assim,
se compreendeis que quando se busca o prazer tem de haver dor, podeis, se vos
aprouver, viver dessa maneira, porém com pleno conhecimento do passo que estais
dando. Se, entretanto, desejais pôr fim ao prazer, o que significa pôr fim à
dor, deveis estar completamente atento à estrutura total do prazer; mas não
deveis repeli-lo, como o fazem os monges e os sanyasis, que não olham para uma
mulher porque é pecado e, dessa maneira, destroem a vitalidade da própria
compreensão: porém, cumpre ver todo o significado e importância do prazer.
Encontrareis então infinita alegria na vida. Não se pode pensar na alegria. A
alegria é uma coisa imediata e se nela pensais a converteis em prazer. Viver no
presente é a percepção imediata da beleza e o grande deleite que nela se
encontra, sem dela procurar extrair prazer.
V
O Egoísmo - A Ânsia de Prestígio — Os Temores e o
Medo Total - A Fragmentação do Pensamento — A Cessação do Medo.
Antes
de irmos mais adiante, eu desejava perguntar-vos qual é o vosso interesse
fundamental, constante, na vida. Pondo de parte quaisquer respostas equívocas,
e encarando a questão direta e honestamente, que responderíeis? Sabeis?
Não é
vossa própria pessoa? — Pelo menos é isso o que diria a maioria de nós, se
respondêssemos sinceramente. O que me interessa são os meus problemas, meu
emprego, minha família, o pequeno canto em que estou vivendo, a conquista de
uma posição melhor para mim, mais prestígio, mais poderio, mais domínio sobre
os outros etc. etc. Penso que seria lógico reconhecermos para nós mesmos, que é
nisso que está principalmente interessada a maioria de nós: primeiro "eu".
Diriam
alguns que é mau estarmos interessados principalmente em nós mesmos. Mas, que
há de mau nisso senão o fato de o admitirmos tão raramente, decente e
honestamente? Se o fazemos, sentimo-nos um tanto envergonhados. Eis, portanto,
o fato: Cada um está fundamentalmente interessado em si próprio e, por várias
razões, lógicas e tradicionais, pensa que isso é mau. Mas, o que uma pessoa
pensa é irrelevante. Ora, porque introduzir esse fator — o pensar que isso é
mau? Isso é uma idéia, um conceito. O fato é que, fundamentalmente, e
perenemente, cada um está interessado em si próprio.
36
Direis
que é mais satisfatório ajudar o próximo do que pensar em si mesmo. Qual a
diferença? Isso continua a ser interesse em si próprio. Se encontrais maior
satisfação em ajudar os outros, estais interessado numa coisa que vos
proporciona uma satisfação maior. Por que admitir qualquer conceito ideológico
a esse respeito? Por que essa maneira dupla de pensar? Por que não dizer:
"O que realmente desejo é satisfação, seja sexual, seja ajudando os outros
ou tornando-me um grande santo, um grande cientista ou político"? Trata-se
do mesmo processo, não achais? Satisfação, de todas as maneiras, sutis ou
óbvias, é o que desejamos. Dizendo que desejamos liberdade, desejamo-la porque
nesse estado se encontra uma satisfação maravilhosa, e a satisfação máxima,
naturalmente, é essa peculiar idéia de auto-realização. O que na verdade
estamos buscando é uma satisfação, sem nenhum vestígio de insatisfação.
A
maioria de nós aspira à satisfação de ocupar uma certa posição na sociedade,
porque temos medo de ser ninguém. A sociedade é formada de tal maneira, que um
cidadão que ocupa uma posição respeitável é tratado com toda a cortesia,
enquanto aquele que não tem posição é tratado a pontapés. Todos, neste mundo,
desejam prestígio, prestígio na sociedade, na família, ou à direita de
Deus-Padre, mas esse prestígio tem de ser reconhecido por outros, pois, do
contrário, não será prestígio. Queremos estar sempre sentados no palanque.
Interiormente, somos remoinhos de aflição e de malevolência, e, por
conseguinte, ser olhado exteriormente como uma grande figura proporciona imensa
satisfação. Esse anseio de posição, de prestígio, de poder, de ser reconhecido
pela sociedade como pessoa de destaque, representa uma vontade de dominar os
outros, e essa vontade de domínio é uma forma de agressão. O santo que busca
posição em sua santidade é tão agressivo como as aves que se bicam num aviário.
E, qual a causa dessa agressividade? O
medo, não?
O
medo é um dos mais formidáveis problemas da vida. A mente que está nas garras
do medo vive na confusão, no conflito, e, portanto, tem de ser violenta,
tortuosa e agressiva. Não ousa afastar-se de seus próprios padrões de
pensamento, e isso gera a hipocrisia.
Enquanto não nos livrarmos do medo, ainda que galguemos o mais alto
cume, ainda que inventemos toda espécie de deuses, ficaremos sempre na
escuridão.
Vivendo
numa sociedade tão corrupta e estúpida, em que a educação nos ensina a competir
— o que gera medo — vemo-nos oprimidos por temores de toda espécie; e o medo é
uma coisa terrível, que torce e deforma, que ensombra os nossos dias.
Existe
o medo físico, mas esse é uma reação herdada do animal. É o medo psicológico
que nos interessa aqui, porque, compreendendo os temores psicológicos em nós
profundamente enraizados, estaremos aptos a enfrentar o medo animal, ao passo
que, se primeiramente nos interessamos no medo animal, jamais compreenderemos
os temores psicológicos.
Todos
nós temos medo de alguma coisa; não existe o medo como abstração, porém o medo
só existe em relação com alguma coisa. Sabeis quais são os vossos temores — o
medo de perder vosso emprego, de não ter comida ou dinheiro suficiente; medo do
que pensam de vós os vizinhos ou o público, de não serdes um
"sucesso", de perderdes vossa posição na sociedade, de serdes
desprezado ou ridicularizado; medo da dor e da doença, de serdes dominado por
outrem, de não chegardes a conhecer o amor, ou de não serdes amado, de
perderdes vossa esposa ou vossos filhos; medo da morte ou de viver num mundo
que é igual à morte, um mundo de tédio infinito; medo de vossa vida não
corresponder à imagem que os outros fazem de vós; medo de perderdes a vossa fé
— esses e muitos outros e incontáveis temores; conheceis vossos temores
pessoais? E que costumais fazer em relação a eles? Não é verdade que fugis dele
ou que inventais idéias e imagens para encobri-los? Mas, fugir do medo é
torná-lo maior.
Uma
das causas principais do medo é que não desejamos encarar-nos tais como somos.
Assim, temos de examinar tanto os nossos temores como essa rede de vias da fuga
que criamos para nos libertarmos deles. Se a mente, que inclui o cérebro,
procura dominar o medo, se procura reprimi-lo, discipliná-lo, controlá-lo,
traduzi-lo em coisa diferente, daí resulta atrito e conflito, e esse conflito é
um desperdício de energia.
A
primeira coisa, portanto, que devemos perguntar a nós mesmos é: "Que é o
medo, e como nasce?" Que entendemos pela palavra medo, em si? Estou
perguntando a mim mesmo o que é o medo e não de que é que tenho medo.
Vivo
de uma certa maneira; penso conforme um determinado padrão; tenho algumas
crenças e dogmas, e não quero que esses padrões de existência sejam
perturbados, porque neles tenho as minhas raízes. Não quero que sejam
perturbados porque a perturbação produz um estado de desconhecimento de que não
gosto. Se sou separado violentamente das coisas que conheço e em que creio,
quero estar razoavelmente seguro do estado das coisas que irei encontrar. As
células nervosas criaram, pois, um padrão, e essas mesmas células nervosas
recusam-se a criar outro padrão, que pode ser incerto. O movimento do certo
para o incerto é o que chamo medo.
Neste
momento em que estou aqui sentado, não estou com medo; não tenho medo do
presente, nada me está acontecendo, ninguém me está fazendo ameaças nem me
tomando nada. Mas, além deste momento presente, uma camada mais profunda da
mente está, consciente ou inconscientemente, a pensar no que poderá acontecer
no futuro, ou a preocupar-se com algum fato passado que me possa prejudicar.
Portanto, tenho medo do passado e do futuro. Dividi o tempo em passado e
futuro. O pensamento interfere, dizendo "Tem cuidado, para que isso não
torne a acontecer", ou "Prepara-te para o futuro! O futuro pode ser
perigoso. Agora tens alguma coisa, mas podes perdê-la. Podes morrer amanhã. Tua
esposa pode abandonar-te. Podes perder teu emprego. Talvez nunca te tornes
famoso. Podes ver-te na solidão. Precisas estar perfeitamente seguro do
amanhã".
Considerai
agora vosso temor particular. Olhai-o. Observai vossas reações a ele. Podeis
olhá-lo sem nenhum movimento de fuga, de justificação, condenação ou repressão?
Podeis olhar aquele medo, sem a palavra que causa medo? Podeis olhar a morte,
por exemplo, sem a palavra que suscita o medo da morte? A própria palavra
produz um estremecimento, não é exato? — assim como a palavra amor produz seu
estremecimento, sua imagem peculiar. Pois bem; a imagem que tendes na mente a
respeito da morte, a lembrança de tantas mortes a que assististes, e o
relacionar a vossa pessoa com tais incidentes — é essa a imagem que está
criando o medo? Ou, com efeito, tendes
medo do findar e não da imagem que cria o fim? É a palavra morte que vos causa
medo ou é o próprio findar? Se é a palavra ou a memória que vos está causando
medo, então não se trata realmente do medo.
Estivestes
doente há dois anos, digamos, e a lembrança daquela dor, daquela doença,
persiste, e a memória, agora em funcionamento, diz: "Tem cuidado, para não
adoeceres de novo!" Por conseguinte, a memória, com suas associações, está
criando o medo, e isso não é realmente medo, porque, com efeito, neste momento
estais gozando perfeita saúde. O pensamento, que é sempre velho — pois o pensamento
é reação da memória, e as lembranças são sempre velhas — o pensamento cria, no
tempo, a idéia que vos faz medo, a qual não é um fato real. O fato real é que
estais bem de saúde. Mas, a experiência, que permaneceu na mente como memória,
faz surgir o pensamento "Tem cuidado para não adoeceres novamente".
Estamos
vendo, pois, que o pensamento engendra uma espécie de medo. Mas, separado
desse, existe realmente medo? É o medo sempre resultado do pensamento? Se é,
existe alguma outra forma de medo? Tememos a morte — uma coisa que acontecerá
amanhã ou depois de amanhã, no tempo. Há uma distância entre a realidade e o
que será. Ora, o pensamento experimentou esse estado; observando" a morte,
ele diz: "Eu vou morrer". O pensamento cria o medo da morte; e, se
não o cria, existe então realmente o medo?
É o
medo resultado do pensamento? Se é, uma vez que o pensamento é sempre velho, o
medo é sempre velho. Como dissemos, não há pensamento novo. Se o reconhecemos,
ele já é velho. Portanto, o que tememos é a repetição do velho — o pensamento
sobre o que foi, projetando-se no futuro. Por conseguinte, o pensamento é o
responsável pelo medo. Isso é um fato que podeis observar por vós mesmo. Quando
vos vedes diretamente em presença de alguma coisa, não há medo. Só quando surge
o pensamento é que há medo.
Por
conseguinte, perguntamos agora: É possível à mente viver de maneira completa,
total, no presente? Só assim a mente não tem medo. Mas, para compreender isso,
tendes de compreender a estrutura do
pensamento, da memória
e do tempo. E, compreendendo-a,
não intelectual nem verbalmente, porém de maneira real, com vosso coração,
vossa mente, vossas entranhas, ficareis livre do medo; a mente pode então
servir-se do pensamento, sem criar medo.
O
pensamento, como a memória, é naturalmente necessário ao viver. É o único
instrumento de que dispomos para nos comunicarmos, para trabalharmos em nossos
empregos etc. O pensamento é a reação da memória, memória acumulada por meio de
experiência, do conhecimento, da tradição, do tempo. Desse acúmulo de memória é
que provêm as nossas reações, e essas reações constituem o pensar. O
pensamento, portanto, é essencial em certos níveis, porém, quando o pensamento
se projeta, psicologicamente, como futuro e como passado, criando o medo bem
como o prazer, a mente se embota e, por conseguinte, torna-se inevitável a
inércia.
Assim,
pergunto a mim mesmo: "Mas por que penso no futuro e no passado em termos
de prazer e de dor, quando sei que esse pensamento gera medo? Não é possível o
pensamento deter-se, psicologicamente, pois de outro modo o medo nunca terá
fim?"
Uma
das funções do pensamento é estar continuamente ocupado com alguma coisa. Em
geral, desejamos ter a mente continuamente ocupada, para nos impedir de ver-nos
como realmente somos. Temos medo de sentir-nos vazios. Temos medo de encarar os
nossos temores.
Conscientemente,
podeis perceber os vossos temores, mas estais cônscio deles nos níveis mais
profundos? E como ireis descobrir os temores ocultos, secretos? Pode o medo
dividir-se em consciente e inconsciente? Esta é uma pergunta muito importante.
O especialista, o psicólogo, o analista, dividiram o medo em camadas profundas
e camadas superficiais, mas, se fordes seguir o que diz o psicólogo ou o que eu
digo, tereis a compreensão de nossas teorias, de nossos dogmas, de nossos
conhecimentos, mas não tereis a compreensão de vós mesmos. Não podeis
compreender-vos de acordo com Freud, Jung, ou de acordo comigo. As teorias de
outras pessoas não têm importância alguma. É a vós mesmo que deveis perguntar se
o medo pode ser dividido em consciente e subconsciente. Ou só existe medo, que traduzis de
diferentes maneiras? Só existe um desejo; só há desejo. Vós desejais. Os
objetivos do desejo variam, mas o desejo é sempre o mesmo. Assim, talvez, da
mesma maneira, só existe o medo. Tendes medo de uma porção de coisas, mas só
existe um medo.
Ao
perceberdes que o medo não pode ser dividido, vereis que acabastes com o
problema do subconsciente, pregando um logro aos psicólogos e aos analistas. Ao
compreenderdes que o medo é um movimento único que se expressa de diferentes
maneiras, e ao verdes o movimento e não o objetivo a que se dirige, estareis
então em presença de uma questão imensa: Como olhar o medo sem a fragmentação
que a mente cultivou?
5o há
o medo total, mas como pode a mente que pensa fragmentariamente observar esse
quadro total? Pode observá-lo? Temos levado uma vida de fragmentação e só somos
capazes de olhar o medo através do processo fragmentário do pensamento. Todo o
processo do mecanismo do pensamento é dividir tudo em fragmentos: Eu te amo e
eu te odeio; tu és meu amigo, tu és meu inimigo; minhas idiossincrasias e
inclinações, meu emprego, minha posição, meu prestígio, minha mulher, meu
filho, minha pátria e tua pátria, meu Deus e teu Deus — tudo isso é
fragmentação do pensamento. E o pensamento olha o estado atual de medo, ou
tenta olhá-lo, e o reduz a fragmentos. Vemos, por conseguinte, que a mente só
pode olhar esse medo total quando não há movimentação do pensamento.
Podeis
observar o medo sem nenhuma conclusão, sem nenhuma interferência do
conhecimento que a seu respeito acumulastes? Se não podeis, então o que estais
observando é o passado e não o medo; se podeis, nesse caso estais, pela
primeira vez, observando o medo sem a interferência do passado.
Só se
pode olhar com a mente muito quieta, assim como só se pode ouvir o que alguém
está dizendo, quando a mente não está a tagarelar, a travar consigo um diálogo
a respeito de seus problemas e ansiedades. Podeis, da mesma maneira, olhar o
vosso medo, sem procurardes dissolvê-lo, sem trazerdes à cena o seu oposto, a
coragem; olhá-lo de fato, e não tentar fugir dele?
Quando
dizeis: "Eu tenho de controlá-lo, tenho de livrar-me dele, tenho de
compreendê-lo" — estais tentando fugir dele.
Podeis
observar uma nuvem, uma árvore ou o movimento de um rio, com a mente
relativamente quieta porque essas coisas não são sumamente importantes para
vós; mas o observar a vós mesmo é muito mais difícil, porque então as
exigências são muito práticas, as reações muito rápidas. Assim, quando estais
diretamente em contato com o medo ou o desespero, com a solidão e o ciúme, ou
qualquer outro estado repulsivo da mente, podeis olhar de maneira tão completa
que vossa mente fique suficientemente quieta para vê-lo?
Pode
a mente perceber o medo, e não as diferentes formas de medo; perceber o medo
total, e não aquilo de que tendes medo? Se olhais meramente para os detalhes do
medo ou procurais acabar com os vossos temores um a um, nunca alcançareis o
ponto central, que é aprender a viver com o medo.
O
viver com uma coisa viva, tal o medo, requer uma mente e um coração altamente
sutis, que não chegaram a qualquer conclusão, podendo, portanto, seguir cada
movimento do medo. Então, se observardes o medo, e com ele viverdes — e isso
não leva um dia inteiro, porque um minuto ou um segundo pode bastar, para se
conhecer a inteira natureza do medo — se viverdes com ele completamente,
perguntareis, inevitavelmente: "Qual a entidade que está vivendo com o
medo? Qual a entidade que está observando o medo, observando cada movimento de
todas as formas do medo, e ao mesmo tempo consciente do fato central do medo?
Será o observador uma- entidade morta, um ente estático, que acumula uma grande
quantidade de conhecimentos e informações a respeito de si próprio, e essa
coisa morta é que está observando e vivendo com o movimento do medo?" —
Qual é a vossa resposta? Não respondais a mim, porém a vós mesmo. Sois vós — o
observador — uma entidade morta a observar uma coisa viva, ou sois uma coisa
viva a observar outra coisa viva? Porque, no observador existem os dois
estados.
O
observador é o censor que não deseja o medo; o observador é o conjunto de todas
as suas experiências relativas ao medo.
E, assim, o observador está separado da coisa a que chama medo; há
espaço entre ambos; está perpetuamente tentando dominá-lo ou dele fugir, e daí
provém essa batalha entre ele próprio e o medo — essa batalha que é uma enorme
perda de energia.
Observando-o,
aprendereis que o observador é meramente um feixe de idéias e lembranças sem
validade, sem substância nenhuma, ao passo que aquele medo é uma realidade;
assim, estais tentando compreender um fato com uma abstração, e isso,
naturalmente, não podeis fazer. Mas, será o observador, que diz "Tenho
medo", diferente da coisa observada, o medo? O observador é o medo e, uma
vez percebido isso, não há mais dissipação de energia no esforço para livrar-se
do medo, e o intervalo de tempo-espaço, entre o observador e a coisa observada,
desaparece. Quando percebeis que sois uma parte do medo, que não estais
separado dele, que vós sois o medo, então nada podeis fazer a seu respeito: o
medo terminou totalmente.
VI
A Violência — A
Cólera — A Justificação e a Condenação — O Ideal e o Real.
O
medo, o prazer, o sofrimento, o pensamento e a violência estão relacionados
entre si. Em maioria encontramos prazer na violência, em não gostar de alguém,
em odiar uma dada raça ou grupo de pessoas, em nutrir sentimentos hostis para
com os outros. Mas, no estado mental em que a violência desapareceu
completamente, há uma alegria muito diferente do prazer da violência, com os
seus conflitos, rancores e temores.
Podemos
penetrar a raiz da violência e dela nos livrarmos? De contrário, viveremos a
batalhar perenemente uns com os outros. Se é dessa maneira que desejais viver —
e aparentemente a maioria das pessoas o deseja — continuai então assim; se
dizeis: "Ora, sinto muito, mas a violência nunca terá fim, jamais
acabará" — nesse caso vós e eu não temos possibilidade de comungar, uma
vez que vos emparedastes; mas se dizeis que talvez exista uma diferente maneira
de viver, teremos então a possibilidade de comunhão.
Consideremos,
pois, juntos — aqueles de nós que têm a capacidade de comungar — se existe
alguma possibilidade de acabarmos totalmente com qualquer forma de violência em
nós mesmo existente, e ao mesmo tempo vivermos neste mundo monstruoso e brutal.
Acho que é possível. Não desejo ter em mim a mais leve sombra de ódio, de
ciúme, de ansiedade ou medo. Desejo viver completamente em paz. Mas isso não
significa que desejo morrer. Desejo
viver nesta terra maravilhosa, tão cheia de vida, de riqueza e de beleza!
Desejo olhar as árvores, as flores, os rios, os prados, as mulheres, as
crianças, e ao mesmo tempo viver completamente em paz comigo mesmo e com o
mundo. Que posso fazer?
Se
soubermos olhar a violência, não só exteriormente, na sociedade — guerras,
rebeliões, antagonismos nacionais e conflitos de classes — mas também em nós
mesmos, talvez então tenhamos a possibilidade de transcendê-la.
Este
é um problema muito complexo. Há séculos e séculos que o homem é violento; as
religiões, em todo o mundo, tentaram amansá-lo, e nenhuma delas foi
bem-sucedida. Assim, se vamos examinar esta questão, devemos, acho eu,
encará-la com toda a seriedade, porque esse exame nos levará a um domínio
completamente diferente. Mas se desejamos meramente entreter-nos
intelectualmente com o problema, não iremos muito longe.
Podeis
pensar que de vossa parte esse problema vos interessa seriamente, mas, uma vez
que há tanta gente no mundo que não o leva a sério e não se mostra disposta a
tomar alguma medida em relação a ele, de que serve fazerdes alguma coisa? Não
me importa se os outros o levam a sério ou não; eu o levo a sério, e tanto
basta. Eu não sou o guarda de meu irmão (1). Eu, de minha parte, como ente
humano, sinto-me fortemente interessado nesta questão da violência, e farei o
necessário para eu próprio não ser violento; mas não posso dizer a vós nem a
ninguém: "Não sejais violento". Isso não tem significação alguma, a
não ser que também não desejeis sê-lo. Assim, se pessoalmente desejais
compreender o problema da violência, prossigamos juntos a nossa viagem de
exploração.
O
problema da violência é exterior ou interior? Desejais resolver o problema no
mundo exterior, ou estais questionando a violência em si, tal como em vós
existe? Se, interiormente, em vós mesmos, estais livre da violência, surge logo
a pergunta: "Como posso viver num mundo cheio de violência, ganância,
avidez, inveja, brutalidade? Não serei destruído?" — Esta alusão às
palavras de Caim,
após assassinar Abel, é a pergunta que inevitável e
invariavelmente se faz. Fazendo tal pergunta, não me pareceis estar vivendo
realmente em paz. Se viveis pacificamente, não tendes problema de espécie alguma.
Podeis ir para a prisão se vos recusardes a alistar-vos no exército, ou ser
fuzilado se vos recusardes a combater; mas isso não é problema: sereis
fuzilado. É extremamente importante compreender isso.
Estamos
tentando compreender a violência como um fato, não como uma idéia; como um fato
existente no ente humano, e o ente humano sou eu. E, para examinar o problema,
eu tenho de ser completamente vulnerável, aberto a ele. Tenho de desmascarar-me
a mim mesmo; não há necessidade de me desmascarar diante de vós, porque isso
talvez não vos interesse — mas devo achar-me num estado mental que queira levar
o exame completamente a cabo, sem me deter em nenhum ponto, dizendo "não
irei mais adiante".
Ora,
devo ver bem claramente que sou um ente humano violento. Tenho experimentado a
violência na cólera, nos apetites sexuais, no ódio, no criar inimizades, no
ciúme etc. Tendo-a experimentado, conhecido, digo de mim para mim: "Desejo
compreender este problema integralmente, e não apenas um fragmento seu, conforme
se expressa na guerra; quero compreender essa agressividade existente no homem
e que também existe nos animais, dos quais faço parte".
Violência
não é meramente assassinar. Há violência no uso de uma palavra áspera, num
gesto de desprezo, na obediência motivada pelo medo. A violência, portanto, não
é apenas a carnificina organizada, em nome de Deus, da sociedade, da pátria. A
violência é muito mais sutil e profunda, e nós queremos investigar as suas
últimas profundezas.
Quando
vos denominais indiano, ou maometano, ou cristão, ou europeu, ou o que quer que
seja, estais sendo violento. Sabeis por quê? Porque vos estais separando do
resto da humanidade. Quando vos separais, pela crença, pela nacionalidade, pela
tradição, gera-se a violência. Assim, o homem que deseja compreender a
violência, não deve pertencer a nenhuma nação, nenhuma religião, nenhum partido
político ou sistema partidário; o que deve interessá-lo é a compreensão total
da humanidade.
Pois
bem; há duas escolas principais de pensamento que se interessam pela violência.
Uma delas diz: "A violência é inata no homem"; a outra diz: "A
violência é o resultado da herança social e cultural do homem". Não nos
interessa a escola a que pertenceis, pois isso não tem importância nenhuma. O
importante é o fato de que somos violentos e não a razão desse fato.
Uma
das expressões da violência mais comuns é a cólera. Quando atacam minha esposa
ou minha irmã, sinto-me justamente encolerizado; quando são atacados a minha
pátria, as minhas idéias, os meus princípios, a minha maneira de vida, fico
também justamente encolerizado. Sinto também cólera, quando são atacados os
meus hábitos, as minhas insignificantes opiniões. Se me pisais no pé ou me
insultais, enraiveço-me, ou se fugis com minha mulher sinto ciúme, um ciúme também
justo, porque ela é minha propriedade. Todas essas manifestações de cólera são
moralmente justificadas. Também se justifica o matar pela pátria. Assim,
falando a respeito da cólera, que faz parte da violência, consideramo-la em
termos de cólera justa e cólera injusta, conforme nossas próprias inclinações
ou as pressões do ambiente ou a consideramos como cólera simplesmente? Existe
cólera justa? Ou só existe a cólera? Não há influência boa ou influência má —
só há influência; mas quando sou influenciado por uma coisa que não me convém,
chamo-lhe má influência.
Se
protegeis vossa família, vossa pátria, um trapo colorido chamado bandeira, uma
crença, uma idéia, um dogma, aquilo que quereis possuir ou que já tendes nas
mãos, essa própria proteção denota cólera. Assim, podeis olhar a cólera sem
nenhuma explicação ou justificação, sem dizerdes: "Tenho de proteger o que
é meu" ou "Tive razão para me encolerizar" ou "Que
estupidez minha, ter-me encolerizado"? Podeis olhar a cólera como uma
coisa em si? Podeis olhá-la de maneira completamente nova, quer dizer, sem
defendê-la, nem condenada? Podeis?
Posso
olhar-vos se vos sou hostil ou se vos considero uma pessoa excelente? Só posso
ver-vos, quando vos olho com certo cuidado em que não esteja contida nenhuma
dessas coisas.
Ora,
posso eu olhar a cólera da mesma maneira, o que significa que sou vulnerável ao
problema, que não resisto a ele, que estou observando, que estou observando
esse extraordinário fenômeno sem nenhuma reação a ele?
É
muito difícil considerar a cólera desapaixonadamente, porquanto ela faz parte
de mim, mas é isso o que estou tentando fazer. Aqui estou eu, um ente humano
violento, não importando se sou preto, se sou moreno, branco ou vermelho. Não
importa se herdei essa violência ou se a sociedade a produziu. Só isto me
importa: "Se é possível libertar-me dela". Livrar-me da violência
significa tudo para mim. É-me mais importante do que o sexo, o alimento, a
posição, porque essa coisa me está corrompendo. Estou a destruir-me e a
destruir o mundo, e preciso compreender a violência, transcendê-la. Sinto-me
responsável por toda a cólera e toda a violência existentes no mundo. Sinto-me
responsável, e isso não são meras palavras. Digo de mim para comigo: "Só
posso fazer alguma coisa se eu próprio transcender a cólera, a violência, a
nacionalidade". E esse meu sentimento de que devo compreender a violência
em mim existente me confere uma estupenda vitalidade e paixão para
compreendê-la.
Mas,
para transcender a violência, não posso reprimi-la, negá-la, não posso dizer:
"Ora, ela faz parte de mim, e está acabado" ou "Eu não a
quero". Tenho de enfrentá-la, de estudá-la, de entrar em intimidade com
ela, e essa intimidade não é possível se a condeno ou justifico. Entretanto, na
verdade, nós a condenamos e justificamos. Por conseguinte, digo "Deixemos,
por ora, de condená-la ou de justificá-la".
Ora
bem, se desejais acabar com a violência, acabar com as guerras, quanta
vitalidade, quanto de vós mesmo aplicais a isso? Não vos importa que vossos
filhos pequenos sejam mortos, que vossos filhos mais velhos se alistem no
exército para serem maltratados e abatidos como reses? Não vos importa isso?
Deus meu! Se isso não vos importa, o que mais vos importa? Conservar vosso
dinheiro? Gozar a vida? Tomar drogas? Não percebeis que a violência em vós
existente está destruindo os vossos filhos? Ou a vedes apenas como uma espécie
de abstração?
Bem;
se tendes interesse nisso, aplicai-vos de corpo e alma a compreendê-lo. Não vos
recosteis na cadeira, dizendo: "Está bem; conta-nos toda a história".
Preciso fazer-vos ver que não se pode olhar a cólera nem a violência com olhos
que condenam ou justificam, e que, se a violência não representa para vós um
urgente problema, não podeis afastar aquelas duas coisas. Assim, em primeiro lugar,
tendes de aprender; tendes de aprender a olhar a cólera, a olhar vosso marido,
vossa esposa, vossos filhos: tendes de escutar o político, aprender porque não
sois objetivo, porque condenais ou justificais. Tendes de aprender que
condenais e justificais porque isso faz parte da estrutura social em que
viveis,- faz parte de vosso condicionamento como alemão, indiano, negro,
americano — ou o que acaso sois por nascimento — com todo o embota-mento mental
resultante desse condicionamento. Para aprender, para descobrir uma coisa
fundamental, precisais de penetração. Se tendes um instrumento obtuso, um
instrumento embotado, não podeis penetrar profundamente. Assim, o que agora
estamos fazendo é aguçando o instrumento, que é a mente — essa mente que se
embotou por causa do justificar e do condenar. Só sereis capaz de penetrar
fundo se vossa mente for penetrante como uma agulha e forte como o aço.
De
nada serve ficardes recostado e perguntar: "Como chegarei a ter essa
mente?". Vós tendes de desejá-la assim como desejais a vossa próxima
refeição, e para a terdes deveis ver que o que está tornando vossa mente
embotada e estúpida é esse estado de invulnerabilidade que ergueu muralhas ao
redor dela e que faz parte da condenação e da justificação. Se a mente puder
libertar-se desse estado, sereis então capaz de olhar, de estudar, de penetrar
e, assim, talvez, alcançar um estado totalmente consciente do problema em seu
todo.
Voltemos,
pois, ao problema central: É possível erradicarmos a violência em nós
existente? É uma forma de violência dizer: "Não mudaste! Por que não
mudaste?" -— Não é isso que estou fazendo. Para mim, nada significa
convencer-vos de uma coisa. Trata-se de vossa vida, e não da minha vida. Vossa
maneira de viver é da vossa própria conta. O que pergunto é se é possível a um
ente humano que psicologicamente vive em não importa que sociedade, se é
possível a esse ente humano libertar-se interiormente da violência. Se é
possível, esse mesmo processo criará uma nova maneira de viver neste mundo.
A
maioria aceita a violência como maneira de vida. Duas guerras medonhas nada nos
ensinaram a não ser a levantar mais e mais barreiras entre os seres humanos —
entre vós e mim. Mas, quanto àqueles que desejam libertar-se da violência, que
se deve fazer? Penso que nada se conseguirá por meio da análise, feita por vós
mesmo ou por um profissional. Poderíamos, talvez, modificar-nos ligeiramente,
viver um pouco mais sossegadamente, com um pouco mais de afeição, mas isso, por
si só, não nos dará a percepção total. Mas eu preciso saber analisar, pois, no
processo da análise a mente se torna sobremodo penetrante e é essa capacidade
de penetração, de atenção, de seriedade, que dará a percepção total. Ninguém
tem olhos capazes de ver o todo num relance; essa clarividência só é possível
se podemos ver os detalhes e, depois, saltar.
Alguns
dentre nós, a fim de se libertarem da violência, têm-se servido de um conceito,
de um ideal chamado "não violência", e pensamos que, tendo um ideal
que seja o oposto da violência — a não violência — podemos libertar-nos do
fato, da coisa real; mas não podemos. Temos tido inumeráveis ideais, todos os
livros sagrados estão cheios deles e, contudo, continuamos violentos; portanto,
por que não enfrentar a própria violência e esquecer de todo a palavra?
Se desejais
compreender a realidade, a isso deveis aplicar toda a vossa energia. Essa
atenção e energia são desviadas quando se cria um mundo fictício, ideal. Assim,
podeis banir completamente o ideal? O homem que é realmente sério, que sente a
ânsia de descobrir o que é a verdade, o que é o amor, não tem conceito de
espécie alguma. Só vive dentro de o que é.
Para
investigar o fato de vossa própria cólera, não deveis pronunciar julgamento
sobre ela, porque no mesmo instante em que concebeis o seu oposto, a estais
condenando e, por conseguinte, não podeis vê-la tal como é. Quando dizeis que
não gostais ou que tendes ódio de alguém, isso é um fato, embora pareça
terrível. Se o olhais, se o examinais cabalmente, ele deixa de existir; mas se
disserdes "Eu não devo odiar; devo ter amor no coração", ficais então
vivendo num mundo hipócrita, de duplos padrões. Viver com plenitude no momento
presente é viver com o que é, o real, sem idéia de condenação ou justificação;
então o compreendeis tão completamente que ficais livre dele. Quando se vê
claramente, o problema está resolvido.
Mas,
podeis ver claramente a face da violência, não só fora mas também dentro de
vós, o que significa que estais totalmente livre da violência, uma vez que não
aceitastes nenhuma ideologia para, por meio dela, vos libertardes da violência?
Isso exige meditação muito profunda, e não uma simples concordância ou
discordância verbal.
Acabastes
de ler uma série de asserções, mas tereis compreendido tudo? Vossa mente
condicionada, vossa maneira de vida, a inteira estrutura da sociedade em que
viveis, vos impedem de olhar um fato e dele vos livrardes imediatamente.
Dizeis: "Vou pensar a respeito disso; vou considerar se é ou não possível
libertar-me da violência. Vou tentar ser livre". Esta é uma das coisas
mais terríveis que se podem dizer: Vou tentar. Não há tentar, não há
esforçar-se. Ou a gente age ou não age. Estais admitindo o tempo, com a casa em
chamas. A casa está a arder, como resultado da violência existente no mundo
inteiro e em vós mesmo, e dizeis "Vou pensar nisso. Qual é a melhor
ideologia para extinguir o fogo?" Quando a casa está em chamas, discutis
sobre a cor dos cabelos do homem que traz a água?
VII
As Relações — O Conflito — A Sociedade — A Pobreza —
As Drogas — A Dependência — A Comparação — O Desejo — Os Ideais — A Hipocrisia.
A
cessação da violência, que acabamos de considerar, não implica necessariamente
um estado em que a mente fica em paz consigo mesma e, por conseguinte, em todas
as suas relações.
As
relações entre os seres humanos se baseiam no mecanismo defensivo, formador de
imagens. Em todas as relações cada um de nós forma uma imagem a respeito de
outrem e as duas imagens ficam em relação e não os próprios entes humanos. A
esposa tem uma imagem do marido — talvez inconsciente, contudo existente — e o
marido tem uma imagem da esposa. Temos uma imagem a respeito de nosso país e a
respeito de nós mesmos e estamos constantemente a fortalecer essas imagens,
acrescentando-lhes sempre alguma coisa. A relação existente é entre essas
imagens. A verdadeira relação entre dois ou vários seres humanos cessa
completamente, quando há a formação de imagens.
A
relação baseada em tais imagens jamais produzirá a paz, porquanto as imagens
são fictícias, e não se pode viver abstratamente. Entretanto, é isto o que
todos fazemos: vivemos entre idéias, teorias, símbolos, imagens que criamos a
respeito de nós mesmos e de outros e que, em absoluto, não são realidades.
Todas as nossas relações, sejam com a propriedade, sejam com idéias ou pessoas,
se baseiam essencialmente nessa formação de imagens e, por essa razão, existe
sempre conflito.
Como
é então possível estarmos completamente em paz em nosso interior e em todas as
nossas relações com outros? A vida é um movimento de relações, pois de outro
modo não há vida; e se essa vida está baseada numa abstração, numa idéia, numa
suposição especulativa, então esse viver abstrato produzirá inevitavelmente
relações que se tornam um campo de batalha. Ora, será possível ao homem viver
uma vida interior de perfeita ordem, sem compulsão, imitação, repressão ou
sublimação, em nenhuma forma? Pode o homem estabelecer, em si mesmo, uma ordem
que seja uma qualidade viva, não aprisionada na estrutura das idéias — uma
tranqüilidade interior que não conheça perturbação em momento algum — não num
mundo abstrato, fantástico, mítico, porém na vida de cada dia, no lar e no
emprego?
Devemos
examinar esta questão muito cuidadosamente, porquanto não há um só ponto em
nossa consciência não contaminado pelo conflito. Em todas as nossas relações,
sejam com a pessoa mais íntima, sejam com nosso vizinho ou a sociedade, esse
conflito existe — o conflito é uma contradição, um estado de divisão, de
separação, de dualidade. Observando-nos e observando nossas relações com a
sociedade, notamos que em todos os níveis de nossa existência há conflito, de
menor ou maior importância, o qual provoca ou reações muito superficiais ou
conseqüências devastadoras.
O
homem aceitou o conflito como parte da existência diária, porque aceitou a
competição, o ciúme, a avidez, a ganância e a agressão como norma natural da
vida. Quando aceitamos tal norma de vida, estamos aceitando a estrutura social
tal qual é e vivendo segundo o padrão da respeitabilidade. E é nessa rede que
está aprisionada a maioria, visto que quase todos aspiram a ser respeitáveis.
Examinando nossa mente e coração, nossa maneira de pensar, nossa maneira de
sentir e de agir na vida diária, observamos que, enquanto estamos a ajustar-nos
ao padrão da sociedade, a vida tem de ser um campo de batalha. Se não a
aceitamos — pois uma pessoa religiosa não pode de modo nenhum aceitar uma tal
sociedade — estaremos então completamente livres da estrutura psicológica da
sociedade.
A
maioria de nós é rica das coisas da sociedade. O que a sociedade criou em nós
e, também, o que criamos em nós mesmos, é avidez, inveja, cólera, ódio, ciúme,
ansiedade — de tudo isso somos muito ricos. As religiões, em todo o mundo,
sempre pregaram a pobreza. O monge toma um hábito, muda de nome, rapa a cabeça,
entra numa cela e faz voto de pobreza e de castidade; no Oriente eles trajam
uma tanga, um manto e só tomam uma refeição por dia. Todos nós respeitamos essa
espécie de pobreza. Mas, os homens que vestiram o manto da pobreza continuam,
interiormente, psicologicamente, ricos das coisas da sociedade, porquanto estão
ainda em busca de posição e de prestígio; pertencem a esta ou àquela ordem, a
esta ou àquela religião; continuam a viver nas divisões próprias de uma dada
cultura ou tradição. Isso não é pobreza. Pobreza é estar completamente livre da
sociedade, mesmo possuindo algumas roupas e tomando mais refeições — meu Deus!
Que importa isso? Mas, infelizmente, na maioria das pessoas existe esse impulso
para o exibicionismo.
A
pobreza se torna uma coisa maravilhosa e bela, quando a mente está livre da
sociedade. Temos de ser pobres interiormente, porque então não há mais buscar,
nem indagar, nem desejar, nem — nada! Só essa pobreza interior pode ver a
verdade existente numa vida completamente sem conflito. Tal vida é uma bênção não
encontrável em nenhuma igreja ou templo.
Mas,
como será possível nos libertarmos da estrutura psicológica da sociedade, o que
equivale a "libertar-nos da essência do conflito? Não é difícil aparar ou
podar certos ramos do conflito; mas estamos perguntando a nós mesmos se é
possível vivermos em completa tranqüilidade interior e, por conseguinte,
exterior. Isso não significará vegetar ou estagnar. Ao contrário,
tornar-nos-emos dinâmicos, cheios de vitalidade e de energia.
Para
compreendermos e nos libertarmos de um problema, necessitamos de abundante
energia, apaixonada, persistente, não só energia física e intelectual, mas
também uma energia independente de qualquer motivo, de qualquer estímulo
psicológico ou droga. Se dependemos de algum estímulo, esse próprio estímulo
tornará a mente embotada e insensível. Tomando uma certa droga, podemos
encontrar, temporariamente, energia suficiente para vermos as coisas muito mais
claramente, mas temos de voltar ao estado anterior e, por conseguinte, nos
tornarmos cada vez mais dependentes dessa droga. Assim, todo estímulo, seja da
igreja, seja do álcool ou das drogas, da palavra escrita ou falada, acarretará
inevitavelmente a dependência — e essa dependência nos impede de ver
claramente, por nós mesmos, e, por conseguinte, de ter a energia vital.
Infelizmente,
todos nós dependemos de alguma coisa. Por que dependemos? Por que existe esse
impulso a depender? Estamos viajando juntos; não estais à espera de que eu vos
mostre as causas de vossa dependência. Se investigarmos juntos, nós as
descobriremos, e tal descobrimento será então vosso e, por conseguinte, sendo
vosso, vos dará vitalidade.
Descubro
por mim mesmo que dependo de uma certa coisa, de um auditório, por exemplo,
para ser estimulado. Desse auditório, do falar a uma grande reunião de pessoas,
me vem uma certa espécie de energia. Conseqüentemente, dependo desses ouvintes,
dessas pessoas, quer concordem, quer não concordem comigo. Quanto mais
discordarem de mim, tanto mais vitalidade me darão. Se concordam, o que lhes
digo se torna uma coisa muito superficial, vazia. Assim, descubro que necessito
de ouvintes, porque é uma coisa muito estimulante dirigir a palavra a muitas
pessoas. Ora, por quê? Por que tenho essa dependência? Porque interiormente
nada tenho, interiormente não existe em mim uma fonte sempre cheia, abundante
de vida e de movimento. Por isso, eu dependo. Descobri a causa.
Mas o
descobrimento da causa me livrará de ser dependente? O descobrimento da causa é
puramente intelectual e, portanto, evidentemente, não pode libertar a mente de
sua dependência. A mera aceitação intelectual de uma idéia ou a aquiescência
emocional a uma ideologia, não pode libertar a mente da dependência daquilo que
lhe dá estímulo. O que liberta a mente da dependência é o percebimento da
inteira estrutura e natureza do estímulo e da dependência e de como essa
dependência torna a mente estúpida, embotada e inerte. Só o percebimento dessa
totalidade liberta a mente.
Cumpre,
pois, investigar o que significa ver totalmente. Enquanto eu estiver vendo a
vida de um certo ponto de vista, de uma dada experiência ou conhecimento que
acumulei e que constitui o meu fundo, meu "eu", não posso ver
totalmente.
Descobri
intelectualmente, verbalmente, pela análise, a causa de minha dependência, mas
tudo o que o pensamento investiga só pode ser fragmentário e, portanto, só
posso ver a totalidade de uma coisa quando o pensamento não interfere.
Percebo
então o fato — minha dependência. Percebo realmente o que é. Vejo-o sem agrado
nem desagrado, e não desejo libertar-me dessa dependência ou de sua causa.
Observo-a e com essa qualidade de observação percebo o quadro inteiro; e quando
a mente percebe o quadro inteiro, dá-se a libertação. Ora, descobri que há uma
dissipação de energia quando há fragmentação. Descobri a própria fonte da
dissipação da energia.
Podeis
pensar que não há desperdício de energia se imitais, se aceitais a autoridade,
se dependeis do sacerdote, do ritual, do dogma, do partido, ou de uma certa
ideologia, mas o aceitar e seguir uma ideologia, boa ou má, sagrada ou profana,
é uma atividade fragmentária e, portanto, uma causa de conflito; e o conflito
surge inevitavelmente quando há separação entre o que "deveria ser" e
"o que é", e todo conflito é dissipação de energia.
Se
fazeis a vós mesmo a pergunta: "Como posso libertar--me do conflito?"
— estais criando outro problema e, por conseguinte, aumentando o conflito, ao
passo que, se o perceberdes simplesmente como um fato — o virdes como veríeis
um objeto concreto — clara e diretamente — compreendereis então a essência, a
verdade de uma vida inteira isenta de conflito.
Em
outras palavras: Estamos sempre a comparar o que somos com o que deveríamos
ser. O "deveria ser" é uma projeção do que pensamos que deveríamos
ser. A contradição existe quando há comparação, não só com alguma coisa ou
pessoa, mas também com o que ontem éramos, e, por conseguinte, há conflito
entre o que foi e o que ê. Só existe O que ê quando não há comparação de
espécie alguma, e viver com o que é, é viver em paz. Podeis aplicar então toda
a vossa atenção, sem distinção alguma, ao que existe dentro de vós mesmo —
desespero, malevolência, brutalidade, medo, ansiedade, solidão — e viver com
isso, completamente; não há então contradição e, por conseguinte, não há
conflito.
Mas,
estamos continuamente a comparar-nos — com os que são mais inteligentes ou mais
ricos, mais intelectuais, mais afetuosos, mais famosos, mais isto e mais
aquilo. O "mais" tem um importantíssimo papel em nossas vidas; essa
medição de nós mesmos com alguma coisa ou pessoa é uma das principais causas do
conflito.
Ora,
por que é que existe comparação? Por que vos comparais com outrem? Essa
comparação vos foi ensinada desde a infância. Em toda escola, A é comparado com
B, e A destrói a si próprio, a fim de igualar-se a B. Quando não se faz
comparação alguma, quando não há ideal, nem oposto, nem fator de dualidade,
quando não mais lutais para serdes diferente do que sois — que aconteceu à
vossa mente? Vossa mente deixou de criar o oposto e se tornou altamente inteligente
e sensível, capaz de extraordinária percepção, porquanto todo esforço é
dissipação de paixão — a paixão que é energia vital — e nada se pode fazer sem
paixão.
Se
não vos comparais com outra pessoa, sois o que sois. Pela comparação esperais
evolver, tornar-vos mais inteligente, mais belo. Mas, consegui-lo-eis? O fato é
o que sois, e quando o comparais, estais fragmentando o fato — o que é
desperdício de energia. O verdes o que na realidade sois, sem comparação, vos
dá uma tremenda energia para olhar. Quando vos podeis olhar sem comparação, já
transcendestes a comparação, e isso não significa que a mente se estagna no
contentamento. Vemos, pois, em essência, como a mente desperdiça a energia que
é tão necessária para se compreender a totalidade da vida.
Não
desejo saber com quem estou em conflito; não desejo conhecer os conflitos
periféricos de minha existência; o que desejo saber é por que razão existe o
conflito. Ao fazer a mim mesmo essa pergunta, percebo uma questão fundamental
que nada tem em comum com os conflitos periféricos e suas soluções. Estou
interessado no problema central e vejo — talvez vós também o vejais — que a
própria natureza do desejo, se não for devidamente compreendida, levará
inevitavelmente ao conflito.
O
desejo está sempre em contradição. Desejo coisas contraditórias. Não estou dizendo que devo destruir,
reprimir, controlar ou sublimar o desejo: estou vendo, simplesmente., que o
desejo em si é contraditório. Não é o objeto do desejo, mas a sua verdadeira
natureza que é contraditória. Tenho de compreender a natureza do desejo, antes
de poder compreender o conflito. Em nós mesmos, vemo-nos num estado de
contradição, e este estado de contradição é criado pelo desejo — sendo o desejo
a busca do prazer e o evitar a dor que já conhecemos. Assim, vemos o desejo
como a raiz de toda contradição — desejando uma coisa e ao mesmo tempo não a
desejando: uma atividade dual. Quando fazemos uma coisa agradável não há
esforço algum, há? Mas o prazer traz a dor e vem em seguida a luta para evitar
a dor: mais uma maneira de dissipar energia. Por que é que existe dualidade?
Há, decerto, dualidade na natureza — homem e mulher, luz e sombra, noite e dia;
mas, interiormente, psicologicamente, por que temos a dualidade? Por favor,
pensai nisso, de maneira completa, junto comigo; tendes de exercer vossa mente
para descobrirdes as coisas; minhas palavras são simplesmente um espelho em que
vos estais mirando. Por que temos essa dualidade psicológica? É por que fomos
educados para comparar sempre "o que é" com o que "deveria
ser?" Fomos condicionados para discriminar o que é certo e o que é errado,
o que é bom e o que é mau, o que é moral e o que é imoral. Terá surgido esta
dualidade porque acreditamos que se pensarmos no oposto da violência, no oposto
da inveja, do ciúme, da mediocridade, isso nos ajudará a libertar-nos dessas
coisas? Servimo-nos do oposto como de uma alavanca para nos livrarmos de
"o que é"? Ou trata-se de
uma fuga à realidade?
Será
que vos servis do oposto como meio de evitar "o que é", por não
saberdes o que fazer com ele? Ou fostes ensinado, por milhares de anos de
propaganda, que deveis ter um ideal — o oposto de "o que é" — para
poderdes enfrentar o presente? Quando tendes um ideal, credes que ele vos
ajudará a libertar-vos de "o que é", o que, entretanto, nunca
acontece.* Podeis pregar a não-violência até o fim de vossa vida, e em todo
esse tempo estar semeando os germes da violência.
Tendes
um conceito do que deveríeis ser e de como deveis agir, e o fato é que estais
sempre atuando de maneira completamente diferente. Vê-se, pois, que os
princípios levam inevitavelmente à hipocrisia e a uma vida desonesta. É o ideal
que cria o oposto de "o que é"; assim, se souberdes ficar com "o
que é", o oposto se tornará desnecessário.
O
procurardes tornar-vos igual a outrem ou igual ao vosso ideal é uma das
principais causas de contradição, de confusão e de conflito. A mente que está
confusa, não importa o que faça, em qualquer nível que deseja, permanecerá
confusa. Vejo isso muito claramente; vejo-o com tanta clareza como vejo um
perigo físico imediato. Que acontece, pois? Deixo de agir em termos de
confusão. Por conseguinte, a inação e ação completa.
VIII
A Libertação — A Revolta — A Solidão — A Inocência —
Viver com Nós Mesmos como Somos.
Nunca
as agonias da repressão, nem a brutalidade da disciplina de ajustamento a um
padrão conduziram à verdade. Para encontrar-se com a verdade, a mente deve
estar completamente livre e sem a mínima
deformação.
Mas,
primeiramente, perguntemo-nos se desejamos realmente ser livres. Quando falamos
de liberdade, estamo-nos referindo à liberdade completa ou à libertação de uma
certa coisa inconveniente, desagradável ou indesejável? Gostaríamos de ficar
livres de lembranças dolorosas e desagradáveis e de nossas experiências
infelizes, conservando, porém, nossas aprazíveis e satisfatórias ideologias,
fórmulas e relações. Mas, conservar uma coisa sem a outra é impossível, porque,
como já vimos, o prazer é inseparável da dor.
Cabe,
pois, a cada um de nós decidir se desejamos ou não ser completamente livres. Se
dizemos que o desejamos, temos então de compreender a natureza e a estrutura da
liberdade.
É
liberdade estar-se livre de alguma coisa — livre de uma dor, de uma espécie de
ansiedade? Ou a liberdade, em si, é coisa inteiramente diferente? Podeis estar
livre do ciúme, por exemplo, mas não é essa liberdade uma reação e, por
conseguinte, liberdade nenhuma? Podeis libertar-vos muito facilmente de um
dogma, analisando-o, rejeitando-o, mas o motivo dessa libertação tem sua reação
própria, porquanto o desejo de nos livrarmos de um dogma pode dever-se a ter
ele caído de moda, já não sendo conveniente. Ou podeis ficar livre do
nacionalismo por crerdes no internacionalismo, ou porque sentis que,
economicamente, já não é necessário estar-se apegado a esse estúpido dogma
nacionalista, com sua bandeira e demais futilidades. Podeis facilmente
rejeitá-lo. Ou podeis reagir a um certo líder espiritual ou político que vos
prometeu a libertação como resultado de disciplina e de revolta. Mas, terá uma
racionalização, uma conclusão dessa espécie, alguma coisa em comum com a
liberdade?
Se
dizeis que estais livre de uma certa coisa, trata-se de uma reação, que depois
se tornará outra reação que produzirá uma outra maneira de ajustamento, uma outra
forma de domínio. Dessa maneira, podeis ter uma cadeia de reações e aceitar
cada reação como uma libertação. Mas isso não é libertação, porém, apenas, a
continuidade modificada de um passado a que a mente está apegada.
A
juventude de hoje, como a juventude de sempre, está em revolta contra a
sociedade, e isso, em si, é uma coisa boa, mas revolta não é libertação,
porquanto o revoltar-se constitui uma reação, reação que estabelece o seu
peculiar padrão, no qual ficais enredado. Pensais que se trata de uma coisa
nova. Mas não é; é o velho, posto num diferente molde. Qualquer espécie de
revolta social ou política reverterá inevitavelmente à boa e velha mentalidade
burguesa.
A
liberdade só existe quando vedes e agis, e nunca mediante a revolta. Ver é
agir, e essa ação é tão importante como a ação que se modifica ao verdes um
perigo. Não há então atividade mental, não há discussão nem hesitação; o
próprio perigo compele ao ato e, por conseguinte, ver é agir e ser livre.
A
liberdade é um estado mental; não é estar livre de alguma coisa, porém um
estado de liberdade — liberdade para duvidar e questionar todas as coisas e,
portanto, uma liberdade tão intensa, ativa e vigorosa, que expulsa toda espécie
de dependência, de escravidão, de ajustamento e aceitação. Essa liberdade
implica o estar completamente só. Mas, pode a mente que foi criada numa dada
cultura e que tanto depende do ambiente e das próprias tendências descobrir
aquela liberdade que é solidão total e na qual não há líderes, nem tradição, e
nenhuma autoridade?
A
solidão é um estado mental interno, independente de qualquer estímulo ou
conhecimento, e não o resultado de alguma experiência ou conclusão. A maioria
de nós nunca está só, interiormente. Há diferença entre o isolar-se, o
segregar-se, e o estar só, a solidão. Todos sabemos o que significa estar
isolado — o levantar uma barreira ao redor de nós para que nunca sejamos
molestados, nunca sejamos vulneráveis; ou o cultivar o desapego, que é uma
outra espécie de agonia; ou o viver na fantástica torre de marfim de uma
ideologia. A solidão é completamente diferente disso.
Nunca
estais só porque estais cheio de todas as memórias, todas as murmurações de
ontem; vossa mente nunca está livre desses trastes imprestáveis que acumulou.
Para ficardes só, tendes de morrer para o passado. Quando estais só, totalmente
só, sem pertencer a qualquer família, a nenhuma nação, a qualquer continente em
particular, tendes a sensação de ser um estranho. O homem que, dessa maneira,
está completamente só, é inocente, e essa inocência é que liberta a mente do
sofrimento.
Levamos
conosco a carga de tudo o que disseram milhares de pessoas, e das lembranças de
todos os nossos infortúnios. Abandonar tudo isso, totalmente, é estar só, e a
mente que está só não apenas é inocente, mas também jovem — não no tempo ou na
idade, porém juvenil, purificada, viva, qualquer que seja a idade; só essa
mente pode ver o que é a verdade, e aquilo que as palavras não podem medir.
Nessa
solidão, compreendereis a necessidade de viverdes com vós mesmo tal como sois e
não como pensais deveríeis ser ou como fostes. Vede se podeis olhar-vos sem
nenhum estremecimento, sem falsa modéstia, medo, justificação ou condenação;
vivei com vós mesmo, tal como realmente sois.
Só
vivendo intimamente com uma coisa, começais a compreendê-la. Mas, tão logo vos
acostumais com ela, tão logo vos acostumais com vossa ansiedade ou inveja ou o
que mais seja, já não estais vivendo com ela. Se ides morar perto de um rio,
passadas algumas semanas já não ouvireis o som das águas, ou, se tendes um
quadro na sala, que vedes todos os dias, após uma semana já o perdestes. O mesmo em relação às montanhas, aos vales,
às árvores; o mesmo em relação aos filhos, ao marido, à esposa. Mas, para
viverdes com uma coisa, tal como o ciúme, a inveja, a ansiedade, nunca deveis
acostumar-vos com ela, nunca deveis aceitá-la. Deveis cuidar dela, como cuidais
de uma árvore recém-plantada, que protegeis contra o sol e as intempéries.
Tendes de zelar aquela coisa, jamais condená-la ou justificá-la. Assim, começais
a amá-la. Quando tendes zelo por ela, já estais começando a amá-la. Isso não
significa amar a inveja ou a ansiedade, como há quem o faça, porém, sim, ter o
zelo necessário à observação.
Assim,
será possível, vós e eu, vivermos com o que realmente somos, sabendo que somos
estúpidos, invejosos, medrosos, crentes de que possuímos uma enorme capacidade
de afeição, quando não a possuímos, facilmente ofendidos, facilmente
lisonjeados e entediados; poderemos viver com tudo isso, sem o aceitar nem
rejeitar, porém, tão-só, observando-o, sem nos tornarmos mórbidos, deprimidos
ou orgulhosos?
Agora,
façamos a nós mesmos mais uma pergunta: Pode essa liberdade, essa solidão, essa
entrada em contato com a inteira estrutura daquilo que somos em nós mesmos, ser
alcançada mediante o tempo? Isto é, pode a liberdade ser alcançada por meio de
um processo gradual? Não pode, evidentemente, porque, tão logo se introduz o
tempo, ficais a escravizar-vos cada vez mais. Ninguém pode libertar-se
gradualmente. Não é uma questão de tempo.
A
pergunta subseqüente é esta: Podeis tornar-vos consciente dessa liberdade? Se
dizeis "Sou livre", nesse caso não estais livre. É o mesmo que um
homem dizer "Sou feliz". No momento em que diz: "Sou
feliz", está vivendo na lembrança de uma coisa passada. A liberdade só
pode vir naturalmente, e não pelo crer, desejar, ansiar por ela. Também, não
pode ser encontrada mediante a criação de uma imagem do que pensais ser ela.
Para encontrar-se com ela, a mente tem de aprender a olhar a vida, esse vasto
movimento não sujeito ao tempo, porque a liberdade reside além do campo da
consciência.
IX
O Tempo — O Sofrimento — A Morte
Sou
tentado a repetir a história de um grande discípulo que foi a Deus pedir que
lhe ensinasse a verdade.
Disse
o "pobre" Deus: "Meu amigo, hoje está fazendo muito calor; por
favor, vai buscar-me um copo d'água". O discípulo sai e vai bater à porta
da primeira casa que encontra e uma linda jovem lhe abre a porta. O discípulo
dela se enamora, os dois se casam e têm vários filhos. Então, um dia começa a
chover, a chover sem parar. Os rios se engrossam, as ruas se inundam, as casas
são arrastadas pelas águas. O discípulo se agarra à mulher, põe sobre os ombros
os filhos e. ao sentir-se arrastado pela torrente, brada: "Senhor, imploro-vos
que me salveis". E o Senhor responde: "Que é do copo d'água que te
pedi?"
É uma
história bastante instrutiva, porquanto, em geral, pensamos em termos de tempo.
O homem vive do tempo. A invenção do futuro se tornou seu favorito jogo de
fuga.
Pensamos
que as mudanças em nós mesmos só podem ser efetuadas no tempo, que a ordem só
pode ser estabelecida em nós mesmos pouco a pouco, aumentada dia por dia. Mas,
o tempo não traz a ordem nem a paz e, portanto, temos de deixar de pensar em
termos de gradualidade. Isso significa que não há um amanhã em que viveremos em
paz, Temos de alcançar a ordem imediatamente.
Quando
se apresenta um perigo real, o tempo desaparece, não é verdade? A ação é
imediata. Mas, nós não percebemos o perigo
existente em muitos
dos nossos problemas e,
por conseguinte, inventamos o tempo como um meio de superá-los. O tempo
é um embusteiro, porquanto nada faz para ajudar-nos a promover uma mudança em
nós mesmos. O tempo é um movimento que o homem dividiu em passado, presente e
futuro. E, enquanto fizer essa divisão, o homem viverá sempre em conflito.
O
aprender depende do tempo? Após tantos milhares de anos, ainda não aprendemos
que existe uma maneira de vida melhor do que odiarmos e matarmos uns aos
outros. Muito importa compreender o problema do tempo, se desejamos uma solução
para esta vida que cada um de nós contribuiu para tornar tão monstruosa e sem
significação como é.
A
primeira coisa, pois, que se deve compreender é que só podemos olhar o tempo
com aquele vigor e aquela inocência da mente, que já estivemos considerando.
Vemo-nos confusos a respeito de nossos numerosos problemas, e perdidos no meio
desta confusão. Ora, quando uma pessoa se perde numa floresta, qual a primeira
coisa que faz? Pára e olha em torno de si. Mas nós, quanto mais nos vemos
confusos e perdidos na vida, tanto mais corremos em todos os sentidos,
buscando, indagando, rogando. A primeira coisa que deveis fazer, se me permitis
sugeri-lo, é fazer alto, interiormente. E, quando parais, interiormente,
psicologicamente, vossa mente se torna muito tranqüila e clara. Podeis então
considerar verdadeiramente a questão do tempo.
Os
problemas só existem no tempo, isto é, quando nos encontramos com um fato de
maneira incompleta. Esse encontro incompleto com o fato cria o problema. Quando
enfrentamos um desafio parcial, fragmentariamente, ou dele tentamos fugir —
isto é, quando o enfrentamos com atenção incompleta — criamos um problema. E o
problema continua existente enquanto continuarmos a dar-lhe incompleta atenção,
enquanto esperarmos resolvê-lo um dia destes.
Sabeis
o que é o tempo? — Não o tempo medido pelo relógio, o tempo cronológico, porém
o tempo psicológico? É o intervalo entre a idéia e a ação. Uma idéia visa,
naturalmente, à autoproteção: a idéia de estar em segurança. A ação é sempre
imediata; não é do passado nem do futuro; o agir deve estar sempre no presente;
mas a ação é tão perigosa, tão incerta, que preferimos ajustar-nos a uma idéia
que nos promete uma certa segurança.
Olhai
isso em vós mesmo. Tendes uma idéia do que é certo ou errado, ou um conceito
ideológico relativo a vós mesmo e à sociedade, e de acordo com essa idéia ides
agir. A ação, por conseguinte, ajusta-se àquela idéia, aproxima-se da idéia, e
por essa razão existe sempre conflito. Há a idéia, o intervalo, e a ação. Nesse
intervalo encontra-se todo o campo do tempo. Esse intervalo é, essencialmente,
pensamento. Quando pensais que amanhã sereis feliz, tendes então uma imagem de
vós mesmo a alcançar um certo resultado no tempo. O pensamento, pela observação,
pelo desejo, e pela continuidade desse desejo, sustentada por mais pensamento,
diz: "Amanhã serei feliz; amanhã terei sucesso; amanhã o mundo será um
belo lugar." Dessa maneira, o pensamento cria esse intervalo que é o
tempo.
Agora,
perguntamos: Pode-se deter o tempo? Podemos viver tão completamente que não
haja um amanhã para o pensamento pensar nele? Pois o tempo é sofrimento. Isto
é, ontem ou há um milhar de "ontens", amastes ou tínheis um
companheiro que se foi, e essa memória perdura e ficais pensando naquele prazer
ou naquela dor; estais a olhar para trás e a desejar, a esperar, a lamentar, e,
assim, o pensamento, ruminando continuamente aquilo, gera essa coisa que se
chama sofrimento e dá continuidade ao tempo.
Enquanto
existir esse intervalo de tempo, gerado pelo pensamento, tem de haver
sofrimento, tem de haver a continuidade do medo. Assim, perguntamos a nós
mesmos: Pode esse intervalo terminar? Se disserdes: "Terminará ele algum
dia?", isso então já é uma idéia, uma coisa que desejais conseguir e, por
conseguinte, tendes um intervalo e de novo vos vede na armadilha.
Agora,
considere-se a questão da morte, um problema imenso para a maioria das pessoas.
Conheceis a morte, pois a vedes todos os dias, andando a vosso lado. Será
possível encararmos a morte de maneira tão completa, que não façamos dela um
problema? Para a encararmos dessa
maneira, todas as crenças, todas as esperanças, todos os temores a ela
relativos devem acabar, senão estareis encarando essa coisa extraordinária com
uma conclusão, uma imagem, com uma ansiedade premeditada e, por conseguinte, a
estareis encarando com o tempo. O tempo é o intervalo entre o observador e a
coisa observada. Isto é, o observador — vós — tem medo de enfrentar essa coisa
chamada "morte". Não sabeis o que ela significa; tendes esperanças e
teorias de toda espécie a respeito dela; credes na reencarnação ou na
ressurreição, ou numa certa coisa chamada alma, "atman", uma entidade
espiritual, eterna, a que chamais por diferentes nomes. Ora, já descobristes
por vós mesmo se existe alguma alma? Ou trata-se de uma idéia que vos foi dada
pela tradição? Existe alguma coisa de permanente, de contínuo, além do
pensamento? Se o pensamento pode pensar nela, ela se acha no campo do
pensamento e, por conseguinte, não pode ser permanente, porque, no campo do
pensamento, não existe nada permanente. É de enorme importância descobrir que
nada é permanente, porque só então a mente estará livre, só então poder-se-á
olhar; e nisso há uma imensa alegria.
Não
podeis ter medo do desconhecido, pois não sabeis o que ele é e, portanto, não
há nada que temer. A morte é uma palavra, e é a palavra, a imagem que cria o
medo. Assim, podeis olhar a morte sem a imagem da morte? Enquanto existir a
imagem, que dá origem ao pensamento, o pensamento haverá sempre de criar medo.
Tratais então de racionalizar o vosso medo da morte e de levantar uma
resistência contra o inevitável, ou inventais inumeráveis crenças para vos
protegerdes do medo da morte. Há, portanto, um vão entre vós e a coisa de que
tendes medo. Nesse intervalo de espaço-tempo tem de haver conflito, ou seja
medo, ansiedade, autocompaixão. O pensamento, que gera o medo da morte, diz:
"Adiemo-la, evitemo-la, mantenhamo-la o mais distante possível, não
pensemos nela" — mas vós estais pensando nela. Ao dizerdes "Não quero
pensar nela", já pensastes numa maneira de evitá-la. Tendes medo da morte,
porque a tendes adiado.
Separamos
o viver do morrer, e o intervalo entre o viver e o morrer é — medo. Esse
intervalo, esse tempo, é criado pelo medo. Viver é nossa tortura diária —
insultos, sofrimentos, confusão, e, ocasionalmente, uma janela aberta nos
mostra mares encantados. É a isso que chamamos "viver", e temos medo
de morrer, que é o fim dessa aflição. Preferimos aferrar-nos ao conhecido a
enfrentar o desconhecido — o conhecido, que é nossa casa, nossos móveis, nossa
família, nosso caráter, nosso trabalho, nossos conhecimentos, nossa fama, nossa
solidão, nossos deuses — essa coisa insignificante que incessantemente gravita
em torno de si própria, com seu limitado padrão de amargurada existência.
Pensamos
que o viver está sempre no presente e que o morrer é algo que nos aguarda num
tempo distante. Mas nunca indagamos se essa batalha da vida diária é de fato
viver. Queremos saber a verdade a respeito da reencarnação, desejamos provas da
sobrevivência da alma, prestamos ouvidos às asserções dos clarividentes e às
conclusões das pesquisas psíquicas, porém nunca perguntamos, nunca perguntamos
como viver — viver com deleite, com encantamento, com a beleza, todos os dias.
Aceitamos a vida tal qual é, com toda a sua agonia e desespero, com ela nos
acostumamos, e pensamos na morte como uma coisa que devemos diligentemente
evitar. Mas, a morte se assemelha extraordinariamente à vida, quando sabemos viver.
Não podeis viver sem morrer. Isso não é um paradoxo intelectual. Para se viver
completamente, totalmente, de modo que cada dia seja uma nova beleza, tem-se de
morrer para todas as coisas de ontem, pois, de contrário, viveremos
mecanicamente, e uma mente mecânica jamais saberá o que é o amor ou o que é a
liberdade.
Em
geral tememos a morte, porque não sabemos o que significa viver. Não sabemos
viver, e por isso não sabemos morrer. Enquanto tivermos medo da vida, teremos
medo da morte. O homem que não teme a vida não teme a insegurança, porque
compreende que, interiormente, psicologicamente, não existe segurança nenhuma.
Quando não há segurança, há um movimento infinito, e então a vida e a morte são
uma só coisa. O homem que vive sem conflito, que vive com a beleza e o amor,
não teme a morte, porque amar é morrer.
Se
morreis para tudo o que conheceis, inclusive vossa família, vossa memória, tudo
o que sentistes, a morte é então uma purificação, um processo de
rejuvenescimento; traz então a morte a inocência, e só os inocentes são
apaixonados, e não aqueles que crêem e que desejam descobrir o que acontece
após a morte.
Para
descobrirdes o que realmente acontece quando se morre, tendes de morrer. Isso
não é pilhéria. Tendes de morrer, não fisicamente, mas psicologicamente,
interiormente, morrer para as coisas que vos são caras e para as coisas que vos
amarguram. Se morrestes para cada um dos vossos prazeres, tanto os
insignificantes como os mais importantes, sem nenhuma compulsão ou discussão,
então sabereis o que significa morrer. Morrer é ter uma mente completamente
vazia de si mesma, vazia de seus diários anseios, prazeres e agonias. A morte é
uma renovação, uma mutação, em que o pensamento não funciona, porque o
pensamento é coisa velha. Quando há a morte, há uma coisa totalmente nova.
Estar livre do conhecimento é morrer; e, então, estais vivendo!
X
O Amor
A
necessidade de segurança nas relações gera inevitavelmente o sofrimento e o
medo. Essa busca de segurança atrai a insegurança. Já encontrastes alguma vez
segurança em alguma de vossas relações? Já? A maioria de nós quer a segurança
no amar e no ser amado, mas existirá amor quando cada um está a buscar a
própria segurança, seu caminho próprio? Nós não somos amados porque não sabemos
amar.
Que é
o amor? Esta palavra está tão carregada e corrompida, que quase não tenho
vontade de empregá-la. Todo o mundo fala de amor — toda revista e jornal e todo
missionário discorre interminavelmente sobre o amor. Amo a minha pátria, amo o
meu rei, amo um certo livro, amo aquela montanha, amo o prazer, amo minha
esposa, amo a Deus. O amor é uma idéia? Se é, pode então ser cultivado,
nutrido, conservado com carinho, moldado, torcido de todas as maneiras
possíveis. Quando dizeis que amais a Deus, que significa isso? Significa que
amais uma projeção de vossa própria imaginação, uma projeção de vós mesmo,
revestida de certas formas de respeitabilidade, conforme o que pensais ser
nobre e sagrado; o dizer "Amo a Deus" é puro contra-senso. Quando
adorais a Deus, estais adorando a vós mesmo; e isso não é amor.
Incapazes,
que somos, de compreender essa coisa humana chamada amor, fugimos para
abstrações. O amor pode ser a solução final de todas as dificuldades, problemas
e aflições humanas. Assim, como iremos descobrir o que é o amor? Pela simples
definição? A Igreja o tem definido de uma maneira, a sociedade de outra, e há
também desvios e perversões de toda espécie. A adoração de uma certa pessoa, o
amor carnal, a troca de emoções, o companheirismo — será isso o que se entende
por amor? Essa foi sempre a norma, o padrão, que se tornou tão pessoal,
sensual, limitado, que as religiões declararam que o amor é muito mais do que
isso. Naquilo que denominam "amor humano", vêem elas que existe
prazer, competição, ciúme, desejo de possuir, de conservar, de controlar, de
influir no pensar de outrem e, sabendo da complexidade dessas coisas, dizem as
religiões que deve haver outra espécie de amor — divino, belo, imaculado,
incorruptível.
Em
todo o mundo, certos homens chamados "santos" sempre sustentaram que
olhar para uma mulher é pecaminoso; dizem que não podemos aproximar-nos de Deus
se nos entregamos ao sexo e, por conseguinte, o negam, embora eles próprios se
vejam devorados por ele. Mas, negando o sexo, esses homens arrancam os próprios
olhos, decepam a própria língua, uma vez que estão negando toda a beleza da
Terra. Deixaram famintos os seus corações e a sua mente; são entes humanos
"desidratados"; baniram a beleza, porque a beleza está ligada à
mulher.
Pode
o amor ser dividido em sagrado e profano, humano e divino, ou só há amor} O
amor é para um só e não para muitos? Se digo "Amo-te", isso exclui o
amor a outro? O amor é pessoal ou impessoal? Moral ou imoral? Familial ou não
familial? Se amais a humanidade, podeis amar o indivíduo? O amor é sentimento?
Emoção? O amor é prazer e desejo? Todas essas perguntas indicam — não é
verdade? — que temos idéias a respeito do amor, idéias sobre o que ele deve ou
não deve ser, um padrão, um código criado pela cultura em que vivemos.
Assim,
para examinarmos a questão do amor — o que é o amor — devemos primeiramente
libertar-nos das incrustações dos séculos, lançar fora todos os ideais e
ideologias sobre o que ele deve ou não deve ser. Dividir qualquer coisa em o
que deveria ser e o que é, é a maneira mais ilusória de enfrentar a vida.
Ora,
como iremos saber o que é essa chama que denominamos amor — não a maneira de
expressá-lo a outrem, porém o que ele próprio significa? Em primeiro lugar,
rejeitarei tudo o que a Igreja, a sociedade, meus pais e amigos, todas as
pessoas e todos os livros disseram a seu respeito, porque desejo descobrir por
mim mesmo o que ele é. Eis um problema imenso, que interessa a toda a
humanidade; há milhares de maneiras de defini-lo e eu próprio me vejo todo
enredado neste ou naquele padrão, conforme a coisa que, no momento, me dá gosto
ou prazer. Por conseguinte, para compreender o amor, não devo em primeiro lugar
libertar-me de minhas inclinações e preconceitos? Vejo-me confuso, dilacerado
pelos meus próprios desejos e, assim, digo entre mim: "Primeiro, dissipa a
tua confusão. Talvez tenhas possibilidade de descobrir o que é o amor através
do que ele não é".
O
governo ordena: "Vai e mata, por amor à pátria!" Isso é amor? A
religião preceitua: 'Abandona o sexo, pelo amor de Deus". Isso é amor? O
amor é desejo? Não digais que não. Para a maioria de 41ÓS, ;,é; desejo
acompanhado de prazer, prazer derivado dos sentidos, pelo apego e o
preenchimento sexual. Não sou contrário ao sexo, mas vede o que ele implica. O
que o sexo vos dá momentaneamente é o total abandono de vós mesmo, mas, depois,
voltais à vossa agitação; por conseguinte, desejais a constante repetição desse
estado livre de preocupação, de problema, do "eu". Dizeis que amais
vossa esposa. Nesse amor está implicado o prazer sexual, o prazer de terdes uma
pessoa em casa para cuidar dos filhos e cozinhar. Dependeis dela; ela vos deu o
seu corpo, suas emoções, seus incentivos, um certo sentimento de segurança e
bem--estar. Um dia, ela vos abandona; aborrece-se ou foge com outro homem, e
eis destruído todo o vosso equilíbrio emocional; essa perturbação, de que não
gostais, chama-se ciúme. Nele existe sofrimento, ansiedade, ódio e violência.
Por conseguinte, o que realmente estais dizendo é: "Enquanto me pertences,
eu te amo; mas, tão logo deixes de pertencer-me, começo a odiar-te. Enquanto
posso contar contigo para satisfação de minhas necessidades sociais e outras,
amo-te, mas, tão logo deixes de atender a minhas necessidades, não gosto mais
de ti". Há, pois, antagonismo
entre ambos, há separação, e quando vos sentis separados um do outro,
não há amor. Mas, se puderdes viver com vossa esposa sem que o pensamento crie
todos esses estados contraditórios, essas intermináveis contendas dentro de vós
mesmo, talvez então — talvez — sabereis o que é o amor. Sereis então
completamente livre, e ela também; ao passo que, se dela dependeis para os
vossos prazeres, sois seu escravo. Portanto, quando uma pessoa ama, deve haver
liberdade — a pessoa deve estar livre, não só da outra, mas também de si
própria.
No
estado de pertencer a outro, de ser psicologicamente nutrido por outro, de
outro depender — em tudo isso existe sempre, necessariamente, a ansiedade, o
medo, o ciúme, a culpa, e enquanto existe medo, não existe amor. A mente que se
acha nas garras do sofrimento jamais conhecerá o amor; o sentimentalismo e a
emotividade nada, absolutamente nada, têm que ver com o amor. Por conseguinte,
o amor nada tem em comum com o prazer e o desejo.
O
amor não é produto do pensamento, que é
o passado.
O
pensamento não pode de modo nenhum cultivar o amor.
O
amor não se deixa cercar e enredar pelo ciúme; porque o ciúme vem do passado. O
amor é sempre o presente ativo. Não é "amarei" ou
"amei". Se conheceis o amor,
não seguireis ninguém. O amor não obedece. Quando se ama, não há respeito nem
desrespeito.
Não
sabeis o que significa amar realmente alguém — amar sem ódio, sem ciúme, sem
raiva, sem procurar interferir no que o outro faz ou pensa, sem condenar, sem
comparar — não sabeis o que isso significa? Quando há amor, há comparação?
Quando amais alguém de todo o coração, com toda a vossa mente, todo o vosso
corpo, todo o vosso ser, existe comparação? Quando vos abandonais completamente
a esse amor, não existe "o outro".
O
amor tem responsabilidades e deveres, e emprega tais palavras? Quando fazeis
alguma coisa por dever, há nisso amor? No dever não há amor. A estrutura do
dever, na qual o ente humano se vê aprisionado, o está destruindo. Enquanto
sois obrigado a fazer uma coisa, porque é vosso dever fazê-la, não amais a
coisa que estais fazendo. Quando há amor, não há dever nem responsabilidade.
A
maioria dos pais, infelizmente, pensa que são responsáveis por seus filhos, e
seu senso de responsabilidade toma a forma de preceituar-lhes o que devem fazer
e o que não devem fazer, o que devem ser e o que não devem ser. Querem que os
filhos conquistem uma posição segura na sociedade. Aquilo a que chamam
responsabilidade faz parte daquela respeitabilidade que eles cultivam; e a mim
me parece que, onde há respeitabilidade, não existe ordem; só lhes interessa o
tornar-se um perfeito burguês. Preparando os filhos para se adaptarem à
sociedade, estão perpetuando a guerra, o conflito e a brutalidade. Pode-se chamar a isso zelo e amor?
Zelar,
com efeito, é cuidar como se cuida de uma árvore ou de uma planta, regando-a,
estudando as suas necessidades, escolhendo o solo mais adequado, tratá-la com
carinho e ternura; mas, quando preparais os vossos filhos para se adaptarem à
sociedade, os estais preparando para serem mortos. Se amasseis vossos filhos,
não haveria guerras.
Quando
perdeis alguém que amais, verteis lágrimas; essas lágrimas são por vós mesmo ou
pelo morto? Estais pranteando a vós mesmo ou ao outro? Já chorastes por outrem?
Já chorastes o vosso filho, morto no campo de batalha? Chorastes, decerto, mas
essas lágrimas foram produto da autocompaixão ou chorastes porque um ente
humano foi morto? Se chorais por autocompaixão, vossas lágrimas nada
significam, porque estais interessado em vós mesmo. Se chorais porque vos foi
arrebatada uma pessoa em quem "depositastes" muita afeição, não se
trata de uma afeição real. Se chorais a morte de vosso irmão, chorai por e/e! É
muito fácil chorardes por vós mesmo porque ele partiu. Aparentemente, chorais
porque vosso coração foi atingido, mas não foi atingido por causa dele; foi
atingido pela autocompaixão, e a autocompaixão vos endurece, vos fecha, vos
torna embotado e estúpido.
Quando
chorais por vós mesmo, será isso amor? — chorar porque ficastes sozinho, porque
perdestes o vosso poder; queixar-vos de vossa triste sina, de vosso ambiente —
sempre vós a verter lágrimas. Se compreenderdes esse fato, e isso significa
pôr-vos em contato com ele tão diretamente como quando tocais uma árvore ou uma
coluna ou uma mão, vereis então que o sofrimento é produto do "eu", o
sofrimento é criado pelo pensamento, o sofrimento é produto do tempo. Há três
anos eu tinha meu irmão; hoje ele é morto e estou sozinho, desolado, não tenho
mais a quem recorrer para ter conforto ou companhia, e isso me traz lágrimas
aos olhos.
Podeis
ver ludo isso acontecer dentro de vós mesmo, se o observardes. Podeis vê-lo de
maneira plena, completa, num relance, sem precisardes do tempo analítico.
Podeis ver num momento toda a estrutura e natureza dessa coisa desvaliosa e
insignificante, chamada "eu" — minhas lágrimas, minha família, minha
nação, minha crença, minha religião — toda essa fealdade está em vós. Quando a
virdes com vosso coração, e não com vossa mente, quando a virdes do fundo de
vosso coração, tereis então a chave que acabará com o sofrimento.
O
sofrimento e o amor não podem coexistir, mas no mundo cristão idealizaram o
sofrimento, crucificaram-no para o adorar, dando a entender que ninguém pode
escapar ao sofrimento a não ser por aquela única porta; tal é a estrutura de
uma sociedade religiosa, exploradora.
Assim,
ao perguntardes o que é o amor, podeis ter muito medo de ver a resposta. Ela
pode significar uma completa reviravolta; poderá dissolver a família; podeis
descobrir que não amais vossa esposa ou marido ou filhos (vós os amais?);
podeis ter de demolir a casa que construístes; podeis nunca mais voltar ao
templo.
Mas,
se desejais continuar a descobrir, vereis que o medo não é amor, a dependência
não é amor, o ciúme não é amor, a posse e o domínio não são amor,
responsabilidade e dever não são amor, autocompaixão não é amor, a agonia de
não ser amado não é amor, que o amor não é o oposto do ódio, como também a
humildade não é o oposto da vaidade. Dessarte, se fordes capaz de eliminar tudo
isso, não à força, porém lavando-o assim como a chuva fina lava a poeira de
muitos dias depositada numa folha, então, talvez, encontrareis aquela flor
peregrina que o homem sempre buscou sequiosamente.
Se
não tendes amor — não em pequenas gotas, mas em abundância; se não estais
transbordando de amor, o mundo irá ao desastre. Intelectualmente, sabeis que a unidade
humana é a coisa essencial e que o amor constitui o único caminho para ela, mas
quem pode ensinar-vos a amar? Poderá uma autoridade, um método, um sistema ensinar-vos
a amar? Se alguém vo-lo ensina, isso não é amor. Podeis dizer: "Eu me
exercitarei para o amor. Sentar-me-ei todos os dias para refletir sobre ele.
Exercitar-me-ei para ser bondoso, delicado e me forçarei a ser atencioso com os
outros"? — Achais que podeis disciplinar-vos para amar, que podeis exercer
a vontade para amar? Quando exerceis a vontade e a disciplina para amar, o amor
vos foge pela janela. Pela prática de um certo método ou sistema de amar,
podeis tornar-vos muito hábil, ou mais bondoso, ou entrar num estado de
não-violência, mas nada disso tem algo em comum com o amor.
Neste
mundo tão dividido e árido não há amor, porque o prazer e o desejo têm a máxima
importância, e, todavia, sem amor, vossa vida diária é sem significação.
Também, não podeis ter o amor se não tendes a beleza. A beleza não é uma certa
coisa que vedes — não é uma bela árvore, um belo quadro, um belo edifício ou
uma bela mulher; só há beleza quando o vosso coração e a vossa mente sabem o
que é o amor. Sem o amor e aquele percebimento da beleza, não há virtude, e
sabeis muito bem que tudo o que fizerdes — melhorar a sociedade, alimentar os
pobres — só criará mais malefício, porque, quando não há amor, só há fealdade e
pobreza em vosso coração e vossa mente. Mas, quando há amor e beleza, tudo o
que se faz é correto, tudo o que se faz é ordem. Se sabeis amar, podeis fazer o
que desejardes, porque o amor resolverá todos os outros problemas.
Alcançamos,
assim, este ponto: Poderá a mente encontrar o amor sem precisar de disciplina,
de pensamento, de coerção, de nenhum livro, instrutor ou guia — encontrá-lo
assim como se encontra um belo pôr-de-sol?
Uma
coisa me parece absolutamente necessária: a paixão sem motivo, a paixão não
resultante de compromisso ou ajustamento, a paixão que não é lascívia. O homem
que não sabe o que é paixão, jamais conhecerá o amor, porque o amor só pode
existir quando a pessoa se desprende totalmente de si própria.
A
mente que busca não é uma mente apaixonada, e não buscar o amor é a única
maneira de encontrá-lo; encontrá-lo inesperadamente e não como resultado de
qualquer esforço ou experiência. Esse amor, como vereis, não é do tempo; ele é
tanto pessoal como impessoal, tanto um só como multidão. Como uma flor
perfumosa, podeis aspirar-lhe o perfume, ou passar por ele sem o notardes.
Aquela flor é para todos e para aquele que se curva para aspirá-la
profundamente e olhá-la com deleite. Quer estejamos muito perto, no jardim,
quer muito longe, isso é indiferente à flor, porque ela está cheia de seu
perfume e pronta a reparti-lo com todos.
O
amor é uma coisa nova, fresca, viva. Não tem ontem nem amanhã. Está além da
confusão do pensamento. Só a mente inocente sabe o que é o amor, e a mente
inocente pode viver no mundo não inocente. Só é possível encontrá-la, essa
coisa maravilhosa que o homem sempre buscou sequiosamente por meio de
sacrifícios, de adoração, das relações, do sexo, de toda espécie de prazer e de
dor, só é possível encontrá-la quando o pensamento, alcançando a compreensão de
si próprio, termina naturalmente. O amor não conhece oposto, não conhece
conflito.
Podeis
perguntar: "Se encontro esse amor, que será de minha mulher, de minha
família? Eles precisam de segurança". Fazendo essa pergunta, mostrais que
nunca estivestes fora do campo do pensamento, fora do campo da consciência.
Quando tiverdes alguma vez estado fora desse campo, nunca fareis uma tal
pergunta, porque sabereis o que é o amor em que não há pensamento e, por
conseguinte, não há o tempo. Podeis ler tudo isto hipnotizado e encantado, mas ultrapassar
realmente o pensamento e o tempo — o que significa transcender o sofrimento — é
estar cônscio de uma dimensão diferente, chamada "amor".
Mas,
não sabeis como chegar-vos a essa fonte maravilhosa — e, assim, que fazeis?
Quando não sabeis o que fazer, nada fazeis, não é verdade? Nada, absolutamente.
Então, interiormente, estais completamente em silêncio. Compreendeis o que isso
significa? Significa que não estais buscando, nem desejando, nem perseguindo;
não existe centro nenhum. Há, então, o amor.
XI
Observar e Escutar — A Arte — A Beleza — A
Austeridade — As Imagens — Os Problemas — O Espaço.
Acabamos
de investigar a natureza do amor e alcançamos, creio, um ponto que requer maior
penetração, maior percebimento. Descobrimos que, para a maioria, amor significa
conforto, segurança, uma garantia de satisfação emocional, contínua, para o
resto da vida. Chega então uma pessoa como eu e diz: "Será isso realmente
amor?", e vos contesta, e vos pede que olheis para dentro de vós mesmo.
Procurais não olhar, porque isso é muito perturbador; seria preferível discutir
sobre a alma ou a situação política ou econômica. Mas, quando vos vedes
encostado a um canto e obrigado a olhar, percebeis que isso que sempre
pensastes ser amor não é, de forma nenhuma, amor; é uma satisfação mútua, mútua
exploração.
Quando
digo: "O amor não tem amanhã nem ontem", ou "não existindo
centro algum, então há amor", isso tem realidade para mim, mas não para
vós. Podeis citá-lo e convertê-lo numa fórmula, mas sem qualquer validade.
Tendes de ver o fato por vós mesmo, e, para tanto, necessita-se de liberdade
para olhar, precisa-se estar livre de toda condenação, de todo juízo, de toda
aquiescência ou discordância.
Ora,
olhar é uma das coisas mais difíceis da vida — ou escutar — olhar e escutar são
a mesma coisa. Se vossos olhos estão obcecados por vossas inquietações, não
podeis ver a beleza do pôr-do-sol. A maioria de nós perdeu o contato com a
natureza. A civilização tende muito à
formação de grandes cidades; estamo-nos tornando cada vez mais gente urbana,
vivendo em apartamentos apertados, e tendo muito pouco espaço mesmo para olhar
o céu da tarde e da manhã e, por conseguinte, estamos perdendo o contato com a
beleza. Não sei se já notastes quão poucos dentre nós olham o nascer ou o pôr-do-sol,
ou o luar ou os reflexos da luz na água.
Tendo
perdido o contato com a natureza, tendemos naturalmente a desenvolver as
aptidões intelectuais. Lemos um grande número de livros, freqüentamos muitos
museus e concertos, vemos televisão e temos outros mais entretenimentos.
Citamos interminavelmente as idéias de outrem, muito pensamos e falamos sobre
arte. Por que razão dependemos tanto da arte? Constitui ela uma forma de fuga,
de estímulo? Se estais diretamente em contato com a natureza; se observais o movimento
de uma ave a voar, se vedes a beleza de cada movimento das nuvens, observais as
sombras nos montes ou a beleza manifestada no rosto de outra pessoa, achais que
tereis vontade de ir a um museu para ver quadros? Talvez, porque não sabeis
olhar todas as coisas que vos circundam; talvez seja por essa razão que
recorreis a uma certa droga, para estimular--vos a ver melhor.
Conta-se
uma história acerca de um instrutor religioso que todas as manhãs falava aos
seus discípulos. Uma certa manhã, subiu ao palanque e, justamente quando ia
começar a falar, um passarinho pousou no peitoril de uma janela e começou a
cantar, a cantar, com toda a alma. Depois calou-se e foi-se, a voar. Disse
então o instrutor: "Está terminado o sermão desta manhã".
Parece-me
que uma das nossas maiores dificuldades é vermos, por nós mesmos, com toda a
clareza, não só as coisas exteriores, mas também a vida interior. Quando
dizemos que vemos uma árvore ou uma flor ou uma pessoa, vemo-la realmente? Ou
vemos meramente a imagem que a palavra criou? Isto é, quando olhais uma árvore
ou uma nuvem, numa tarde luminosa, vós a vedes realmente, não só com vossos
olhos e intelectualmente, porém totalmente, completamente?
Já
experimentastes alguma vez olhar uma coisa objetiva, uma árvore, por exemplo,
sem nenhuma das
associações, nenhum dos conhecimentos que a respeito dela adquiristes, sem
nenhum preconceito, nenhum juízo, nenhuma palavra a constituir uma cortina
entre vós e a árvore, e impedindo-vos de a ver tal qual é realmente? Experimentai,
para verdes o que realmente acontece, quando observais a árvore com todo o
vosso ser, com a totalidade de vossa energia. Nessa intensidade, vereis que não
há observador nenhum; só há atenção. Só quando há desatenção existe
"observador e coisa observada". Quando estais olhando com atenção
completa, não há espaço para nenhum conceito, fórmula, lembrança. Importa
compreender isso, porque vamos examinar um assunto que requer mui cuidadosa
investigação.
Só a
mente que olha as árvores ou as estrelas com total abandono de si própria, só
essa mente sabe o que é a beleza, e quando estamos realmente vendo, achamo-nos
num estado de amor. Em geral, conhecemos a beleza pela comparação ou através
das criações do homem, o que significa que atribuímos beleza a um certo objeto.
Vejo aquilo que considero um belo edifício e aprecio essa beleza por causa de
meu conhecimento de arquitetura e pela comparação com outros edifícios que vi.
Mas, agora pergunto a mim mesmo: "Existe beleza sem objeto?". Quando
há um observador, ou seja o censor, o experimentador, o pensador, não há
beleza, porque a beleza é então algo exterior, algo que o observador olha e
julga; mas, quando não há observador — e isso requer muita meditação,
investigação — há então a beleza sem objeto.
A
beleza reside no total abandono do observador e da coisa observada, e só pode
haver auto-abandono quando há austeridade total, não a austeridade do
sacerdote, com sua rudeza, suas sanções, regras e obediência; não a austeridade
no vestir, nas idéias, no alimentar-se, no comportamento — porém a austeridade
que consiste em ser totalmente simples, que é a humildade completa. Não há
então realização, não há escada para galgar, só há o primeiro degrau, e o
primeiro degrau é o degrau eterno.
Suponhamos,
por exemplo, que estejais passeando a sós ou com alguém, e vos calastes. Estais
rodeado pela natureza e não se ouve o latido de um cão, o barulho de um carro
que passa, nem mesmo o ruflar das asas de um pássaro. Estais em completo
silêncio, e silenciosa também está a natureza circundante. Nesse estado de
silêncio existente tanto no observador como na coisa observada — quando o
observador não está a traduzir em pensamento o que está vendo — nesse silêncio
há uma diferente qualidade de beleza. Não existe nem a natureza nem o observador.
O que existe é um estado em que a mente está total e completamente só; só — não
isolada — só em sua quietude, e essa quietude é beleza. Quando amais, existe
algum observador? Só há observador quando o amor é desejo e prazer. Quando o
desejo e o prazer não estão relacionados com o amor, então o amor é intenso.
Como a beleza, ele é uma coisa totalmente nova em cada dia. Como já disse, ele
não tem nem ontem nem amanhã.
É só
quando vemos sem nenhum preconceito, nenhuma imagem, que somos capazes de estar
em direto contato com alguma coisa na vida. Todas as nossas relações
baseiam-se, com efeito, em imagens formadas pelo pensamento. Se tenho uma
imagem a respeito de vós, e vós tendes uma imagem a respeito de mim,
naturalmente não nos vemos um ao outro como realmente somos. O que vemos são as
imagens que formamos um do outro, as quais nos impedem o contato, e é por essa
razão que nosso relacionamento não funciona
bem.
Quando
digo que vos conheço, quero dizer que vos conheci ontem. Não vos conheço realmente,
agora. O que conheço é só a imagem que tenho de vós. Essa imagem é constituída
pelo que dissestes em meu louvor ou para me insultardes, pelo que me fizestes;
é constituída de todas as lembranças que tenho de vós; e vossa imagem relativa
a mim é constituída da mesma maneira, e são essas imagens que estão em relação
e nos impedem de comungar realmente um com o outro.
Duas
pessoas que viveram em comum por muito tempo têm imagens uma da outra, que as
impedem de estar em relação. Se compreendemos as relações, podemos cooperar,
mas não há possibilidade de cooperação através de imagens, de símbolos, de
conceitos, ideologias. Só quando compreendemos a verdadeira e mútua relação
entre nós, há possibilidade de amor, mas o amor é negado quando temos imagens.
Por conseguinte, importa compreenderdes, não intelectualmente porém realmente,
em vossa vida diária, como formastes imagens a respeito de vossa esposa, de
vosso marido, de vosso vizinho, de vosso filho, de vossa pátria, vossos
políticos, vossos deuses; nada mais tendes senão imagens.
Essas
imagens criam o espaço entre vós e aquilo que observais, e nesse espaço há
conflito. Vamos, pois, agora descobrir juntos se é possível nos livrarmos do
espaço que criamos, não só fora de nós, mas também dentro de nós mesmos, o
espaço que separa as pessoas em todas as suas relações.
Ora,
a própria atenção que dais a um problema constitui a energia que resolve o
problema. Quando dispensais toda a atenção — quer dizer, tudo o que tendes —
não existe observador nenhum. Há só o estado de atenção, que é energia total, e
essa energia total é a forma mais elevada de inteligência. Naturalmente, esse
estado da mente deve ser todo de silêncio; e esse silêncio, essa quietude,
surge quando há atenção total, e não quietude disciplinada. Esse completo
silêncio em que não há observador nem coisa observada é a mais alta forma de
uma mente religiosa. Mas o que sucede, nesse estado, não pode ser expresso em
palavras, porque o que sei por meio de palavras não é o fato. Para descobrirdes
por vós mesmo, tendes de passar por esse estado.
Cada
problema está relacionado com todos os outros problemas e, assim sendo, se
puderdes resolver um só problema completamente — não importa qual seja — vereis
que sereis capaz de enfrentar e resolver facilmente todos os demais.
Naturalmente, estamos falando de problemas psicológicos. Já vimos que um
problema só pode existir no tempo, isto é, quando enfrentamos uma dada situação
incompletamente. Assim, não só temos de estar cônscios da natureza e estrutura
do problema e vê-lo totalmente, mas também devemos enfrentá-lo tão logo surge e
resolvê-lo imediatamente, para que não possa enraizar-se na mente. Se deixamos
um problema durar um mês, um dia, ou mesmo alguns minutos, ele deforma a mente.
Assim, será possível enfrentarmos imediatamente um problema, sem nenhuma
deformação, e nos livrarmos dele imediata e completamente, sem que fique, na
mente, nenhuma memória, nenhuma arranhadura? Essas memórias são as imagens que
levamos conosco e são essas imagens que enfrentam essa coisa portentosa que é a
vida e, por conseguinte, há contradição e, daí, conflito. A vida é muito real; não é uma abstração; e,
quando a enfrentamos com imagens, nascem problemas.
Será
possível enfrentar cada caso que surge, sem esse intervalo de espaço-tempo, sem
esse vão entre a própria pessoa e aquilo de que ela tem medo? Só é possível,
quando o observador não tem continuidade, o observador, que é o formador da
imagem, o observador que é uma coleção de memórias e idéias, um feixe de
abstrações.
Quando
olhais as estrelas, existe vós, que estais a olhar as estrelas; o céu está todo
inundado do brilho das estrelas, o ar é fresco, e lá estais vós, o observador,
o experimentador, o pensador, vós, com vosso coração dolorido, vós, o centro, a
criar espaço. Jamais compreendereis nada acerca do espaço existente entre vós e
as estrelas, entre vós e vossa esposa ou marido ou amigo, porque nunca os
olhastes sem a imagem, e essa é a razão por que não sabeis o que é a beleza ou
o que é o amor. Falais sobre eles, escreveis a seu respeito, mas jamais os
conhecestes, a não ser, talvez, em raros intervalos de total abandono de vós
mesmo. Enquanto existir um centro a criar espaço em torno de si, não haverá
amor nem beleza. Não havendo nenhum centro e nenhuma circunferência, então há
amor. E quando amais, vós sois beleza.
Ao
olhardes um rosto à vossa frente, estais olhando de um centro, e esse centro
cria o espaço entre as pessoas, e é por isso que nossas vidas são tão vazias e
insensíveis. Não podeis cultivar o amor ou a beleza e tampouco podeis inventar
a verdade; mas, se estiverdes sempre cônscio do que estais fazendo, podereis
cultivar o percebimento e, graças a esse percebimento, começareis a ver a
natureza do prazer, do desejo e do sofrimento, e a total solidão e tédio em que
vive o homem; começareis então a descobrir aquela coisa chamada
"espaço".
Havendo
espaço entre vós e o objeto que estais observando, sabereis que não há amor e,
sem o amor, por mais que vos esforceis para reformar o mundo ou criar uma nova
ordem social, ou por mais que discurseis a respeito de melhorias, só criareis
agonia. Portanto, tudo depende de vós. Não há líder, não há instrutor, não há
ninguém que possa ensinar-vos o que deveis fazer. Estais só neste mundo insano e brutal.
XII
O Observador e a Coisa Observada.
Tende
a bondade de continuar a acompanhar-me um pouco mais. Esta matéria poderá ser
um tanto complexa e sutil, mas, por favor, continuai comigo a investigá-la.
Pois
bem; quando formo uma imagem a respeito de vós ou de qualquer coisa, tenho a
possibilidade de observar essa imagem e, assim, há a imagem e o observador da
imagem. Vejo uma pessoa, suponhamos, de camisa vermelha, e minha reação
imediata é de gostar ou não gostar dessa camisa. O gostar ou não gostar é
resultado de minha cultura, de minha educação, minhas relações, minhas
inclinações, minhas características adquiridas ou herdadas. É desse centro que
eu observo e faço meu julgamento, e, assim, o observador está separado da coisa
que observa.
Porém,
o observador está percebendo mais do que uma só imagem; ele cria milhares de
imagens. Ora, o observador difere dessas imagens? Não é ele apenas outra
imagem? Está sempre a acrescentar ou a subtrair alguma coisa do que ele próprio
é; ele é uma coisa viva, a todas as horas, ocupada em pesar, comparar, julgar,
modificar, mudar, em virtude de pressões do exterior e do interior; vive no
campo da consciência, que são seus próprios conhecimentos, as influências e
avaliações inumeráveis. Ao mesmo tempo que olhais o observador, que é vós
mesmo, vedes que ele é constituído de memórias, experiências, acidentes,
influências, tradições e infinitas variedades de sofrimento, sendo tudo isso o
passado. Assim, o observador é tanto o
passado como o presente, e o amanhã o aguarda e faz também parte dele. Ele está
meio vivo, meio morto, e com essa morte e vida é que observa. Nesse estado
mental, situado no campo do tempo, vós (o observador) olhais o medo, o ciúme, a
guerra, a família (a entidade feia e fechada chamada a família), e procurais
resolver o problema da coisa observada, a qual é o desafio, o novo; estais
sempre a traduzir o novo nos termos do velho e, por conseguinte, vos vedes num
conflito perpétuo.
Uma
imagem-, na qualidade de observador, observa dúzias de outras imagens, ao redor
e dentro de si mesmo, e o observador diz: "Gosto dessa imagem, vou
conservá-la", ou "Não gosto dessa imagem e, portanto, vou livrar-me
dela" — mas o próprio observador foi formado pelas várias imagens,
nascidas da reação a várias outras imagens. Assim sendo, alcançamos um ponto em
que podemos dizer: O observador é também imagem, porém separa a si próprio para
observar. Esse observador, que se tornou existente por causa de várias outras
imagens, julga-se permanente e entre si próprio e as demais imagens criou uma
separação, um intervalo de tempo. Isso gera conflito entre ele e as imagens que
ele crê serem a causa de suas tribulações. Diz, então: "Preciso livrar-me
desse conflito", mas o próprio desejo de livrar-se do conflito cria outra
imagem.
O
percebimento de tudo isso, que é a verdadeira meditação, revela haver uma
imagem central, formada por todas as outras imagens, e essa imagem central — o
observador — é o censor, o experimentador, o avaliador, o juiz que deseja
conquistar ou subjugar as outras imagens ou destruí-las de todo. As outras
imagens resultam dos juízos, opiniões e conclusões do observador, e o
observador é o resultado de todas as outras imagens — portanto, o observador ê
a coisa observada.
Assim,
o percebimento revela os diferentes estados da mente; revela as várias imagens
e a contradição entre elas existente; revela o conflito daí resultante e o
desespero por não se poder fazer coisa alguma em relação ao conflito, e as
diferentes tentativas de fugir dele. Tudo isso foi revelado pela vigilância
cautelosa, hesitante, e percebe-se, então, que o observador é a coisa
observada. Não é uma entidade superior
que se torna consciente dessas coisas, não é um "eu" superior (a
entidade superior, o eu superior são meras invenções, outras tantas imagens); o
próprio percebimento revelou que o observador é a coisa observada.
Se
fazeis a vós mesmo uma pergunta, quem é a entidade que vai receber a resposta?
E quem é a entidade que vai investigar? Se essa entidade faz parte da
consciência, se faz parte do pensamento, nesse caso ela é incapaz de descobrir
a resposta. O que pode descobrir é apenas um estado de percebimento. Mas, se
nesse estado de percebimento continua a existir uma entidade que diz:
"Preciso estar cônscia, preciso praticar o percebimento" — essa entidade,
por sua vez, é mais uma imagem.
Esse
percebimento de que o observador é a coisa observada não é um processo de
identificação com a coisa observada. Identificar-nos com uma dada coisa é
relativamente fácil. A maioria de nós se identifica com alguma coisa: com a
família, o marido, a esposa, a nação; e essa identificação leva a grandes
aflições e grandes guerras. Estamos considerando uma coisa inteiramente
diferente, que não devemos compreender verbalmente, porém no âmago, na raiz
mesma de nosso ser. Na China antiga, um artista, antes de começar a pintar
qualquer coisa, uma árvore, por exemplo — ficava sentado diante dela durante
dias, meses, anos (não importa quanto tempo) até ele próprio ser a árvore. Ele
não se identificava com a árvore, mas era a árvore. Isso significa que não
havia espaço entre ele e a árvore, não havia espaço entre o observador e a
coisa observada, não havia um experimentador a experimentar a beleza, o
movimento, o matiz, a intensidade de uma folha, a "qualidade" da cor.
Ele era totalmente a árvore, e só nesse estado podia pintá-la.
Qualquer
movimento por parte do observador, se ele não percebeu que o observador é a
coisa observada, só cria outra série de imagens e, mais uma vez, nelas se vê
enredado. Mas, que sucede, quando o observador percebe que o observador é a
coisa observada? Andai devagar, bem devagar, pois estamos examinando uma coisa
muito complexa. Que sucede? O observador não age, absolutamente. O observador sempre disse: "Tenho de
fazer algo em relação a essas imagens; devo recalcá-las ou dar-lhes uma forma
diferente"; está sempre ativo em relação à coisa observada, agindo e
reagindo, apaixonada ou indiferentemente, e essa ação de gostar e não gostar,
por parte do observador, é chamada ação positiva — "Gosto desta coisa,
portanto, devo conservá-la; não gosto daquela, portanto, tenho de livrar-me
dela". Mas, quando o observador percebe que a coisa em relação à qual está
agindo é ele próprio, não há então conflito entre ele e a imagem. Ele ê ela.
Não está separado dela. Quando separado, ele fazia ou tentava fazer alguma
coisa em relação a ela; mas, ao perceber que ele próprio é aquilo, não há mais
gostar nem não gostar, e o conflito cessa.
Pois,
que pode ele fazer? Se uma coisa ê vós, que podeis fazer? Não podeis
revoltar-vos contra ela, ou fugir dela, ou, mesmo, aceitá-la. Ela existe.
Assim, toda ação resultante da reação, de gostar e não gostar, cessa.
Descobrireis,
então, que há um percebimento que se torna extremamente vivo. Não está sujeito
a nenhum fator central ou a alguma imagem, e dessa intensidade de percebimento
provém uma diferente qualidade de atenção e a mente, por conseguinte (pois a
mente é esse percebimento), se torna sobremodo sensível e altamente
inteligente.
XIII
Que é Pensar? — As Idéias e a Ação — O Desafio Matéria
— O Começo
do Pensamento.
Passemos
agora a examinar a questão do pensar — o que é pensar — a significação desse
pensamento que deve ser exercido com cuidado, lógica e equilíbrio (em nossas
atividades diárias), e a significação do pensamento que nenhuma importância
tem. A menos que conheçamos essas duas qualidades (de pensamento) não teremos
possibilidade de compreender uma coisa muito mais profunda, que o pensamento
não pode atingir. Tratemos, pois, de compreender toda a complexa estrutura que
constitui o pensar, a memória — como o pensamento nasce, como o pensamento
condiciona as nossas ações; e, compreendendo tudo isso, encontraremos talvez
uma coisa que o pensamento jamais descobriu, uma coisa cuja porta o pensamento
é incapaz de abrir.
Por
que se tornou o pensamento tão importante em nossa vida? — o pensamento, que é
idéias, reação às memórias acumuladas nas células cerebrais? Talvez muitos de
vós nem mesmo fizeram a si próprios uma pergunta dessas, ou, se a fizeram,
devem ter dito: "Isso é de mínima importância, o importante é a
emoção". Mas, não vejo como separar as duas coisas. Se o pensamento não dá
continuidade ao sentimento, o sentimento morre muito depressa. Assim, por que é
que o pensamento assumiu, em nossa vida diária, nesta vida tormentosa, tediosa,
assustada — tão desmedida importância? Perguntai a vós mesmo, como estou
perguntando a mim mesmo: ^'Porque somos escravos do pensamento — desse
pensamento sagaz e engenhoso, capaz de organização, de iniciativas; que tantas
coisas inventa, que tantas guerras engendrou e tanto medo criou, tanta
ansiedade; que está perenemente a criar imagens e a "correr atrás da
própria cauda"; do pensamento que fruiu o prazer de ontem e a esse prazer
deu continuidade no presente e também no futuro; desse pensamento que está
sempre ativo, a tagarelar, a mover-se, a construir, a subtrair, a adicionar, a
supor?".
As
idéias se tornaram para nós muito mais importantes do que a ação — idéias tão
habilmente expostas em livros pelos intelectuais, em todas as esferas de atividade.
Quanto mais sagazes e sutis essas idéias, tanto mais as veneramos e aos livros
que as contêm. Nós somos esses livros, somos essas idéias, tão fortemente
condicionados estamos por elas. Estamos perpetuamente a discutir idéias e
ideais e, dialeticamente, a apresentar opiniões. Toda religião tem seu dogma,
sua fórmula, seu próprio andaime para alcançar os deuses, e, como estamos
investigando as origens do pensamento, estamos contestando a validade de todo
esse edifício de idéias. Separamos as idéias da ação porque as idéias são
sempre do passado, e a ação é sempre o presente — isto é, o viver é sempre o
presente. Temos medo do viver e, por conseguinte, o passado, as idéias, se nos
tornaram tão importantes.
E
realmente muito interessante observar as operações de nosso próprio pensar,
observar, simplesmente, como pensamos, a fonte de onde brota essa reação que
chamamos pensar. Essa fonte é, obviamente, a memória. Existe de fato um começo
do pensamento? Se existe, podemos achá-lo? — isto é, o começo da memória,
porque, se não tivéssemos memória, não teríamos pensamento.
Já
vimos como o pensamento sustenta e dá continuidade a um prazer que ontem
fruímos, e como o pensamento também sustenta o contrário do prazer, o medo e a
dor; de modo que o experimentador, que é o pensador, ê o prazer e a dor, e
também a entidade que lhes dá nutrimento. O pensador separa o prazer da dor.
Não percebe que na própria exigência de prazer está atraindo a dor e o
medo. O pensamento, nas relações
humanas, está sempre a exigir prazer, exigência que ele disfarça com palavras
tais como lealdade, auxílio, dádiva, amparo, serviço. Pergunto-me: Por que
queremos servir aos outros? O posto de gasolina oferece bons serviços. Que
significam estas palavras: auxílio, dádiva, serviço? Que finalidade tem isso?
Uma flor, cheia de beleza, de luz, de encantamento, essa flor diz: "Eu
estou dando, ajudando, servindo"? Ela é, e porque não está procurando
fazer coisa alguma, ela abarca toda a Terra.
O
pensamento é tão sutil, tão hábil, que deforma todas as coisas para sua própria
conveniência. O pensamento, com sua exigência de prazer, traz sua própria
servidão. O pensamento é o criador da dualidade, em todas as nossas relações:
há, em nós, violência, a qual nos proporciona prazer, mas há também o desejo de
paz, o desejo de ser bondoso, delicado. Isso é o que se passa a todas as horas,
em nossa vida. O pensamento não só cria em nós essa dualidade, essa
contradição, mas também acumula nossas inumeráveis memórias de prazer e de dor
e dessas memórias renasce. Assim, o pensamento é o passado; o pensamento, como
já disse, é sempre velho.
Como
todo desafio é enfrentado em termos do passado — desafio que é sempre novo —
nossa maneira de enfrentá-lo será sempre totalmente inadequada, e daí decorre a
contradição, o conflito, a aflição e o sofrimento a que estamos sujeitos. Nosso
insignificante cérebro está em conflito, não importa o que faça. Não importa se
aspira, se imita, se se sujeita, se reprime, se sublima, se toma drogas para
expandir-se — o que quer que jaca — ele se acha num estado de conflito e
produzirá sempre conflito.
Os
que pensam muito são autênticos materialistas, porque o pensamento é matéria. O
pensamento é matéria, tanto quanto o soalho, a parede, o telefone, são matéria.
A energia que funciona num padrão se torna matéria. Há energia e há matéria, É
só isso que a vida é. Podeis pensar que o pensamento não é matéria; mas é. O
pensamento, como ideologia, ê matéria. Onde há energia, esta se converte em
matéria. Matéria e energia estão relacionadas entre si. Uma não pode existir
sem a outra. E quanto mais harmonia há entre ambas, tanto mais equilíbrio
existe e tanto mais ativas estão as células cerebrais. O pensamento estabeleceu
o padrão de prazer, de dor, de medo e dentro dele vem funcionando há milhares
de anos, e não pode quebrá-lo, porque foi ele quem o criou.
Um
fato novo não pode ser percebido pelo pensamento. Posteriormente, pode ser
compreendido pelo pensamento, verbalmente, porém, a compreensão de um novo fato
não é uma realidade para o pensamento. O pensamento jamais resolverá um
problema psicológico. Por mais engenhoso, por mais sutil e erudito que seja, e
qualquer que seja a estrutura que o pensamento cria, por meio da ciência, de um
cérebro eletrônico, da compulsão ou da necessidade, o pensamento nunca é novo
e, por conseguinte, jamais poderá resolver uma questão sumamente importante. O
velho cérebro não pode resolver o enorme problema do viver.
O
pensamento é tortuoso, porque pode inventar tudo e ver coisas que não existem.
É capaz dos mais extraordinários truques e, portanto, não merece confiança.
Mas, se puderdes compreender toda a sua estrutura, porque pensais, as palavras
que empregais, o vosso comportamento na vida diária, vossa maneira de falar com
as pessoas e de tratá-las, vossa maneira de andar, de comer — se perceberdes
todas essas coisas, então a vossa mente não vos enganará, então não haverá nada
para enganar-nos. A mente não é então uma entidade que exige, que julga;
torna-se sumamente quieta, flexível, sensível, só, e nesse estado não há engano
de espécie alguma.
Já
notastes que, ao vos achardes num estado de completa atenção, o observador, o
pensador, o centro, o "eu" deixa de existir? Nesse estado de atenção,
o pensamento começa a definhar.
Se
uma pessoa deseja ver uma coisa muito claramente, deve ter a sua mente muito
quieta, sem seus preconceitos, suas tagarelices, seus diálogos, suas imagens,
seus quadros — tudo isso tem de ser posto à margem, para olhar. É só no
silêncio que se pode observar o começo do pensamento, e não quando estamos a
buscar, a fazer perguntas e esperar respostas. Portanto, só quando há completa
quietude em nosso ser, e fazemos a pergunta: "Qual a origem do
pensamento?", começamos a ver, em virtude desse silêncio, como se forma o
pensamento.
Se há
o percebimento de como se inicia o pensamento, já não há necessidade de
controlá-lo. Despendemos uma grande soma de tempo e desperdiçamos uma grande
quantidade de energia, através de toda a vida, e não apenas na escola,
controlando os nossos pensamentos — "Este é um pensamento bom, devo
pensá-lo muitas vezes", "Este é um pensamento mau, devo
reprimi-lo." Trava-se uma perene batalha entre um pensamento e outro,
entre um desejo e outro (um prazer dominando todos os outros prazeres), mas se
há o percebimento da origem do pensamento, nele já não existe nenhuma
contradição.
Agora,
quando ouvis uma asserção, tal como: "O pensamento é sempre velho" ou
"O tempo é sofrimento", o pensamento começa a traduzi-la, a
interpretá-la. Porém a tradução e a interpretação baseiam-se no conhecimento,
na experiência de ontem, de modo que, invariavelmente, a traduzireis de acordo
com o vosso condicionamento. Mas, se olhais essas asserções e não as
interpretais de modo nenhum, dispensando-lhes, tão-só, vossa atenção completa
{não concentração), descobris que não há observador nem coisa observada, que
não há pensador nem pensamento. Não digais "Qual o que começou
primeiro?". Essa é uma pergunta hábil, mas não conduz a parte alguma.
Podeis observar em vós mesmo que, quando não há pensamento — e isso não
significa um estado de amnésia, de vacuidade — quando não há pensamento
derivado da memória, da experiência ou do conhecimento, pois tudo isso é do
passado, não há pensador nenhum. Isso não é matéria filosófica ou mística.
Estamos tratando de fatos reais e, se me acompanhastes até aqui, passareis a
responder a cada desafio, não com o velho cérebro, porém de maneira totalmente
nova.
XIV
Os Fardos do Passado — A Mente Tranqüila — A
Comunicação — A Realização — Disciplina — O Silêncio — A Verdade e a Realidade.
Na
vida que em geral levamos há muito pouca solidão. Mesmo quando estamos sós,
nossa vida está tão repleta de influências, de conhecimentos, de memórias e
experiências, de ansiedade, aflição e conflito, que nossa mente se torna cada
vez mais embotada e insensível, funcionando numa monótona rotina. Estamos sós,
alguma vez? Ou estamos transportando conosco todas as cargas de ontem?
Conta-se
uma história interessante de dois monges que, caminhando de uma aldeia para
outra, encontraram uma jovem sentada à margem de um rio, a chorar. Um dos
monges dirigiu-se a ela, dizendo: "Irmã, por que choras?" E ela
respondeu: "Estás vendo aquela casa do outro lado do rio? Eu vim para este
lado hoje de manhã cedo e não tive dificuldade em vadear o rio; mas, agora ele
engrossou e não posso voltar; não há nenhum barco". "Oh!" diz o
monge, "isto não é problema" — e levantou nos braços a jovem e
atravessou o rio, deixando-a na outra margem. E os dois monges prosseguem
juntos a jornada. Passadas algumas horas, diz o outro monge: "Irmão, nós
fizemos o voto de nunca tocar numa mulher. O que fizeste é um horrível pecado.
Não sentiste prazer, uma sensação extraordinária, ao tocar uma mulher?" —
E o outro monge responde: "Eu a deixei para trás há duas horas. Tu ainda a
estás carregando, não é verdade?"
É
isso o que fazemos. Carregamos nossos fardos a todas as horas; nunca morremos
para eles, nunca os deixamos para trás. É só quando dispensamos a um problema
toda a nossa atenção e o resolvemos imediatamente, sem o transportarmos para o
dia seguinte, o minuto seguinte — é só então que há solidão. Então, ainda que
estejamos numa casa cheia de gente, ou viajando num ônibus, temos solidão. E
essa solidão denota uma mente nova, uma mente inocente.
Ter
silêncio e espaço interiores é muito importante, porque implica liberdade para
existir, mover-se, atuar, voar. Afinal de contas, a bondade só pode florescer
onde há espaço, assim como a virtude só pode medrar quando há liberdade.
Podemos ter liberdade política, mas, interiormente, não somos livres e, por
conseguinte, não há espaço. Nenhuma virtude, nenhuma qualidade valiosa, pode
funcionar ou medrar sem esse vasto espaço interior. E o espaço e o silêncio são
necessários, pois apenas a mente que está só, livre de influências, de disciplinas,
do controle de uma infinita variedade de experiências, é capaz de encontrar-se
com algo totalmente novo.
Cada
um de nós pode verificar diretamente que só há possibilidade de clareza quando
a mente se encontra em silêncio. No Oriente, a finalidade da meditação é
produzir um estado mental capaz de controlar o pensamento, o que é a mesma
coisa que recitar constantemente uma oração para quietar a mente, esperando-se
que, nesse estado, se compreenderão os problemas do indivíduo. Mas, a menos que
sejam lançadas as bases, ou seja que se esteja livre do medo, livre do
sofrimento, da ansiedade e de todas as armadilhas que armamos para nós mesmos,
não vejo possibilidade de a mente ficar realmente quieta. Esta é uma das coisas
mais difíceis de transmitir. A comunicação entre nós requer, não só que
compreendais as palavras que estou empregando, mas também que ambas as partes,
vós e eu, estejam tensas ao mesmo tempo, nem um momento mais cedo ou mais
tarde, e sejam capazes de encontrar-se no mesmo nível. Essa comunicação não é
possível quando estais interpretando o que estais lendo de acordo com vossos
próprios conhecimentos, vosso prazer ou vossas opiniões, ou quando estais
fazendo um tremendo esforço para compreender.
Um
dos piores tropeços na vida — parece-me — é essa luta constante para alcançar,
conseguir, adquirir. Desde a infância somos educados para adquirir e realizar;
as próprias células cerebrais criam e exigem esse padrão de realização, a fim
de terem segurança física, mas a segurança psicológica não se encontra no campo
da realização. Exigimos segurança em todas as nossas relações, atitudes e
atividades, mas, como já vimos, não existe realmente essa coisa chamada
segurança. Se descobris, por vós mesmo, que não há nenhuma forma de segurança
em qualquer espécie de relação — se percebeis que, psicologicamente, nada
existe de permanente, esse percebimento vos proporciona uma maneira totalmente
diferente de considerar a vida. É essencial, naturalmente, a segurança exterior
— teto, roupa, comida — mas essa segurança exterior é destruída pela exigência
de segurança psicológica.
O
espaço e o silêncio são necessários para ultrapassarmos as limitações da
consciência, mas, como pode ficar quieta uma mente que está perenemente ativa
em seu próprio interesse? Podemos discipliná-la, controlá-la, moldá-la, mas
essa tortura não torna a mente quieta; só a torna embotada. Evidentemente, o
mero cultivo do ideal de ter uma mente quieta é sem valor, porque, quanto mais
a forçamos, mais estreita e estagnada ela se torna. Qualquer forma de controle,
tal como a repressão, só produz mais conflito. Assim, o controle e a disciplina
exterior não constituem o caminho certo, e tampouco tem algum valor uma vida
não disciplinada.
A
vida de quase todos nós é exteriormente disciplinada pelas exigências da
sociedade, pela família, por nosso próprio sofrimento, nossa própria
experiência, pelo ajustamento a certos padrões ideológicos ou factuais, e essa
forma de disciplina é a coisa mais maléfica que existe. A disciplina deve ser
sem controle, sem repressão, sem nenhuma forma de medo. Como pode nascer essa
disciplina? Não é — primeiro disciplina, depois liberdade; a liberdade está bem
no começo, e não no fim. Compreender essa liberdade, que significa estar livre
do ajustamento que a disciplina impõe, é disciplina. O próprio ato de aprender
é disciplina (aliás, a própria raiz da palavra disciplina significa aprender),
o próprio aprendizado transforma-se em clareza. A compreensão de toda a
natureza e estrutura do controle, da repressão e da complacência, requer
atenção. Não é necessário impor
disciplina para estudar, pois já o ato de estudar cria sua própria disciplina,
sem repressão de espécie alguma.
Para
rejeitarmos a autoridade (referimo-nos à autoridade psicológica e não à
autoridade da lei), rejeitarmos a autoridade de todas as organizações
religiosas, de todas as tradições e da experiência, temos de ver por que,
normalmente, obedecemos; temos, com efeito, de estudar isso. Esse estado exige
que nos achemos livres da condenação, da justificação, da opinião, da
aceitação. Ora, não podemos aceitar a autoridade, e estudá-la; isso é
impossível. Para se estudar toda a estrutura psicológica da autoridade, cumpre
exista liberdade dentro de nós mesmos. E quando a estamos estudando, estamos
rejeitando toda a sua estrutura, e quando rejeitamos, essa própria rejeição é a
luz da mente livre da autoridade. A negação de tudo o que tem sido considerado
valioso — como a disciplina externa, a liderança, o idealismo — é estudá-lo;
então, esse próprio ato de estudar não só é disciplina, mas a negação dela, e a
própria negação é um ato positivo. Assim, estamos negando todas as coisas
consideradas importantes para promover a quietação da mente.
Como
vemos, não é o controle que leva à quietação. Tampouco está quieta a mente ao
ter um objeto que de tal maneira a absorve que ela se perde nesse objeto. Isso
é como dar a uma criança um brinquedo interessante; a criança se torna quieta,
mas, tire-se-lhe o brinquedo e ela volta a fazer travessuras. Todos nós temos
os nossos brinquedos que nos absorvem, e, por isso, pensamos que estamos muito
quietos; mas, se um homem se dedica a uma certa forma de atividade, científica,
literária ou qualquer outra, o brinquedo apenas o absorve e ele não está, em
absoluto, totalmente quieto.
O único
silêncio que conhecemos é o silêncio que vem quando cessa o barulho, o silêncio
que vem quando o pensamento cessa; mas isso não é silêncio. O silêncio é coisa
toda diferente, como a beleza, como o amor. Esse silêncio não é o, produto de
uma mente quieta, não é o produto de células cerebrais que, tendo compreendido
toda a estrutura, dizem: "Pelo amor de Deus, fica quieto!"; são,
então, as próprias células cerebrais que produzem o silêncio, e isso não é
silêncio. Tampouco é o silêncio produto da atenção em que o observador é o
objeto observado; não há então atrito, mas isso não é silêncio.
Estais
esperando que eu vos descreva o que é esse silêncio, a fim de poderdes
compará-lo, interpretá-lo, levá-lo e enterrá-lo. Ele é indescritível. O que
pode ser descrito é o conhecido, e o estado livre do conhecido só pode
tornar-se existente quando há um morrer todos os dias para o conhecido, para os
insultos, as lisonjas, para todas as imagens que tendes formado, para todas as
vossas experiências: morrer todos os dias, para que as células cerebrais se
tornem novas, juvenis, inocentes. Mas, essa inocência, esse frescor, essa
"qualidade" de ternura e delicadeza não produz o amor; não é a
"qualidade" da beleza ou do silêncio.
Aquele
silêncio, que não é o silêncio do fim do barulho, é só um modesto começo. Ê
como passar por um túnel estreito para se chegar a um oceano imenso, vasto,
extenso — a um estado imensurável, atemporal. Mas isso não se pode compreender
verbalmente, a menos que se tenha compreendido toda a estrutura da consciência
e o significado do prazer, do sofrimento e do desespero, e as próprias células
cerebrais se tenham tornado quietas. Então, talvez alcanceis aquele mistério
que ninguém pode revelar-vos e nada pode destruir. Uma mente viva é uma mente
quieta, uma mente viva é uma mente que não tem centro algum e, por conseguinte,
não tem espaço nem tempo. Essa mente é ilimitada, e esta é a única verdade, a
única realidade.
XV
A Experiência — A Satisfação — A Dualidade — A
Meditação.
Todos
nós desejamos experiências de alguma natureza: a experiência mística, a
religiosa, a sexual, a experiência de possuir muito dinheiro, poder, posição,
domínio. Tornando-nos mais velhos, podemos ter acabado com as exigências de
nossos apetites físicos, porém exigimos experiências mais amplas, profundas,
significativas e tentamos, por vários meios, obtê-las: expandindo a nossa
consciência, por exemplo, o que com efeito é uma arte, ou tomando drogas de
toda espécie. Este é um velho expediente, existente desde tempos imemoriais —
mastigar um pedaço de folha ou experimentar o mais novo produto químico, a fim
de provocar uma alteração temporária na estrutura das células cerebrais, uma
sensibilidade maior e uma percepção mais intensa que proporcione um simulacro
da realidade. Essa exigência de sucessivas experiências denota a pobreza
interior do homem. Pensamos que por meio delas podemos fugir de nós mesmos, mas
essas experiências são condicionadas pelo que somos. Se a mente é mesquinha,
ciumenta, ansiosa, a pessoa poderá tomar a mais moderna droga, porém só verá
sua própria e insignificante criação, as projeções sem importância de seu
próprio fundo condicionado.
A
maioria exige experiências completamente satisfatórias e duradouras, que não
possam ser destruídas pelo pensamento. Assim, atrás dessa exigência, está o
desejo de satisfação, e esse desejo de satisfação dita a experiência; por
conseguinte, temos de compreender não só essa matéria de satisfação, mas também
a coisa que se experimenta. Ter uma grande satisfação é experimentar um grande
prazer; quanto mais duradoura, profunda e ampla a experiência, tanto mais
agradável e, portanto, o prazer dita a forma de experiência que queremos; o
prazer é justamente a medida com a qual avaliamos a experiência. Tudo o que é
mensurável encontra-se nos limites do pensamento e tem a propriedade de criar a
ilusão. Podeis ter experiências maravilhosas e vos sentirdes completamente
frustrado. Tereis inevitavelmente visões em conformidade com vosso
condicionamento; vereis o Cristo ou o Buda ou outro qualquer em quem credes, e
quanto mais crente fordes, tanto mais intensas serão as vossas visões, as
projeções de vossas exigências e ânsias.
Assim,
se na busca de uma coisa fundamental, tal como a verdade, o prazer é a vossa
medida, já projetastes o que a experiência será e, por conseguinte, ela já não
é válida.
Que
entendemos por experiência? Há nela alguma coisa nova ou original? A
experiência é um feixe de memórias reagindo a um desafio, e só pode reagir de
acordo com o passado, e quanto mais hábil fordes no interpretar a experiência,
tanto mais reage esse passado. Assim, deveis questionar não só â experiência de
outrem, mas também a vossa própria. Se não reconheceis uma experiência, não há
experiência nenhuma. Toda experiência já foi experimentada, senão não a
reconheceríeis. Reconheceis que uma experiência é boa, má, bela, sagrada etc.,
conforme o vosso condicionamento e, por conseguinte, o reconhecimento de uma
experiência tem de ser inevitavelmente velho.
Quando
exigimos uma experiência da realidade — como todos nós a exigimos, não? — para
experimentá-la, devemos conhecê-la e, tão logo a reconhecemos, já a projetamos
e, portanto, ela não é real, porquanto está ainda no âmbito do pensamento e do
tempo. Se o pensamento pode pensar sobre a realidade, isso não pode ser a
realidade. Não se pode reconhecer uma experiência nova. É impossível. Só
reconhecemos aquilo que já conhecemos e, por conseguinte, quando dizemos que
tivemos uma nova experiência, ela não é absolutamente nova. A busca de mais experiência pela expansão da
consciência, como se tem feito por meio de várias drogas psicodélicas, está
ainda no campo da consciência e, por conseguinte, é muito limitada.
Descobrimos,
pois, uma verdade fundamental, ou seja que a mente que está a buscar e a ansiar
por experiências mais amplas e profundas é uma mente muito superficial e
embotada, porquanto está sempre vivendo com suas memórias.
Agora,
se não tivéssemos experiência alguma, que nos aconteceria? Dependemos de
experiências, de desafios, para nos mantermos despertos. Se não houvesse
conflito em nosso interior, se não houvesse mudanças, perturbações, estaríamos
todos dormindo a sono solto. Assim, os desafios são necessários à maioria das
pessoas; pensamos que, sem eles, a mente se tornará estúpida e pesada e, por
conseguinte, dependemos de um desafio, de uma experiência, para termos mais
animação, mais intensidade, para termos uma mente mais penetrante. Mas, com
efeito, essa dependência dos desafios e das experiências, para nos conservarmos
despertos, só torna a nossa mente mais embotada ainda; não nos mantém realmente
despertos. Assim, pergunto a mim mesmo: "É possível nos mantermos
totalmente despertos — não superficialmente, em alguns pontos de meu ser, porém
totalmente despertos, sem nenhum desafio ou experiência?" Isso exige uma
grande sensibilidade, tanto física como psicológica; significa que devo estar
livre de todas as exigências, porque, no momento em que exijo uma experiência,
a terei. E, para ficar livre da exigência de satisfação, torna-se necessária
uma investigação de mim mesmo e uma compreensão total da natureza da exigência.
Toda
exigência nasce da dualidade: "Sou infeliz, e tenho de ser feliz".
Nessa própria exigência — tenho de ser feliz — está a infelicidade. Quando uma
pessoa se esforça para ser boa, nesse próprio ser bom está o seu oposto — ser
mau. Tudo o que se afirma contém o seu próprio oposto; e o esforço que se faz
para dominá-lo torna mais forte aquilo contra que se luta. Quando exigis uma
experiência da verdade ou da realidade, essa própria exigência nasceu de vosso
descontentamento com o que ê; por conseguinte, a exigência cria o oposto. No
oposto está o que foi. Temos, pois, de ficar livres dessa incessante exigência,
porquanto, do contrário, nunca se acabará a galeria da dualidade. Isso
significa conhecer a si próprio de maneira tão completa que a mente não mais se
ponha a buscar.
A
mente, então, não exige experiência; não pode pedir ou conhecer um desafio; não
diz "Estou dormindo", "Estou acordada". Ela é, toda ela, o
que é. Só a mente frustrada, limitada, superficial, condicionada, está sempre a
buscar o mais. Será possível, então, viver neste mundo sem o mais — sem essa
perene comparação? É, decerto, mas temos de descobri-lo por nós mesmos.
A
investigação completa dessa questão é meditação. Esta palavra tem sido
empregada, tanto no Oriente como no Ocidente, de uma maneira muito lamentável.
Há diferentes escolas de meditação, diferentes métodos e sistemas. Certos
sistemas ensinam: "Observa os movimentos do dedo grande de teu pé, observa-o,
observa-o, observa-o"; outros advogam o ficar sentado numa certa postura,
respirando regularmente ou praticando o percebimento. Tudo isso é completamente
mecânico. Outro método dá-vos uma certa palavra, e vos diz que, se ficardes
repetindo essa palavra, ela vos proporcionará uma certa experiência
fundamental, extraordinária. Isso é puro absurdo. É uma forma de auto-hipnose.
Se ficardes repetindo indefinidamente Amém ou Hun ou Coca-Cola, é óbvio que
tereis uma certa experiência, porque, pela repetição, a mente se aquieta. Esse
é um fenômeno bem conhecido, praticado há milhares de anos na índia; chama-se
Mantra Ioga. Pela repetição pode-se induzir a mente a tornar-se branda e macia,
entretanto ela continua pequenina, vulgar, mesquinha. O mesmo efeito se obteria
com apanhar no jardim um pedaço de pau, colocá-lo sobre a lareira, e
oferecer-lhe todos os dias uma flor. Daí a um mês o estaríeis adorando, e se
deixásseis de depositar uma flor diante dele, isso seria um pecado.
Meditação
não é seguir um sistema; não é repetição e imitação constantes. Meditação não é
concentração. Um dos truques de certos instrutores de meditação é insistirem em
que os seus discípulos aprendam a concentração, ou seja fixar a mente num
pensamento e expulsar todos os outros pensamentos. Essa é uma das coisas mais
estúpidas e mais maléficas, e qualquer colegial é capaz de fazê-la, se obrigado
a tal. Significa que ficais empenhado
numa contínua batalha entre a obrigação de vos concentrardes, a um lado, e a
vossa mente, a outro lado, que se põe a fugir para outras e variadas coisas —
quando, ao contrário, devemos estar atentos a cada movimento da mente, aonde
quer que ela vá. Quando vossa mente foge, isso significa que estais interessado
em alguma outra coisa.
A
meditação exige uma mente sobremodo vigilante; a meditação é a compreensão da
totalidade da vida, na qual não existe mais nenhuma espécie de fragmentação.
Meditação não é controle do pensamento, porque, quando o pensamento é
controlado, gera conflito na mente; mas, quando se compreende a estrutura e
origem do pensamento, assunto que já examinamos, o pensamento então não mais
interfere. Essa compreensão da estrutura do pensar é sua própria disciplina,
que é meditação.
Meditação
é estar cônscio de cada pensamento e de cada sentimento, nunca dizer que ele é
certo ou errado, porém simplesmente observar e acompanhar seu movimento. Nessa
vigilância, compreendeis o movimento total do pensamento e do sentimento. E
dessa vigilância vem o silêncio. O silêncio criado pelo pensamento é estagnação,
coisa morta, porém o silêncio que vem quando o pensamento compreendeu a sua
própria origem, sua própria natureza, compreendeu que nenhum pensamento é
livre, porém sempre velho — esse silêncio é meditação, na qual o meditador está
de todo ausente, porque a mente se esvaziou do passado.
Se
lestes este livro durante uma hora, isso é meditação. Se apenas recolhestes
umas poucas palavras e juntastes algumas idéias, para sobre elas refletirdes
mais tarde, isso então já não é meditação. Meditação é um estado em que a mente
olha todas as coisas com toda a atenção e não apenas com algumas partes dela.
Ninguém pode ensinar-vos a prestar atenção. Se algum sistema vos ensina a estar
atento, estais então atento ao sistema, e isso não é atenção. A meditação é uma
das maiores artes da vida — talvez a maior de todas — mas não se pode de modo
nenhum aprendê-la de alguém — e essa é que é a sua beleza. Ela não tem técnica
e, por conseguinte, nenhuma autoridade. Quando estais aprendendo a conhecer-vos
realmente, quando vos observais, observais vossa maneira de andar, de comer, o
que dizeis, vossas tagarelices, vosso ódio, vosso ciúme, se estais cônscio de
tudo isso, em vós mesmo, sem nenhuma escolha, isso faz parte da meditação.
Assim,
a meditação pode verificar-se quando estais sentado num ônibus ou passeando
numa floresta toda de luz e de sombra, ou ouvindo o canto dos pássaros, ou
olhando o rosto de vossa mulher ou de vosso filho.
Na
compreensão dada pela meditação há amor, e o amor não é produto de sistemas, de
hábitos, da observância de um método. O amor não pode ser cultivado pelo
pensamento. O amor pode, talvez, nascer quando há silêncio completo, um
silêncio no qual esteja de todo ausente o meditador; e a mente só é capaz de
silêncio quando compreende seu próprio movimento como pensamento e sentimento.
Para se compreender esse movimento de pensamento e de sentimento, não pode
haver condenação enquanto se observa. Observar dessa maneira é disciplina, e
essa qualidade de disciplina é fluida, livre, e assim não é a disciplina do
ajustamento.
XVI
A Revolução Total — A Mente Religiosa — A Energia — A
Paixão.
Em
todas as páginas deste livro, o que sempre nos interessou foi a realização, em
nós mesmos e, por conseguinte, em nossas vidas, de uma revolução total fora da
estrutura social ora existente. A sociedade, como atualmente está constituída,
é uma coisa horripilante, com suas intermináveis guerras de agressão — não
importa se agressão defensiva ou ofensiva.
Necessitamos de uma coisa totalmente nova, de uma revolução, uma mutação
na própria psique. O velho cérebro
nenhuma possibilidade tem de resolver o problema humano das relações. O velho cérebro é asiático, europeu,
americano ou africano, e, assim, interrogamos a nós mesmos se é possível
operar-se uma mutação nas próprias células cerebrais.
Investiguemos,
também, agora que chegamos a compreender-nos melhor, se é possível a um ente
humano que vive sua vida normal de cada dia, neste mundo brutal, violento,
cruel — um mundo que se está tornando cada vez mais eficiente e, por
conseguinte, cada vez mais cruel — se é possível a esse ente humano promover
uma revolução não só em suas relações externas, mas também em toda a esfera do
seu pensar, sentir, agir e reagir.
Todos
os dias vemos ou lemos coisas aterradoras que estão acontecendo no mundo, como
resultado da violência no homem existente. Podeis dizer: "Eu nada posso
fazer a esse respeito", ou "Como posso influir no mundo?". Eu acho que podeis influir no mundo de uma
maneira admirável se em vós mesmo não sois violento, se viveis realmente, em
cada dia, uma vida pacífica, uma vida sem competição, sem ambição, sem inveja,
uma vida não causadora de inimizade. Pequenas chamas podem tornar-se em
incêndio. Reduzimos o mundo ao seu atual estado de caos com nossa atividade
egocêntrica, nossos preconceitos, nosso nacionalismo, e quando dizemos que nada
podemos fazer a tal respeito, estamos aceitando como inevitável a desordem em
nós mesmos existente. Partimos o mundo em fragmentos e, se nós mesmos estamos
partidos, fragmentados, nossa relação com o mundo será também fragmentária. Mas
se, quando agimos, agimos totalmente, então a nossa relação com o mundo passa
por uma enorme revolução.
Afinal
de contas, todo movimento que vale o esforço, toda ação de profunda significação,
tem de começar em cada um de nós. Eu tenho de mudar primeiro; tenho de ver qual
é a natureza e a estrutura de minha relação com o mundo — e no próprio ato de
ver está o fazer — por conseguinte, como ente humano que vive neste mundo, devo
criar uma coisa diferente, e essa coisa, a meu ver, é a mente religiosa.
A
mente religiosa difere completamente da mente que crê na religião. Não podeis
ser religioso e ao mesmo tempo hinduísta, muçulmano, cristão, budista. A mente
religiosa nada busca, não pode fazer experiências com a verdade. A verdade não
é uma certa coisa ditada por vosso prazer ou vossa dor, ou por vosso
condicionamento hinduísta — ou qualquer que seja a religião a que pertenceis. A
mente religiosa é um estado de espírito em que não há medo e, por conseguinte,
não há crença de espécie alguma, porém, tão-só o que ê, o que realmente é.
Na
mente religiosa há aquele estado de silêncio que já examinamos, que não é
produzido pelo pensamento, mas é oriundo do percebimento, ou seja da meditação
com completa ausência do meditador. Nesse silêncio há um estado de energia
isento de conflito. Energia é ação e movimento. Toda ação é movimento e toda
ação é energia. Todo desejo é energia. Todo sentimento é energia, todo
pensamento é energia. Todo viver é energia.
Toda vida é energia. Se se deixa
essa energia fluir sem nenhuma contradição, nenhum atrito, nenhum conflito, ela
é então ilimitada, infinita. Quando não há atrito, não há limites à energia. O
atrito é que dá limites à energia. Assim, percebido isso, por que é que o ente
humano sempre introduz o atrito na energia? Por que cria atrito, nesse
movimento a que chamamos vida? A energia pura, a energia ilimitada é para ele
apenas uma idéia? Não tem realidade?
Necessitamos
de energia, não só para promovermos a revolução total em nós mesmos, mas também
para podermos investigar, olhar, atuar. E, enquanto houver atrito, de qualquer
natureza, em qualquer de nossas relações, seja entre marido e mulher, seja
entre um homem e outro, entre uma e outra comunidade, ou uma e outra nação, ou
uma ideologia e outra — se há qualquer atrito, interior ou exterior, em
qualquer forma, por mais sutil que seja — há desperdício de energia.
Enquanto
houver um intervalo de tempo entre o observador e a coisa observada, esse
intervalo criará atrito e, por conseguinte, desperdício de energia. Essa
energia se acumula até o mais alto grau quando o observador é a coisa
observada, e nisso não há nenhum intervalo de tempo. Haverá então energia sem
motivo, a qual encontrará seu próprio canal de ação, porque, então, o EU não
existe.
Necessitamos
de uma enorme abundância de energia para compreender a confusão em que estamos
vivendo, e o sentimento "tenho de compreender" produz a vitalidade
necessária para a compreensão. Mas, o descobrir, o investigar, implica o tempo,
e, como já vimos, o gradual descondicionamento da mente não é a maneira certa
de proceder.
O
tempo também não é o caminho certo. Quer sejamos velhos, quer jovens, é agora
que o integral processo da vida pode ser levado a uma dimensão diferente. A
busca do oposto do que somos não é, tampouco, o caminho certo e também não o é
a disciplina artificial imposta por um sistema, por um instrutor, um filósofo
ou sacerdote; tudo isso é muito infantil. Ao percebermos isso, perguntamos a
nós mesmos: "Será possível libertarmo-nos imediatamente desta secular e
pesada carga de condicionamento, sem cairmos noutro condicionamento — sermos
livres, com a mente completamente nova, sensível, viva, alertada, intensa,
capaz?". Eis o nosso problema. Não há outro problema, porque, quando a
mente se renova é capaz de enfrentar e resolver qualquer problema, É essa a
única pergunta que temos de fazer a nós mesmos.
Mas,
nós não a fazemos. Preferimos ser ensinados. Um dos aspectos mais curiosos da
estrutura de nossa psique é o querermos, todos nós, ser ensinados, porquanto
somos o resultado de uma propaganda de dez mil anos. Queremos ver o nosso modo
de pensar confirmado e corroborado por outrem, ao passo que fazer uma pergunta
é fazê-la a nós mesmos. O que eu digo tem muito pouco valor. Vós o esquecereis
no mesmo instante em que fechardes este livro, ou vos lembrareis de algumas
frases, as quais ficareis repetindo, ou comparareis o que aqui lestes com o que
lestes noutro livro; não quereis olhar de frente a vossa própria vida. E só ela
é que importa: a vossa vida, vós mesmo, vossa mediocridade, vossa
superficialidade, vossa brutalidade, vossa violência, vossa avidez, vossa
ambição, vossa diária agonia e infinito sofrer; é isso que tendes de
compreender, e ninguém, nem na terra, nem no céu, pode salvar-vos, senão vós
mesmo.
Vendo
tudo o que se passa em vossa vida diária, em vossas atividades cotidianas,
quando escreveis, quando falais, quando sais de carro ou passeais a sós numa
floresta, podeis, num só alento, num só olhar, conhecer a vós mesmo, muito
simplesmente, tal como sois? Quando vos conhecerdes como sois, compreendereis
então toda a estrutura da luta do homem — seus embustes, suas hipocrisias, sua
busca. Para tanto, tendes de ser sumamente honesto perante vós mesmo, em todo o
vosso ser. Quando agis de acordo com vossos princípios, estais sendo desonesto,
porque, quando agis conforme o que julgais ser correto, não sois o que sois. É
uma coisa brutal — ter ideais. Se tendes ideais, crenças ou princípios de
qualquer espécie, não podeis de modo nenhum olhar-vos diretamente. Portanto,
podeis ser completamente negativo, manter-vos inteiramente tranqüilo, sem
pensar, sem temer, e ao mesmo tempo estar extraordinariamente, apaixonadamente,
vivo?
Aquele
estado em que a mente já não é capaz de lutar constitui a verdadeira mente
religiosa, e, nesse estado mental, podeis encontrar-vos com essa coisa
denominada verdade ou realidade ou bem-aventurança ou Deus ou beleza ou amor.
Essa coisa não pode ser chamada. Por favor, compreendei esse simples fato. Ela
não pode ser chamada, não pode ser buscada, porque vossa mente é tão estúpida e
limitada, vossas emoções tão vulgares, vossa maneira de vida tão confusa, que
aquela imensidade, aquela coisa ilimitada não pode ser chamada a vossa pequena
casa, ao insignificante canto em que viveis, tão pisado e cuspido. Não podeis
chamá-la. Para a chamardes, deveis conhecê-la, e vós não podeis conhecê-la. No
momento em que alguém, não importa quem, diz: "Sei" — não sabe. No
momento em que dizeis que achastes, não achastes. Se dizeis que a
experimentastes, nunca a experimentastes. Tudo isso são maneiras de explorar um
homem — vosso amigo ou inimigo.
Perguntamos
então, a nós mesmos, se é possível encontrar-nos com essa coisa sem a
chamarmos, sem a esperarmos, sem a buscarmos ou explorarmos — se é possível ela
"acontecer", tal como a brisa fresca que entra na sala quando
deixamos a janela aberta. Não podeis convidar o vento a entrar, mas tendes de
deixar aberta a janela — o que não significa ficar num estado de espera; essa é
uma outra maneira de nos enganarmos. Não significa que devais
"abrir-vos" para receber; essa é uma outra forma de pensamento.
Nunca
perguntastes a vós mesmo por que aos entes humanos falta essa coisa? Eles geram
filhos, satisfazem o sexo, têm ternuras, a capacidade de compartilhar as coisas
num estado de companheirismo, de amizade, de camaradagem, mas essa coisa — por
que razão não a tem? Nunca vos ocorreu, num momento de folga — ao andardes
sozinho por uma rua imunda, ao viajardes num ônibus, ao passardes umas férias à
beira-mar, ao passeardes numa floresta, entre os pássaros, as árvores, os
regatos, os animais selvagens — nunca vos ocorreu perguntar por que razão o
homem, que vive há milhões e milhões de anos, ainda não possui essa coisa, essa
flor maravilhosa e imarcescível; por que razão vós, um ente humano, dotado de
tanta capacidade, tanta inteligência, tanta sutileza; vós, que tanto competis,
que possuis uma tão maravilhosa tecnologia, que sois capaz de elevar-vos aos
espaços e de descer ao fundo do mar, de inventar fantásticos cérebros
eletrônicos — por que razão não possuis essa única coisa verdadeiramente
importante? Não sei se alguma vez já considerastes seriamente esta questão: Por
que está vazio o vosso coração?
Que
responderíeis se fizésseis a vós mesmo essa pergunta; qual seria vossa resposta
imediata, inequívoca, sem sutilezas? Vossa resposta deveria corresponder à
intensidade com que fizésseis a pergunta, e ao vosso sentimento de urgência;
mas vós não sois intenso, nem sentis aquela urgência, e isso porque não tendes
energia, a energia que é paixão — pois nenhuma verdade se pode descobrir sem
paixão — paixão impelida por intenso fervor, paixão sem nenhum desejo secreto.
A paixão é uma coisa um tanto assustadora, porque, se tendes paixão, não sabeis
aonde ela vos levará.
Assim,
será o medo a razão por que não possuis a energia daquela paixão, para
descobrirdes por vós mesmo por que vos falta aquela essência do amor, por que
não arde em vosso coração essa chama? Se examinastes com muita atenção vossa
mente e vosso coração, sabereis por que não a tendes. Se sois apaixonado, no
descobrir por que não a possuis, ela se vos mostrará. Só pela negação completa,
a mais alta forma da paixão, torna-se existente aquela coisa que é õ amor. Como
a humildade, não podeis cultivar o amor. A humildade vem à existência com a
total cessação da presunção — e, então, jamais sabereis o que é ser humilde. O
homem que sabe o que significa ter humildade é um homem vaidoso. Do mesmo modo,
quando aplicais vossa mente e vosso coração, vossos nervos, vossos olhos, todo
o vosso ser, a descobrir o caminho da vida, a ver o que realmente é, e a
ultrapassá-lo, a rejeitar total e completamente a vida que hoje vivemos — nessa
negação do maléfico, do brutal, torna-se existente a outra coisa. E nunca o
sabereis. O homem que sabe que está em silêncio, o homem que sabe que ama, não
sabe o que é o amor ou o que é o silêncio.
KRISHNAMURTI
Jiddu
Krishnamurti nasceu no Sul da Índia em 1895 e foi educado na Inglaterra. Embora
não tenha ligações com nenhuma organização filosófico-religiosa nem se
apresente com títulos universitários, vem fazendo conferências para grupos de
líderes intelectuais nas maiores cidades do mundo, há já várias dezenas de
anos.
Além
dos volumes editados pela Cultrix, grande número de publicações, de palestras e
conferências suas foram lançadas em português, com êxito igual ao obtido quando
publicadas em espanhol, francês, alemão, holandês, finlandês e vários outros
idiomas, além do original inglês.