A SANTA MÃE
INTRODUÇÃO AO LIVRO
Este livro apresenta a vida e ensinamentos de uma extraordinária santa da Índia moderna quem, exteriormente, viveu como uma mulher hindu comum.
Sri Sarada Devi (1853-1920) nasceu e se criou na pobreza, mas também no contentamento. Alcançou sua santidade não através de extraordinárias austeridades, mas mediante a prática regular da oração e meditação; total dedicação ao serviço de seu esposo e cumprimento de seus deveres para com seus parentes exigentes e mundanos. Mesmo assim, suas experiências espirituais foram tão profundas como as de Sri Ramakrishna (1836-1886), o Deus-homem de nossos tempos. Sua vida foi uma demonstração de paz interior que acreditava na comunhão com Deus, mesmo naqueles ocupados com as atividades do mundo.
Sri Sarada Devi, respeitosamente invocada agora como a Santa Mãe em todo lugar onde Sri Ramakrishna é conhecido, chegou a ele com a idade de cinco anos, compartilhando algumas de suas muito significativas experiências espirituais. Sri Ramakrishna a preparou para sua futura lista, como sua sucessora espiritual. Através dela, Sri Ramakrishna manifestou a Maternidade de Deus.
Seu advento atuou como um fermento promovendo, silenciosamente, o novo despertar da consciência da feminilidade em todo o mundo.
Este livro pode ser considerado como um complemento da vida e Evangelho de Sri Ramakrishna, revelador de uma nova dimensão de sua personalidade.
O autor, Swami Nikhilananda, é um membro as Ordem de Monges Ramakrishna e atual Presidente do Centro Ramakrishna de Nova Iorque.
Ano 1963
PREFÁCIO
A SANTA MÃE foi esposa de Sri Ramakrishna (1836-1886) considerado, na Índia e no estrangeiro, como uma manifestação pouco comum da Divindade, nos tempos modernos. Foi sua constante companheira durante o período de sua vida mais rica em acontecimentos e testemunha de suas experiências espirituais. Sri Ramakrishna moldou a vida de Sarada Devi e lhe assegurou seu lugar na continuação de sua missão, depois de sua morte.
Exteriormente, a Santa Mãe viveu como a maioria das mulheres da Índia, dedicada ao fiel cumprimento de suas obrigações do lar, certamente desagradáveis e frustrantes. Interiormente praticou total desapego ao mundo físico, permanecendo imperturbável ante tudo o que acontecia nele. Jamais desviou sua mente do contato com Deus e é assim que se converteu em um modelo, hoje, tanto para os chefes de família, como para os monges que renunciam ao mundo.
Considero necessário que assinalar aqui duas importantes fases de seus ensinamentos e personalidade, que podem ser de ajuda aos leitores em geral, especialmente aqueles não familiarizados com os cimentos da cultura hindu, para responder assim, com toda simpatia, ao que foi sua vida.
Em primeiro lugar, a Santa Mãe, quando dava instruções a seus discípulos, certamente lhes pedia que considerassem Sri Ramakrishna como Deus Encarnado. Aceitava outras Divinas Encarnações também, mas em razão de sua ininterrupta absorção em Deus; sua total renúncia e sua aceitação das diferentes crenças como caminhos válidos para realizar Deus, o considerava como o mais conveniente para nossa época atual.
Prefacio (2)
Ela, por sua própria experiência, realizou a divindade de seu esposo; portanto, era natural que se referisse a ele como um símbolo visível da Divindade. Mas de modo algum se mostrava dogmática ou exclusiva. Ao dar instruções a aspirantes de outros ideais espirituais, aumentava neles sua própria fé.
Em segundo lugar, a Santa Mãe, certamente é considerada neste livro como sendo a Mãe do universo e o Divino Poder. Estas não são simples expressões sentimentais da parte de seus devotos; pelo contrário, têm um profundo significado filosófico.
Segundo a Filosofia Vedanta, Brahman ou Realidade Última, é inativo. Não se ocupa das atividades de criação, preservação e dissolução. Todas elas são cumpridas por Sua inescrutável energia chamada “maia” ou Shakti. Brahman e Shakti são inseparáveis como o fogo e seu poder de queimar ou uma gema e seu brilho. De acordo com Suas duas diferentes funções é dado dois nomes a uma mesma Realidade.
No universo inteiro de seres viventes e não-viventes, é a projeção desta divina energia a qual, como uma mãe terrena, produz criaturas em sua matriz e logo as nutre. Finalmente esta energia reabsorve os seres criados dentro da Divindade, liberando-os, assim, das ligações do mundo. Portanto os Hindus consideram esta Energia como a Mãe e Salvadora de todos. Se bem que esta energia esteja presente em todas as criaturas, um hindu a vê mais como mulher do que homem.
Prefácio (3)
Sem dúvida, todas as mulheres são canais de Shakti, mas uma mulher sem mácula de mundanidade se converte no mais potente canal. A Santa Mãe era essa mulher e é por isto que foi descrita como a Salvadora ou a Divina Mãe do universo. Considerava a todos os filhos nascidos de uma mãe como seus próprios.
Há, na Índia, tanto em inglês como em idiomas vernáculos, vários livros sobre sua vida e ensinamentos. Foram tirados, livremente, fatos e idéias de alguns deles e por tal motivo, expresso minha dívida de gratidão aos autores. O livro de Swami Gambhirananda, publicado em inglês e em Bengali, contém fatos autênticos. Manadasankar Das Gupta, em seu livro em Bengali, analisa estes fatos admiravelmente. A vida da Santa Mãe por Swami Tapasyananda e Swami Nikhilananda, em inglês, publicados pelo Sri Ramakrishna Math de Madras, agrega um detalhe das conversações da Santa Mãe. No presente livro foram incluídas algumas das grandes mulheres da Índia.
Mr. James Holsaert corrigiu o manuscrito em sua totalidade, com singular esmero e deu valiosas sugestões para torná-lo mais compreensível, especialmente aos leitores do Ocidente. Swami Atmaghananda, além de editar o manuscrito, trabalhou animadamente, cuidando dos muitos detalhes mecânicos para prepará-lo na prensa. Meu agradecimento a todos eles. Mesmo tendo aceitado opiniões por parte dos editores, assuma a total e absoluta responsabilidade pelas reflexões e interpretações existentes neste livro.
A vida e os ensinamentos da Santa mãe tem uma direta relação com a atual situação da humanidade. Os cientistas e filósofos, influenciados pelos métodos científicos da razão e da experimentação, estão preocupados, tentando descobrir as leis que explicam e controlam a vida e a natureza. Gradualmente vão revelando diferentes dimensões da realidade, no que se refere ao homem e ao mundo e também como utilizar este conhecimento para o bem-estar físico do homem.
Há um número cada vez maior de gente pensante que considera o conhecimento intelectual não iluminado pela percepção interior espiritual, como inadequado para satisfazer o profundo desejo da alma. Eles voltam seu olhar para a religião, em busca da paz interior. Mas lamentavelmente, a maioria das religiões, tal como as praticadas hoje em dia, tornam-se confusas com seus dogmas e credos que ocultam a verdade.
Os homens necessitam de um guia com direta experiência da real natureza da Divindade, o mundo e a alma. Somente assim podem ficar impregnadas de amor e compaixão suas palavras e obras. Além do mais, esta experiência, para transformar a natureza interior do homem e conduzi-lo ao bem-estar de todos, deve ser expressa em palavras simples. O leitor perceptivo poderá captar, na vida da Santa Mãe, o cumprimento destas condições.
Prefácio (5)
Encontrar-se-á, também, frente a alguém que, em lugar de dedicar-se a gozar da felicidade da paz interior, trabalhou até o último instante de sua vida para transmitir essa paz a outros.
Creio que este livro será fonte de inspiração para o número crescente de devotos e admiradores se Sri Ramakrishna entre os povos da língua inglesa.
Lentamente a influência da Santa Mãe se irá infiltrando no pensamento corrente do mundo e dará um ímpeto aos buscadores espirituais de todas as partes, sem distinção da afiliação religiosa.
NIKHILANANDA
Vivekananda Cottage
Thousand
Julho 21 de 1961
INTRODUÇÃO
DURANTE UM ANO consecutivo, desde 27 de dezembro de 1953, até 26 de dezembro de 1954, a Índia celebrou o centenário do nascimento de Sri Sarada Devi, afetuosa e respeitavelmente chamada, por seus devotos, de Santa Mãe (Sri Ma).
Durante o centenário, incontáveis pessoas homenagearam sua memória. Foram realizados cultos especiais; houve procissões pelas ruas em sua honra e os jornais publicaram artigos e suplementos especiais. Foram realizadas reuniões presididas por Governadores dos Estados da Índia, Membros do Gabinete, homens de letras e outros homens, tributando homenagem a sua santidade.
O centenário foi também celebrado fora da Índia: Ceilão, Birmânia, Inglaterra, França, Argentina; em algumas das principais cidades dos Estados Unidos e em outras partes do mundo. Atravessando as barreiras de cor, casta, raça, credo e nacionalidade, a ocasião despertou uma espontânea resposta entre os devotos de Sri Ramakrishna e a Santa Mãe.
Na atualidade funcionam numerosas instituições públicas – escolas, hospedagens para estudantes, hospitais gratuitos e dispensários, monastérios e conventos – associados ao nome da Santa Mãe, todos eles extraindo inspiração de sua vida e seus ensinamentos. Dos 67 anos de sua vida física, 37 foram dedicados a seus parentes, longe do conhecimento público e durante o resto de sua vida, foi conhecida pessoalmente por algumas centenas de discípulos, somente. Grande parte de sua vida transcorreu em sua aldeia natal.
Exteriormente, sua vida foi a de uma mulher hindu comum, dedicada aos exigentes e monótonos deveres cotidianos. Esta vida sem relevos – na realidade bem extraordinária – a manteve em sua relação com seu esposo, seus discípulos, parentes e visitantes. Há poucos anos de sua morte, esta mulher quase iletrada foi reconhecida como uma alma excepcionalmente iluminada, a primeira dama da Índia Espiritual. Hoje recebe o mesmo respeito que Sri Ramakrishna, de todos aqueles que entraram em contato com suas vidas.
Sarada Devi é um produto genuíno do solo da Índia, moldada na tradição da nação e influenciada por sua consciência racial. Todas as grandes mulheres da Índia em todos os tempos, nos têm falado através de Sarada Devi. Ela representa a plenitude no cumprimento das aspirações espirituais de milhões de mulheres do presente e do futuro.
Para compreender a vida de Sarada Devi, os leitores, especialmente não-hindus, deverão saber algo sobre as mulheres da Índia, que contribuíram, através de toda a história, para moldar o ideal da feminilidade na Índia. Vamos considerar aqui, brevemente, a posição das mulheres da religião e a sociedade hindu. Logo, então, estaremos capacitados para compreender o lugar que ocupa Sarada Devi na cultura espiritual da Índia.
A religião hindu reverencia a mulher, assim a sociedade, algumas vezes, se desviou deste ideal. O hinduismo sustenta a Maternidade de Deus sobre bases filosóficas. No curso do livro nos referiremos a este importante tópico. A deidade que controla o conhecimento, Saraswati, é feminina. Os Vedas sustentam que às mulheres, assim como aos homens, deve ser dada oportunidade quanto à educação e as diversas atividades da sociedade. Nos tempos Védicos, foram animadas a cultivar o mais elevado conhecimento, o Conhecimento de Brahman. Manu, o grande legislador hindu, declarou que os deuses ficam satisfeitos onde as mulheres são reverenciadas; onde não são, toda a obra se torna infrutífera.
Condicionadas pela tradição social e religiosa, as mulheres hindus permaneceram essencialmente femininas. Dão e não exigem; carecem de presunção e são recatadas e só encontram prazer no amor e no serviço inegoísta. Uma mulher hindu, de bom grado, obedece a um homem, se este é honrado. Certamente se arrisca a enfrentar situações, embora isto signifique sofrimento – algo que um homem nem sempre pode fazer. E de nenhum modo é mansa ou dócil quando enfrenta a injustiça ou a vileza.
Qual tem sido a posição das mulheres na sociedade hindu? Com o fluxo e refluxo da condição política e econômica da Índia, o “status” das mulheres tem sofrido altos e baixos. Quando a Índia era livre, as mulheres eram livres. Mas quando o país caiu sob o domínio estrangeiro, a sociedade de tornou rígida e conservadora: negou-se às mulheres toda liberdade. Durante o domínio muçulmano, no norte da Índia, se introduziu o “purdah”, com o conseqüente retrocesso geral para as mulheres.
Com a libertação da Índia, em 1947, as mulheres hindus novamente saíram de sua reclusão e tomaram parte da vida nacional. Talvez o período mais obscuro da cultura hindu foi os trezentos últimos anos, quando o Império muçulmano se desintegrou e se consolidou o domínio britânico. Este último adaptou a mente dos hindus intelectuais para o sistema de vida ocidental. Mesmo então, as mulheres da Índia contribuíram para manter vivos os ideais nacionais. Apesar de que, durante esses obscuros dias, a maioria delas eram iletradas e vítimas de injustiças sociais e religiosas, mesmo assim encontramos resplandecentes luzes brilhando aqui e ali, demonstrando a potencialidade da feminilidade hindu. Fosse qual fosse a situação, as mulheres nunca perderam sua vitalidade interior.
O hinduísmo se refere à esposa como o “sahadharmini” (co-participante na busca espiritual do esposo). Um é incompleto sem o outro. Este conceito está simbolizado pela deidade hindu Ardhanariswara, do qual a metade é feminina e a outra metade é masculina. Quando um homem considera sua esposa somente como um objeto para satisfazer seus desejos físicos, o desastre sobrevém à família. Uma escritura hindu diz: “Ela é a Deusa da Fortuna para os virtuosos e a força do mal para os malvados”.
Do ponto de vista hindu, uma mulher pode ser uma mãe, uma esposa, uma irmã ou algo mais, mas essencialmente, ela é a mãe. Uma mulher desconhecida, embora seja mendiga, é comumente chamada “mãe”. Em uma família hindu é a mãe e não a esposa, que ocupa a posição central. Um homem se casa e leva sua esposa ao seu lar paterno; a jovem é considerada, pelos pais dele, como sua filha. A jovem esposa obedece a sua sogra em todos os assuntos familiares e não deve se interpor entre mãe e filho. A mãe de seu esposo recebe o mesmo respeito dela, que é o que recebe de seu próprio filho.
Por que a mãe é tão altamente respeitada em uma família hindu e considerada como uma verdadeira deusa? Ela é a personificação da Maternidade de Deus. Além do mais, o amor de uma verdadeira mãe, que tudo sacrifica, não tem paralelo. Em seu amor nunca há possessão; ela se contenta simplesmente em dar – dar, sem desejo algum de retribuição. A mãe está mais perto dos filhos que o pai. O pai castiga e a mãe protege. O filho pode exigir algo de sua mãe; ela está sempre pronta para perdoar suas iniqüidades. Segundo reza um provérbio hindu: “Pode-se fazer um mau filho, mas nunca uma má mãe”.
Na estrutura e preservação da cultura da Índia, as mulheres fazem parte de um rol significativo e importante. Como em todo o mundo, como mães, esposas e irmãs, elas têm mantido a doçura do lar hindu e exercido uma influência benéfica sobre os homens. Em um campo mais amplo, as mulheres também têm desempenhado, quando a ocasião se apresenta, posições de responsabilidade como rainhas regentes ou reinantes, como administradoras, filósofas, místicas, eruditas e poetas. Realizando as monótonas tarefas do lar e ocupada em esforçados trabalhos da vida pública, demonstram calma, paciência, dignidade e outras virtudes morais de elevada ordem.
A literatura da Índia – sagrada ou secular, escrita ou oral – preservou sua memória desde o alvorecer da história. Alguns destes caracteres são mitológicos e outros históricos. Das milhares de mulheres notáveis, consideraremos umas poucas para demonstrar a variada natureza de seus caracteres e atividades.
Vamos nos referir, em primeiro lugar, à época atual. Este período começa na segunda metade do século XIX, quando o domínio britânico se estabeleceu totalmente. As pessoas cultas entraram em contato com a cultura ocidental e a vida nacional tomou novo rumo. Nesta “renascença”, as potencialidades internas das mulheres da Índia encontraram expressão através de diversos canais. Na luta pela liberdade política, durante o século XX, homens e mulheres lutaram lado a lado e compartilharam os sofrimentos do encarceramento e da perseguição.
Quando a Índia alcançou a liberdade, foi dado às mulheres, sem vacilo algum, posições tais como as de Governador de Província, Embaixador e Membros do Parlamento ou Gabinete.
Estas mulheres hindus, como suas irmãs do passado, não necessitaram competir com os homens. Cada vez que aparecia uma mulher competente, ninguém tinha a menor intenção de suprimi-la. Desde 1880 as moças hindus começaram a estudar nas universidades junto com os rapazes. Depois que a Índia obteve sua liberdade, centenas de mulheres hindus, algumas vezes sozinhas, outras vezes com seus maridos, começaram a ir à Europa e América para adquirir um conhecimento mais profundo das ciências, tecnologia, medicina e humanidade. Algumas delas tiveram desempenhos como professoras em universidades acidentais. A mulher hindu sofre, hoje, na estima do mundo, não por falta de alcances por parte delas, mas por causa da ignorância do mundo sobre seus êxitos.
Sarojini Naidu (1879-1949) foi a mulher de uma genialidade extraordinária. Poeta, idealista e patriota, era excelente oradora, que cativava as audiências com a magia de sua dicção e eloqüência. Em 1895, Sarojini foi à Inglaterra para cursar estudos superiores e foi calorosamente acolhida pelos críticos ingleses, para desenvolver seus dons de poetiza. Escreveu poemas sobre as belezas da Índia; sobre homens e mulheres do povo; príncipes e princesas Mongóis; sobre a alegria e tristeza da vida dos homens e sobre seu insaciável desejo de paz e tranqüilidade.
Sarojini Naidu se lançou no vórtice da luta política da Índia. Seguidora de Gandhi, brigou pela emancipação das classes oprimidas e pela unidade hindu-muçulmana e foi encarcerada. Em 1925 foi eleita Presidente do Congresso Nacional da Índia e na Índia Independente chegou a ser governadora da província de Uttara Pradesh, no norte da Índia.
A esposa de Mahatma Gandhi, Kasturbai Gandhi, também se manteve sempre junto a seu esposo, em suas atividades políticas. Sua humildade, seu recato, sua descrição e sua solicitude maternal pelo bem-estar de outras, fizeram com que milhões de hindus a endeusassem moralmente.
A dominação muçulmana, na Índia, que precedeu à britânica, se prolongou por cerca de 750 anos, desde o século XI até a metade do século XVIII. As leis estrangeiras combateram as tradições religiosas, a integridade social e os valores morais do país. A Índia aceitou o desafio. Durante esse período crítico, as mulheres não ficaram encolhidas; entre elas surgiram místicas, poetas, hábeis administradoras e chefes militares.
Destacamos Godai, popularmente conhecida como Andal. Esta notável santa nasceu, provavelmente, antes do século XII, no sul da Índia. Andal absorveu o fervor nacional de seu pai e dedicou-se de corpo e alma a Vishnu, que é adorado nessa parte do país como Ranganatha.
Andal se negou a contrair matrimônio e Ranganatha se converteu no único objeto de seu amor e devoção. Vivia em seu próprio mundo, criado por seu fervor espiritual e cumulada com a vívida presença de Ranganatha e Seus companheiros. Para obter Seu amor, observava votos e austeridades, completamente desapegada do mundo. Seu pai começou a pensar em como casar sua filha com a Deidade, quando Ranganatha, em um sonho, lhe ordenou que a levasse ao sagrado santuário Srirangam. Adornada com as galas nupciais, Andal chegou ao templo e entrou em êxtase. Segundo a tradição, ela desapareceu dentro da imagem. Andal compôs muitos cantos que enriqueceram a poesia Tamil. Realizou Deus pelo amor extático, sem praticar austeridades ou outras disciplinas espirituais.
Rudramba, a Governante de Varangel, nasceu no sul da Índia no século XIII e foi treinada por seu pai na arte da administração. Quando subiu ao trono em 1262, alguns de seus próprios chefes militares se levantaram em rebelião e um reino vizinho invadiu seus domínios. Evidentemente eles não deram importância ao poder de uma mulher. Mas Rudramba, que tinha ganhado a confiança e o amor de seus oficiais por seu afeto maternal, reprimiu a rebelião.
Rudramba governou durante 35 anos, mantendo a paz e a segurança no país e promoveu o bem-estar de seus súditos, cavando tanques e canais, acordando concessões a mercadores, com o fim de promover o comércio e a indústria e estabeleceu centros para que brahmines eruditos fomentassem o conhecimento. Marco Pólo visitou seu reino e escreveu sobre sua condição florescente com particular referência às suas minas de diamantes.
Durante o reinado muçulmano de Delhi, Rajputana, o berço da cavalaria hindu, produziu muitas mulheres heróicas, que não só lutaram contra o inimigo estrangeiro no campo de batalha, mas quando derrotadas, se imolavam sobre piras em chamas para salvar sua honra da luxúria do invasor,
Quando os heróis de Rajputana voltavam às suas casas depois da batalha, suas esposas lhes pediam que lhes mostrassem suas feridas. Se estas estavam no ombro, elas os consideravam desertores e os enviavam novamente a guerrear; somente para aqueles, cujas feridas apareciam no peito, era permitido entrar em casa. Quando o rei Rajputana Priviraj se aprontava para se apresentar a batalha a seu adversário muçulmano, sua rainha Samyukta o armou para o encontro e o exortou a guerrear até o fim, sacrificando sua vida se fosse necessário. Este notável espírito penetrou até nas pessoas comuns. Panna, a ama de leite de um infante real, estava cuidando dele quando um inimigo muçulmano entrou no quarto. O próprio assassino lhe perguntou qual era o príncipe e ela, sem vacilar, apontou seu próprio filho e presenciou sua morte sem demonstrar emoção.
Padmini, rainha de Rana Ratan Singh de Mewar, contou com um elevadíssimo e bem merecido lugar nas azañas da cavalaria Rajputana. Quando Alaudin, um imperador muçulmano de Delhi sitiou a famosa cidade de Chitor, os rajputanas guerrearam contra seus cruéis inimigos durante oito meses, até que finalmente tiveram que capitular.
Antes da entrega da fortaleza, em 1303, as bravas mulheres, sob a condução de Padmini, se atiraram em uma enorme fogueira para escapar da humilhação nas mãos de seus conquistadores. A pira foi acesa na câmara subterrânea e os homens defensores de Chitor observaram suas esposas e filhas, em um número de vários milhares, marchar em procissão para a pira. Padmini encerrava a marcha. As mulheres penetraram na câmara e a porta se fechou atrás delas. Como não podiam viver com honra, morreram com honra.
Entre as rainhas do período muçulmano, Ahaljabbhai (1735-1795) foi venerada por sua piedade e sabedoria política. Filha de um modesto chefe Marhatta, foi casada com o governador de Indore, a Índia Central. Sua vida familiar foi trágica. Seu indolente e irresponsável esposo faleceu em uma idade precoce e foi seguido por um filho e uma filha. Seu sogro instruiu Ahaljabbhai no recolhimento dos impostos, redação de despachos e na direção do exército.
Freqüentemente era vista no campo de batalha. Depois da morte de seu esposo, assumiu o governo do Estado. Um historiador inglês, seu contemporâneo, disse que seu êxito na administração interna de seu domínio foi mais que maravilhoso e que ela, dentro de sua limitada esfera, aparece como uma das mais capazes e extraordinárias governantes que existiram. Ahaljiabbhai empreendeu muitas atividades religiosas e filantrópicas e construiu estradas, casas de descanso e templos, sendo o mais notável o caminho de Benares à Calcutá e os templos em Sommath, Rathiwar, Gaia e Benares.
Poremos um ponto final nessa resenha com a história de Mira, a embriagada de Deus. Seu nome tem sido reverenciado pelos devotos religiosos hindus durante os últimos quatrocentos anos e não fica de todo desconhecida no ocidente.
Mirabhai nasceu no final do século XV ou início do século XVI, entregou seu corpo e sua alma a seu ideal Escolhido, Sri Krishna e renunciou ao mundo em uma idade precoce, para dedicar-se à busca de seu Divino Bem-amado. Passou muitos anos em Mathura e Brindavan, lugares associados com a vida de Sri Krishna e morreu em 1546. Diz-se que o imperador Akbar a visitou, atraído pela sua piedade.
Mitabhai deixou em torno de si um precioso legado na forma de cantos devocionais, que têm sido cantados pelos hindus de todas as classes, desde Mahatma Gandhi até o mais humilde campesino. Saturados de amor e devoção a Deus, têm um atrativo irresistível.
Nem as muitas tentações de sua posição social, nem a crítica de seus contemporâneos e nem sequer a perseguição de seus parentes, conseguiram afastar a meta de seu caminho espiritual. Completamente desapegada de o mundo, buscava a companhia dos santos e encontrava paz e descanso na repetição do nome de Deus.
Mas os personagens que exerceram maior influência na cultura hindu, se encontram descritos nos poemas épicos: o Ramaiana e o Mahabharata. Ambos estão centrados, respectivamente, na vida de Rama e Krishna, considerados pelos hindus como Encarnações Divinas. As histórias têm um fundo de verdade histórica, se bem enfeitadas com muitos relatos poéticos. Têm inspirado cantos, peças de teatro, dramas musicais e poemas, que têm enriquecido a literatura hindu.
Ambos narram as ações, impulsos e desejos de homens e mulheres de toda categoria, desde os mais santos ao mais depravado. Mas e tudo isto emerge um princípio: o conceito hindu de dharma, ou ordem moral, que sustenta e mantém sólido o universo e também direção para o elevado das vidas dos indivíduos. Os poemas épicos ensinam que, apesar do aparente e temporário triunfo da maldade, o que prevalece, em última instância, é a retidão.
Através das histórias do Ramaiana e do Mahabharata, fica revelada a fortaleza interior da mulher hindu. A maioria destas mulheres era do lar, que alcançaram proeminência espiritual mediante o fiel cumprimento de seus deveres cotidianos e o exercício de coragem e serenidade, em meio às atribulações da vida do mundo. Escolheremos para nossos modelos, três grandes mulheres: Handhari e Savitri, do Mahabharata e Sita, do Ramaiana.
Nascida princesa, Gandhari foi casada com o rei cego Dhritarashtra. No mesmo dia de sei matrimônio, colocou uma grossa venda sobre seus olhos, de maneia a não gozar da vista do mundo exterior, negada a seu esposo. Foi mãe de cem filhos, encabeçados por Duryodhana; todos eles eram cobiçosos e malvados. Ela sempre lhes pedia que seguissem pelo caminho da retidão, advertindo-lhes que o preço do pecado é a morte. Seus rivais eram seus cinco primos, conhecidos como os Pandavas, que eram nobres e virtuosos. Os filhos de Gandhari, injustamente privaram os Pandavas de seu legítimo reino e logo se envolveram em uma guerra terrível – a guerra que forma o núcleo da Mahabharata.
Durante essa guerra, quando cada manhã Duryodhana pedia a Gandhari sua bênção ela, amargamente, lhe recordava que a última vitória seria a retidão . Quando, inevitavelmente, os filhos de Gandhari pereceram na guerra, ela e seu esposo decidiram retirar-se aos Himalayas e passar seus últimos dias meditando em Deus. A despedida final foi muito emocionante. Kunti, a mãe dos vitoriosos Pandavas, iniciava a procissão. Gandhari, que havia se imposto a voluntária cegueira, colocou suas mãos sobre os ombros de Kunti e seu esposo, atrás dela, apoiava suas mãos nos ombros da rainha. Os peregrinos se instalaram nos sagrados Himalayas e finalmente, morreram durante um incêndio no bosque, meditando em Deus. Apesar do corpo de Gandhari ter-se queimado lentamente, ela manteve seus olhos vendados até o fim. Foi realmente uma mulher de grande dignidade e retidão.
A história de Savitri demonstra como o genuíno amor pode anular os desígnios do destino e até triunfar sobre a morte. A única filha do rei Aivapati foi educada na suntuosidade real; a menina se converteu em uma donzela de delicada beleza, versada em todas as nobres artes. Não havia príncipe ou rei que ousasse pedi-la em casamento, tal era sua perfeição.
Por sugestão de seu próprio pai, ela mesma começou a procurar um esposo. Savitri não sentia a menor atração ou interesse por príncipes ou aristocratas. Penetrando em um bosque, acompanhada por sábios anciãos da corte, encontrou Satyavan, filho de um rei cego que, já na velhice, juntamente com sua esposa, levava uma vida de ermitão. O jovem se dedicava aos seus pais, ocupado em conseguir o alimento e o combustível necessário.
Savitri e Satyavan se enamoraram à primeira vista. A princesa retornou à corte e disse a seus pais que tinha feito sua escolha. Um dos sábios advertiu que Satyavan morreria dentro de um ano, a contar desse mesmo dia e que nada e nem ninguém poderia alterar seu destino. Aivapati pediu a sua filha que escolhesse outro homem, mas Savitri, tendo escolhido Satyavan como seu esposo, sentia que transferir seu amor a outro homem significava uma infidelidade. Portanto disse a seu pai que estava determinada a casar-se com Satyavam, tivesse este curta vida, fosse virtuoso ou malvado, príncipe ou mendigo.
Casaram-se e Savitri decidiu viver no bosque e dedicar-se ao serviço dos pais de seu esposo, descartando suas jóias e toda comodidade. Na companhia de Satyavan se sentia imensamente feliz. No entanto, não podia tirar de sua mente as palavras do santo sobre sua morte, cuja profecia manteve em segredo.
O tempo passou; restavam somente quatro dias para a chegada do momento fatal. Savitri jejuava e orava dia e noite. Na manhã do quarto dia, cumpriu com seus deveres do lar com o coração entristecido, mas sem trair sua intensa emoção. Quando Satyavan estava pronto para se aprofundar no bosque, machado na mão, ela pediu para a acompanhá-lo. Encantado de tê-la a seu lado, a colocou sob uma árvore e começou a partir lenha. Ela mantinha seus olhos atentos nele.
Subitamente notou que os movimentos de seus braços estavam se tornando mais e mais lentos e que o som dos golpes do machado se tornavam mais fracos. Satyavan, voltando-se para ela, lhe disse que sentia que ia desmaiar. Ao encostar a cabeça se Satyavan em seu colo viu chegar, a uma certa distância, uma negra figura de olhos vermelhos, levando um laço na mão. Ao ficar junto a Savitri, disse que era Yama, o Senhor do mais além, a morada dos mortos. Lembrando-a de que os dias de Satyavan sobre a terra haviam chegado ao fim, extraiu sua alma de seu corpo, a atou com o laço e começou a retirar-se.
Savitri o seguiu. Dando a volta, Yama lhe pediu que retornasse à sua casa e preparasse os ritos funerários de seu esposo. Ela, por sua vez, lhe recordou que uma lei eterna une o marido e mulher e que, portanto, ela não podia separar-se dele. O rei da morte, para consolá-la, lhe ofereceu vários dons que fariam com que seu sogro recuperasse a visão e o reino; ademais, bendisse o pai de Savitri, concedendo-lhe filhos ilustres, que levariam adiante os deveres reais depois de sua morte.
Como ela continuava seguindo-o, Yama lhe ofereceu um dom mais: qualquer coisa, exceto a vida de Satyavan. Desta vez Savitri lhe rogou que lhe concedesse cem filhos fortes e sábios para perpetuar a linhagem. Yama, distraidamente, concedeu o favor e pediu a Savitri que fosse tranqüila. De imediato Savitri perguntou a Yama como poderia ter filhos a menos que seu esposo retornasse a vida e lhe rogou que devolvesse Satyavan, a fim de que suas palavras se cumprissem. O rei da Morte não teve outra alternativa que devolver Satyavan a Savitri e se sentiu feliz por ter sido vencido por uma mulher mais atenta que ele, tão pura, intrépida e leal.
Por causa de seu casto amor por seu esposo, Savitri foi elevada à posição de uma deusa e mesmo agora, as mulheres ortodoxas hindus observam certos ritos religiosos durante três dias, todos os anos, em sua honra.
O exemplo de todas as mulheres mencionadas nos relatos épicos é, sem dúvida alguma, Sita, cujo consorte, Rama, é adorado pelos hindus como uma Encarnação de Deus. A recordação de Sita tem sido devotamente perpetuada pelas mulheres virtuosas da Índia, durante os últimos dois mil anos. Nela encontraram total expressão das virtudes de suas contemporâneas. Mesmo hoje, quando uma pessoa mais velha bendiz uma jovem, lhe diz: “Que você seja como Sita”.
De acordo com o Ramaiana, Sita foi descoberta em um sulco pelo rei Janaka, enquanto este arava um campo, sendo uma menina recém-nascida. Imediatamente Janaka a adotou e a educou como uma princesa real; é por esta razão que, certamente, é invocada como “Mãe Terra”. A seu devido tempo, contraiu matrimônio com o príncipe Rama. Viviam muito felizes, quando um grande infortúnio aconteceu a Rama: seu pai, o rei Dasaratha, resolveu proclamá-lo seu herdeiro do trono, para cuja cerimônia já tinha feito todos os preparativos.
Sua segunda rainha queria que o sucessor fosse seu próprio filho e mediante um vil ardil, conseguiu fazer com que Rama fosse encerrado no bosque por quatorze anos, onde deveria viver como um asceta. Sita e Lakshmana, um dos irmãos de Rama, acompanharam-no, apesar de seus repetidos rogos para que sua esposa ficasse no palácio, cumprindo com seus deveres religiosos e do lar.
Rama e seus acompanhantes se dedicaram a levar uma vida austera, freqüentemente em companhia de ermitãos. Enquanto isso Rávana, o rei monstro do Ceilão, que era um escravo da cobiça e da luxúria, ouviu falar da incomparável beleza de Sita e quis tê-la como sua amante. Temeroso do poder de Rama e reconhecendo sua própria incapacidade para raptá-la abertamente, recorreu à astúcia. Ele e seus companheiros podiam assumir, mediante seu poder mágico, qualquer forma que quisessem.
Um dia, enviou um de seus seguidores, na forma de um cervo dourado, pedindo-lhe que passeasse ante a choça de Rama. Sita, enamorada pelo cervo, rogou a Rama que o capturasse para ela e ele, para satisfazê-la, seguiu o belo animal até o mais profundo bosque. Rávana, aproveitando esta oportunidade, bateu na porta da choça de Rama, sob o aspecto de um mendigo. Quando Sita abriu a porta, o monstro reassumiu sua forma real, se apoderou dela e a levou ao Ceilão em sua carruagem aérea.
Começa aqui, para Sita, um período de terrível angústia. Rávana tentou seduzi-la com jóias, trajes e outros luxos; também tentou submetê-la mediante tortura e destruição. Nada pode afastá-la de sua fidelidade a Rama.
Entretanto Rama reuniu um exército e atacou o Ceilão. Na batalha, Rávana foi morto e Sita resgatada. Quando foi levada à presença de Rama, este, ante a multidão reunida, lhe disse que ele não podia tomá-la novamente por causa de ter passado tanto tempo no palácio de Rávana. Como podia o mundo saber que espécie de vida tinha levado ela ali? Além do mais – lhe explicou – ele havia matado Rávana para reivindicar a honra de sua família e agora ela estava livre, poderia viver como quisesse.
Sita, anonadada ao ouvir tão cruéis palavras e não desejando mais viver, ordenou que se fizesse uma pira funerária. Declarando sua inocência, entrou no fogo dizendo que se ela se mantinha casta, o fogo a protegeria. Até as penugens de seu corpo permaneceram inalteradas e Sita saiu triunfante da terrível prova.
Rama retornou à capital do reino com Sita, entre o imenso júbilo das pessoas. Mas esta felicidade foi de curta duração. Começou a circular o rumor de que Rama havia recebido sua esposa, apesar dela ter vivido longo tempo no palácio de um estrangeiro. Mesmo Rama estando plenamente convencido de sua pureza, colocou de lado seu profundo amor pela rainha, em obediência ao seu dever como rei, que deve ser um modelo para que todos os seus súditos o imitem.
Rama desterrou Sita – que na ocasião estava grávida – à ermita de Valmiki, o autor de Ramaiana. Ela compreendeu perfeitamente a atitude de seu esposo e não contraiu nenhum mau sentimento para com ele. Na ermita deu à luz a gêmeos.
Pouco depois chegou a uma reconciliação e Sita voltou ao palácio. Mas a taça de seus sofrimentos ainda não estava esgotada. Rama quis convencer a todos os céticos da castidade de Sita e lhe pediu que oferecesse, pela segunda vez, a prova de sair do fogo. Isto era demasiado para a orgulhosa rainha. Sentiu, além do mais, que o propósito de acompanhar Rama tinha sido cumprido totalmente, já que sua linhagem estava assegurada, com seus dois filhos gêmeos, que a seu devido tempo, herdariam o trono. Proclamando sua pureza ante o povo ali reunido, rogou a Mãe Terra que a recebesse em seu regaço. A terra se abriu e Sita desapareceu.
Como esposa, resistindo à tortura e às tentações para preservar seus votos matrimonias e como consorte real, sacrificando sua vida para manter seu esposo ante o mundo como um rei ideal, Sita foi, sem lugar a dúvidas, sem par na história da feminilidade hindu.
Vejamos, agora, os Upanishads, a seção filosófica dos Vedas e que são bases dos diferentes sistemas da filosofia hindu, desenvolvida em um período posterior. No Brihadarnyaka Upanishad, nos encontramos com uma mulher de grande visão espiritual. Maitreji era a segunda esposa de Jagnavalkya, proeminente filósofo de seu tempo. Quando este, logo ao dar cumprimento a seus deveres do lar, se dispunha a abandonar o mundo e abraçar a vida monástica, quis dividir seus bens entre suas duas esposas.
Maitreji perguntou se, no caso em que todas as riquezas da terra lhe pertenciam, por isso ela poderia alcançar a imortalidade. Jagnavalkya lhe respondeu que, por meio da riqueza, não poderia conquistar a morte, mas que a capacitaria para viver bem. A sábia mulher perdeu todo o interesse pela riqueza e quis conhecer o segredo da imortalidade.
Jagnavalkya, então, a instruiu sobre a real natureza da alma; imortal, não-dual e divina. A alma individual é una com a Alma Suprema, chamada Brahman. Realizando sua verdadeira natureza, a alma individual mergulha em Brahman. Maitreji sentiu medo ante a idéia de perder sua individualidade. Então seu esposo lhe explicou que a alma individual é uma parte do mundo relativo criado pela ignorância, onde um vê ao outro, ouve o outro e fala com o outro. Mas que, quando se experimenta a unidade da existência, já não há objeto separado que não se possa ver, ouvir ou falar. Esta realização faz o ser realmente livre e imortal.
As verdades védicas são consideradas, pelos hindus, como eternas e não-criadas pelo intelecto humano, reveladas à certas almas altamente desenvolvidas, chamadas rishis ou videntes. Estes rishis expressaram suas experiências através dos hinos védicos. Entre os rishis se encontram mulheres. Os Veda mencionam 27 brahnavadimis, ou mulheres videntes.
Uma delas, talvez excepcional, conhecida como Vach, expressou, em um excelente hino, a experiência de sua unidade com o poder por detrás do universo. Nesse hino ela declara ser a Rainha da terra, portadora de tesouros; a conhecedora e a primeira entre os deuses que são propiciados mediante sacrifícios. Suas formas são múltiplas e imanentes em tudo. Por meio dela, as pessoas comem, vêem e respiram. Aqueles que não a conhecem, declinam. Aqueles a quem ela ama, torna poderoso e invencível: Deus Criador, o homem de visão, o homem de intelecto. Ela penetra e possui os céus e a terra; dá nascimento aos deuses do Céu. Ela penetra o universo com seu corpo. Soprando como o vento, ela cria todos os seres do mundo. Por sua própria grandeza, ela transcende os céus e a terra (Rig. Veda).
Nestas revelações, pode-se encontrar o gérmen dos conceitos da Maternidade de Deus e a divindade da mulher; ambos aspectos muito próprios do hinduísmo.
Temos resumido aqui, algumas das virtudes importantes da feminilidade hindu; intrepidez, serenidade, autocontrole, doçura, compaixão, sabedoria e uma íntima relação com Deus. Tratamos, também, de assinalar como grandes mulheres da Índia se colocaram a altura das circunstâncias, desafiando todos os perigos, ajustando sua conduta com dignidade às demandas do tempo, lugar e particularmente da situação.
Nas páginas seguintes, demonstraremos até que ponto Sri Sarada Devi, a Santa Mãe, possuía essas virtudes. Apesar de ter sido nossa contemporânea, através dela um hindu poder olhar muito longe em seu futuro.
Dado que a aquisição das virtudes que encontramos na Santa Mãe é o sonho de toda mulher virtuosa, a Santa Mãe pode muito bem ser elevada como um símbolo das aspirações das mulheres de todo mundo.
SEUS PRIMEIROS
ANOS
SARADA DEVI nasceu em uma modesta família brahmin, em Jairambati, uma remota aldeia de Bengala, situada sobre o limite sudeste do distrito de Bankura, à aproximadamente seis milhas a noroeste de Calcutá. O Amodar, uma corrente perene de águas cristalinas com abundantes peixes, flui pelo limite norte da aldeia. Ali, durante sua infância, Sarada Devi se banhava com seus irmãozinhos menores. Ela o chamava “nosso Ganges”. Depois do banho se demoravam nas margens comendo arroz inflado, antes de retornar ao lar.
Há duas pequenas penínsulas formadas pela corrente; uma era utilizada como lugar de cremação e a outra, na qual cresciam banianos, mangueiras e outras grandes árvores, se tornou, mais adiante, em um lugar favorito de meditação de alguns dos discípulos de Sri Ramakrishna.
Comparada com o resto do distrito, Jairambati é relativamente fértil. Vastos campos a rodeiam. Os esforçados campesinos colhem batata, arroz, especiarias e variadas hortaliças. No tempo de Sarada Devi também se cultivava o algodão. Quanto a produtos de consumo geral, a aldeia se auto-abastecia; em troca, por outros artigos tais como tecidos, sal e azeite, recorriam às aldeias vizinhas, onde vendiam o remanescente do que produziam. Apesar de que Bankura era notória pela malária e pela escassez de alimentos, as pessoas de Jairambati, no século passado, eram bastante saudáveis e prósperas.
A aldeia contava com vários tanques que supriam água para banhar-se, lavar, beber e outros usos. Na época em que nasceu Sarada Devi, este lugar não era acessível. As pessoas que chegavam de Calcutá, tinham que caminhar ou utilizar palanquins para cruzar extensos campos e caminhos solitários, freqüentados por homens de baixa categoria e por assaltantes. Hoje em dia é possível ir a Jairambati de trem; a estação mais próxima é Vishnupur, a umas 26 milhas de distância. Os viajantes cobriam esta distância em carros de bois, que os conduziam até Koalpara ou Kotalpur.
Kotalpur está a 6 milhas de Jairambati e Koalpara a 4. Kamarpukur, lugar de nascimento de Sri Ramakrishna, está somente a 3 milhas ao leste. Cem anos atrás, Jairambati carecia de comércio, mas hoje em dia se pode comprar, em pequenas tendas, cigarrilhas, chá e alguns outros elementos desconhecidos naquela aldeia. Sarada Devi adorava esta pacifica e simples aldeia e a respeitava como se fosse superior ao céu.
Ao redor de cem famílias vivam em Jairambati, em vivendas de barro, com telhado de palha. Além de duas famílias brahmines, a aldeia abrigava famílias de barbeiros, ferreiros, agricultores e artesãos. Uma escola para crianças dava suas aulas no pórtico de um templo. Festivais religiosos, representação de dramas religiosos e recitais da mitologia hindu, rompiam a monotonia da vida rotineira. Há vários pequenos templos em Jairambati; o principal é dedicado a Simhavahini, um aspecto da Divina Mãe, representada cavalgando um leão e é a deidade da aldeia (sua protetora). Freqüentemente pessoas das aldeias vizinhas chegavam a estes templos para oferecer sua adoração. É muito pouco provável que algum ocidental tenha colocado seus pés em Jairambati durante a vida da Santa Mãe. Devido a sua associação com as autoridades britânicas na Índia, eram mal vistos pelos aldeões, enquanto que os hindus ortodoxos, especialmente das classes mais altas, consideravam que seu toque contaminava todo o alimento e portanto os evitavam. Mas agora muita gente do exterior faz peregrinações a Jairambati para visitar o lugar de nascimento de Sarada Devi e são recebidas pelos habitantes com cordialidade e afeto.
Os habitantes de Jairambati, apesar das barreiras de casta e posição, viviam felizes como membros de uma mesma família; os jovens se dirigiam aos maiores, chamando-lhes de tio e tia.
As duas famílias brahmines de Jairambati eram os Mukherjees e os Nannerjees. A aldeia tinha sido seu berço por muitas gerações e, por conseqüência, se relacionavam entre si por laços de sangue. Rama era a deidade dos Mukherjees. Ramachandra Mukherjee era o pai da Santa Mãe e Shyamasundari Devi, sua mãe. Ramachandra era um homem reto, veraz e devoto. Apesar de sua pobreza, não aceitava presentes indiscriminadamente. Sarada Devi, referindo-se a seu pai, disse uma vez: “Era um homem muito reto e um sincero devoto de Rama; era de tão bom coração e afável natureza, que a qualquer um que passava por sua casa, convidava para fumar com ele; gostava de fumar e ele mesmo preparava tudo o que fosse necessário”. Shyamasundari era seu par em todos os aspectos. A Santa Mãe lembrou dela com essas palavras: “Mamãe era franca e carinhosa. Com todo cuidado organizava cada detalhe das tarefas domésticas e sentia especial prazer em alimentar as pessoas e ajudá-las de diferentes maneiras”. Muitos anos depois Sarada, referindo-se às virtudes de seus pais, disse: “Se meus pais não tivessem praticado tantas austeridades, como teria podido nascer nesta família?”.
O nascimento de um santo, ou de uma pessoa com atributos divinos, é freqüentemente associado com fatos sobrenaturais. A esse respeito, há dois relatos muito significativos sobre o nascimento de Sarada Devi.
Um dia Shyamasundari regressava a Jairambati, depois de visitar a casa de seu pai; no caminho, se sentou sob uma árvore, em um bosque. Subitamente escutou um som tilintante e viu que uma menina descia da árvore. Carinhosamente a menina a abraçou pelos ombros. De imediato Shyamasundari desmaiou, permanecendo inconsciente por longo tempo, até que seus parentes a levaram para casa. Ela sentiu que a menina tinha entrado em seu ventre.
Nesses dias Ramachandra se encontrava em Calcutá. Antes de partir de Jairambati, meio dia depois de seu almoço dormiu. Em um vívido sonho, veio uma jovenzinha de pele dourada e indescritivelmente formosa, a rodear seu colo carinhosamente com seus braços. Observando seus preciosos ornamentos, perguntou-lhe quem era. Com voz musical lhe respondeu: “Como vê, vim para sua família”. Ao regressar de Calcutá, sua esposa lhe contou sua visão e o humilde casal não duvidou da autenticidade das duas experiências. Estavam seguros de que alguma deidade nasceria na família. O esposo se manteve separado de sua esposa até o nascimento da criança.
Em uma quinta-feira, 22 de dezembro de 1853, a primeira filha de Ramachandra e Shyamasundari veio à luz de dia. De acordo com os cálculos astrológicos, lhe foi dado o nome de Thakurmani, porém a família a chamada Saradamani ou Sarada, para abreviar.
Com o correr do tempo, o casal teve seis filhos mais: uma menina chamada Kadambini e cinco varões chamados Prasanna, Umesh, Kalikumar, Bárada e Abhay. Kadambini, Umesh e Abhay morreram em idade precoce. Os outros irmãos, ao chegar à idade adulta, se instalaram em casas separadas, em Jairambati. Ramachandra tinha três irmãos: Trailokya, Iswar e Nilmadhav. Todos viviam juntos. Sarada foi criada em uma família numerosa, que sufragava seus gastos com grande dificuldade, mediante o dinheiro ganho no cultivo da terra e os deveres sacerdotais.
A pobreza, em meio ao qual cresceu Sarada, não privou a família de amor e felicidade. Sendo uma menina, ajudava ativamente sua mãe a cozinhar e a cuidar de seus irmãos e tios. Em anos posteriores, ela lembraria: “Me ocupava muito de cuidar de meus tios. Me pergunto se farão outro tanto as jovens modernas”. Seu pai a ajudava a retirar a pesada panela com arroz do fogo e logo levava as crianças para banhar-se no Amodar. Costumava juntar um pouco de algodão dos campos e logo fazia cordões sagrados, dos que usam os brahmines, colaborando em sua medida, com as magras entradas da família.
Muitas vezes Sarada penetrava na água até o pescoço para cortar o pasto para o gado e freqüentemente levava a merenda aos que trabalhavam no campo. Um ano a colheita de arroz foi destruída por uma praga de gafanhotos e a pequena Sarada percorria os campos juntando grão por grão. Desde a infância viveu uma vida muito ativa; não era necessário lembrá-la de seus deveres, pois inteligentemente se antecipava a eles e os cumpria alegremente.
Sábia e reflexiva por natureza, nunca brincava com suas companheiras de jogos. Por outro lado, quando duas delas discutiam, ela atuava de mediadora e as pacificava. Em suas brincadeiras, ela sempre representava o papel de dona de casa. Adorava suas bonecas, sendo suas favoritas as de Kali e Lakshmi, duas das deusas hindus, a quem adorava com flores e folhas sagradas, com toda devoção. Um dia, alguns anos mais tarde, enquanto presenciava o culto de Jagadhatri (lit. “Ela sustenta o Universo”, um aspecto da Divina Mãe), ficou tão profundamente absorta, que um visitante a confundiu com a imagem da Divina Mãe.
Parece que naquele tempo, certa espécie de anjos guardiões a acompanhava. Recordando aqueles primeiros anos, uma vez disse a um discípulo: “Uma menina muito parecida comigo, costumava acompanhar-me e ajudar-me em meu trabalho. Nos divertíamos muito juntas. Mas quando aparecia gente, ela desaparecia. Esta experiência continuou até meus 10 ou 11 anos. Quando entrava em uma laguna para cortar pasto para o gado, uma menina de minha idade ia comigo. Quando levava um feixe até a margem e voltava para a água para buscar mais pasto, via que ela tinha feito o feixe para mim”.
De vez em quando Sarada acompanhava seus irmãos à escola e pouco a pouco aprendeu o alfabeto. Mas seus parentes não se mostravam partidários de sua educação, em virtude de que nesse tempo, ler e escrever eram coisas desnecessárias para as mulheres. Sarada, sem dúvida, tinha muito entusiasmo por aprender a ler.
A falta de uma educação formal em Sarada, não foi um obstáculo para o desenvolvimento de sua mente. Em anos posteriores, ela demonstrou um poder pouco comum de compreensão, enquanto dava instrução espiritual a devotos educados e capazes, que às vezes falavam um idioma diferente do seu. Os cimentos desta compreensão devem ser encontrados em sua infância, fora da escola.
Primeiro, seus muito piedosos pais e sua vida de serviço inegoísta, estimulou sua mente em maior medida que um estudo formal. Em segundo lugar, teve contato com a cultura espiritual da Índia, mediante os cantos devocionais de mendigos e mendicantes religiosos. Sarada participava nos festivais religiosos da aldeia e escutava os dramas representados pelos campesinos, mediante cenas dos mitos religiosos dos hindus. Estes deixaram profunda impressão em sua mente, a ponto de que, muitos anos depois, costumava citá-los a seus discípulos. Em terceiro lugar, a pura e singela vida da aldeia, os campos espaçosos, o céu aberto, as árvores e os pássaros, deram profundidade e expansão a seus pontos de vista. E, sobretudo, em idade precoce, teve o raro privilégio de entrar em contato com um homem-deus, nada menos que seu esposo quem, como veremos, se encarregou da tarefa de desenvolver sua mente e seu caráter.
ENQUANTO SARADA crescia no ambiente rural de Jairambati, em Dakshineswar, perto de Calcutá, se desenrolava um drama de grande significado, em cujo desenlace Sarada teria uma participação vital.
Sri Ramakrishna, que tinha nascido em 1836, em Kamarpukur, tinha manifestado, desde sua mais tenra infância, um intenso desejo pela realização de Deus. Em 1852 foi a Calcutá e em pouco tempo aceitou o cargo de sacerdote no templo da Divina Mãe Kali, conhecida como Bhavatarini, a Salvadora do Mundo, situado na vila suburbana de Dakshineswar.
O culto à Divina Mãe intensificou ainda mais seu desejo pela direta realização; este desejo logo se converteu em uma paixão avassaladora até que, finalmente, foi abençoada com uma visão da Mãe Kali.
Esta primeira experiência da Divina Mãe acentuou seu desejo por uma comunhão ininterrupta com Deus. Para realizar este ideal, começou a praticar diferentes disciplinas. Completamente embriagado por Deus, se tornou indiferente quanto à comida, sono e outras necessidades da vida. Dia e noite passava em meditação e oração. Seu desejo sem trégua por Deus se expressava em atormentadores clamores pela Divina Mãe. Fugia das pessoas mundanas e o mundo exterior deixou de ter sentido algum para ele. Sua conduta se assemelhava a de um louco. Durante uma de suas visitas a Kamarpukur, sua mãe e seu irmão se alarmaram por sua conduta estranha e anormal.
Pensaram que sofria de alguma séria enfermidade física e mental e o submeteram a diferentes tratamentos, tanto científicos como sobrenaturais. Quando foi demonstrado que tudo era inútil, idealizaram um plano direto: o casariam e assim trariam sua mente ao nível normal. Sem pedir seu consentimento, começaram a buscar uma noiva apta para ele, mas sem êxito. Ele, tendo observado a tristeza e preocupação de seus familiares, em lugar de se opor a seu casamento, ficou de acordo com tal projeto e alegremente lhes disse: “Por que andam daqui pra lá buscando a noiva? Vão à casa de Ramachandra Mukherjee, em Jairambati e ali a encontrarão atada – por assim dizer - a um feixe”. *
*
Alusão a um costume do lugar. O cabo de certa
fruta destinada ao culto, freqüentemente é amarrado em forma de feixe e colocado
separado das outras frutas.
Em maio de 1859, Sri Ramakrishna e Sarada se casaram em Jairambati. Nesse tempo, então, Sri Ramakrishna tinha 23 anos e Sarada pouco mais que cinco. O matrimônio precoce, para uma menina hindu, especialmente as que vivem nas aldeias, não era nada de excepcional. Por certo que tal matrimônio era de palavra e não de fato. O verdadeiro matrimônio acontecia quando a esposa chegasse a idade adulta e então ela e seu esposo viveriam juntos.
O casamento de Sri Ramakrishna, no entanto, foi muito estranho. Temos ante nossos olhos uma noiva, em quem a consciência do sexo não tinha despertado e a qual permaneceu livre toda sua vida. E um noivo que considerava todas as mulheres como sua própria mãe e personificação da Divina Mãe – atitude que manteve enquanto viveu. Naquele momento, por causa de sua absorção nas práticas espirituais, havia esquecido de ambos. Seu corpo e o mundo e era guiado, em todos os seus atos, pela Divina Mãe Mesma, com quem havia estabelecido a mais íntima relação. Por tanto, podemos deduzir que seu matrimônio foi guiado pelo dedo de Deus, já que não serviu a propósito humano algum para nenhum dos dois, mas que cumpriu com uma divina missão. Porque Sarada estava destinada a continuar, depois de sua morte, seu trabalho inconcluso de ensinamento espiritual.
No dia seguinte da cerimônia nupcial, Sri Ramakrishna regressou a Kamarpukur com sua noiva. Sarada foi calorosamente recebida por sua sogra, Chandra Devi. Mas logo surgiu uma delicada situação. Como a família era muito pobre para comprar ornamentos para a noiva, Chandra Devi os havia pedido emprestado a uma vizinha abastada. Sarada, naturalmente, acreditou que esses adornos eram seus. Ao chegar a Kamarpukur, todas as jóias deveriam ser devolvidas à sua dona, mas como despoja-las da pequena Sarada? Sri Ramakrishna veio salvar sua mãe da situação. Enquanto a menina dormia, ele habilmente tirou os ornamentos, que foram entregues a dona. Quando Sarada despertou, notou sua falta e começou a reclama-los. Sua sogra a tomou nos braços e a consolou ternamente, dizendo-lhe: “Meu filho lhe dará jóias mais preciosas que essas”. Sarada se tranqüilizou, mas um de seus tios, que se encontrava na casa, se desgostou e levou a pequena à sua casa. Sri Ramakrishna se divertiu com esse incidente e disse, rindo: “Podem leva-la de volta, mas não podem anular o casamento”.
Depois dos esponsais, Sri Ramakrishna permaneceu cerca de dois anos em Kamarpukur. Durante esse período, em dezembro de 1860, quando Sarada tinha sete anos, fez uma curta visita a Jairambati. Recordando um incidente daquele tempo, Sarada disse, muitos anos mais tarde que, por sua própria iniciativa, tinha lavado os pés de seu esposo e o havia abanado, enquanto outras meninas riam dela. Também lembrou que Hriday, o sobrinho de Sri Ramakrishna, tinha adornado seus pés com flores, deixando-a perplexa.
Pouco depois Sri Ramakrishna regressou a Kamarpukur com Sarada. Em poucos dias voltou a Calcutá e esquecendo tudo o relacionado com seu matrimônio e sua esposa, se submergiu novamente na prática de disciplinas espirituais. Sarada, por sua vez, voltou ao lar paterno e reassumiu seus deveres na família.
Em 1864, quando Sarada tinha pouco mais de 10 anos, Bengala sofreu uma terrível fome, de cujos efeitos Jairambati não pode escapar. As pessoas morriam de inanição e muitos chegavam a casa de Ramachandra em busca de alimento. Em meio de sua pobreza, Ramachandra tinha conseguido armazenar certa quantidade de arroz da colheita do ano anterior e abriu uma cozinha ao ar livre para os chefes de família. Serviam-se juntos o arroz e as lentilhas e se colocavam em várias grandes panelas. Esta preparação se chama Kichuri. Os membros da família, junto com as vítimas da situação, comiam esta simples comida. Contudo, Ramachandra tinha dado ordens para que se cozinhasse separadamente um pouco de com arroz para Sarada. Às vezes era tanta gente esfomeada que chegava, que tinham que cozinhar quantidades adicionais de kichuri. Sarada abanava a comida, para assim esfria-la um pouco. Um dia uma mulher de baixa casta, com o cabelo desordenado e olhos vesgos chegou a casa. Era evidente que fazia tempo que não comia. Vendo um pouco de arroz remoído em uma tina para o gado, começou a comê-lo. Sarada lhe pediu que entrasse na casa e comesse kichuri, mas a mulher estava desesperada e não podia esperar. Lembrando este incidente, Sarada disse, muitos anos depois: “Não é brincadeira suportar a agonia de um estômago vazio!”.
Durante a ausência de Sri Ramakrishna, Sarada visitou Kamarpukur duas vezes, vivendo lá com seu cunhado Rameswar – o segundo irmão de Sri Ramakrishna – sua cunhada e outros parentes. Sua sogra, desde então, vivia em Dakshineswar com Sri Ramakrishna. Em Kamarpukur, Sarada aprendeu a cozinhar, a cantar e também, a nadar com a ajuda de uma bacia invertida.
Nessa oportunidade, quis continuar sua educação e começou a ler a cartilha bengali com Lakshmi, filha de Rameswar. Mas Hriday lhe arrancou o livro, dizendo que as mulheres não deviam aprender a ler, pois logo se dedicariam a ler novelas. Mas Lakshmi, sendo da família, fez valer seus direito e não soltou o livro. Sarada, secretamente, comprou um livro por alguns centavos e tinha suas lições de Lakshmi, quando ela regressava da escola. Como veremos mais adiante, Sarada reassumiu seus estudos seriamente, muitos anos depois, em Dakshineswar.
Durante
uma de suas visitas a Kamarpukur, Sarada teve uma estranha experiência a qual,
mais tarde, descreveu a seus devotos: “Tinha, nesse
tempo, 13 anos, era a mais jovem da família e me atemorizava a ir sozinha da
casa ao tanque para banhar-me. Um dia saía de casa com essa preocupação, quando
apareceram, não sei de onde, oito jovens donzelas. Quando fui pelo caminho para
o tanque, quatro delas caminhavam diante de mim e quatro atrás. Assim
protegida, caminhei até a água e todas nós nos banhamos juntas. Logo me
acompanharam até em casa”. Isto continuou pelo tempo em que Sarada viveu em
Kamarpukur, nessa ocasião. Ela não pode desentranhar o mistério, nem perguntou
às jovens quem eram.*
* segundo a mitologia hindu, a Divina Mãe do Universo tem oito assistentes.
Em 1867 Sri Ramakrishna voltou a Kamarpukur para se recuperar de seus transtornos estomacais. Para isso, então, o período de suas profundas práticas espirituais, as quais tinha se dedicado totalmente, tinha finalizado. Agora, firmemente estabelecido na consciência de Deus, era visto mais sereno e espontâneo.
Anos depois, o Mestre descreveu aos seus devotos os três estados da evolução mental de um homem. Durante o primeiro estado, toma o mundo de nomes e formas como sendo real e nega a existência da Divindade por detrás de tudo isso; é um estado de ignorância (agnana). Durante o segundo estado, nega o mundo como sendo maia e vê somente Brahman, o puro espírito; este é um estado de conhecimento (gnana). Durante o último estado, novamente vê o mundo de nomes e formas, mas agora como a manifestação de Brahman; este é um estado de conhecimento maduro (vignana). A alma iluminada, dotada com este maduro conhecimento, aceita uma vez mais o movimento cósmico vendo-o como um jogo (a lila) de Brahman. Então permanece como uma criança, cândido e espontâneo. Sri Ramakrishna estava estabelecido em vignana.
As pessoas de Kamarpukur se sentiam imensamente felizes em ter novamente o jovem Gadahar (nome dado a Sri Ramakrishna ao nascer; Gadai, para abreviar) entre eles. Em sua presença sentiam uma estranha paz e buscavam sua companhia. Sua família o tinha perdido de vista por sete anos; agora ele se apresentava a parentes e vizinhos, entretendo-lhes com brincadeiras e histórias, mas recordando-lhes, sempre, da necessidade da vida espiritual. A casa se transformou em um período de alegria. Para tornar mais completa esta felicidade, trouxeram Sarada. Ela tinha já 14 anos. Nesta oportunidade, passou seis meses com seu esposo e teve um primeiro vislumbre de sua personalidade.
Para Sarada – como para toda a esposa ortodoxa hindu – seu esposo era um verdadeiro Deus, seu único refúgio aqui e mais além. Sri Ramakrishna, por seu lado, lhe mostrou grande respeito e dedicação. Compreendendo sua responsabilidade para com sua jovem esposa, que dependia completamente de seu direcionamento, procedeu a instrui-la desde o infinito propósito de sua sabedora, tanto a assuntos espirituais quanto seculares. Mas, além de tudo, ganhou seu coração pelo seu amor livre de todo o vestígio de mundanidade.
Sri Ramakrishna não somente manteve diante de Sarada o Ideal de sua própria vida de total renúncia aos desejos mundanos, mas também a instruiu sobe seus deveres como dona-de-casa; como servir os convidados; mostrar respeito aos mais velhos e ser atenta e respeitada pelos jovens e a dedicação ao serviço da família.
A essência de seu ensinamento era que todos devem corresponder com respeito às pessoas, tempo, lugar e circunstâncias, ensinamento que Sarada praticou até o último dia de sua vida, em seu tratamento com as pessoas de diferentes gostos, temperamentos, necessidades, caracteres e idade, em diferentes aspectos de evolução moral e espiritual.
Sri Ramakrishna falava durante horas diante de Sarada e suas companheiras, sobre temas espirituais e de suas próprias experiências íntimas. Às vezes a jovem esposa se sentia cansada e acabava dormindo no chão. Suas companheiras, então, a despertavam, dizendo-lhe: “Você dormiu! Não sabe as palavras divinas que perdeu!”. A isto, Sri Ramakrishna dizia: “Não, não a acordem; se ela escutasse tudo o que digo, não ficaria nesta terra, abriria suas asas e voaria”.
Sarada estava impressionada com o rosto sempre alegre e seu esposo. Disse, mais tarde: “Nunca o vi triste ou sombrio, sempre irradiava felicidade, fosse absorto em samadhi ou em companhia de pessoas de qualquer idade. Nunca o vi preocupado com nada”. Esta felicidade inata deve ter impressionado profundamente Sarada. Referindo-se a seu primeiro encontro pessoal com Sri Ramakrishna, disse, mais tarde, a seus devotos: “Naquele tempo, sentia constantemente como se tivesse um cântaro cheio de felicidade em meu coração. É impossível descrever essa divina felicidade, plena até a borda”.
Sri Ramakrishna estava muito longe de ser um asceta austero e seco. Certamente fazia brincadeiras e se divertia. Sarada lembrou, uma vez, de um pequeno incidente daquele tempo: “O Mestre sofria do estômago. Eu era muito jovem. Durante as primeiras horas da manhã despertava e nos dizia o que gostaria de comer ao meio-dia. Eu cumpria com suas instruções. Um dia vi que não tínhamos uma especiaria que ele queria que fosse misturada com a sopa de lentilhas, para lhe dar sabor. Minha cunhada me disse que prescindia de tal especiaria. O Mestre a olhou e disse: ‘Como pode ser? Se não há na casa, vão compra-la. Não é correto cozinhar os legumes sem o devido condimento. Eu renunciei aos deliciosos pratos do templo de Dakshineswar e venho aqui justamente para degustar do sabor dessa especiaria e vocês querem privar-me disto. Não está bem’. Minha cunhada se sentiu envergonhada e mandou comprar a especiaria”.
Mas Sri Ramakrishna se cansou logo dos pratos especiais e disse: “Em que aperto me meti! Quando me levanto não falo mais que de comida! Deus meu! De agora em diante comerei o que vocês prepararem”. A constante diarréia que sofria lhe fez dizer, um dia: “Este corpo não contém mais que excrementos. Estou farto dele”. Assim foi que perdeu todo interesse em seu corpo e não lhe prestou mais atenção.
Nessa oportunidade, Sri Ramakrishna tinha ido a Kamarpukur, acompanhado por Bhoiravi Brahmani, a quem chamava “Mãe”. Sarada a considerava como sua sogra, mas a Brahmani era de caráter violento e às vezes a atemorizava. Sarada disse sobre ela: “Gostava de pimentão bem picantes e cozinhava sua própria comida. Certamente me oferecia e eu a comia em silêncio, secando dissimuladamente as lágrimas. Oh! Que picantes eram suas comidas! Logo me perguntava se eu havia gostado e eu, por temor, lhe dizia, ‘Sim, muito boa!”. Mas minha cunhada lhe dizia a verdade. Então a Brahmani se incomodava porque considerava uma crítica e dizia: “Por que? Minha filha aprova meus pratos. E você, nada lhe satisfaz; não lhe darei mais do que cozinho”. Sarada ria quando, muito mais tarde, narrava estes incidentes a seus devotos.
Sri Ramakrishna sabia que, anos mais tarde, Sarada atuaria como mestre espiritual e lhe falava sobre a natureza insubstancial do mundo, suas angústias e sofrimentos. Pedia-lhe que cultivasse o desapego para com os objetos transitórios e desenvolvesse amor a Deus, somente Quem é real e eterno. “Que bem há?” – lhe disse um dia – “em dar nascimento, como cachorros e chacais, a um montão de filhos? Você já perdeu a sua irmãzinha, de quem tanto cuidou e viu o quanto seus pais sofreram com sua morte. Já viu tudo com seus próprios olhos. Que miserável é a vida do mundo! Por que há de se preocupar com ela? Sem semelhantes preocupações, você agora é como uma deusa e permanecerá sempre uma deusa”.
Ouvindo tão cru raciocínio sobre a morte, a tímida Sarada disse suavemente: “Mas é que todos eles morrem?”. Possivelmente ela sentia, no mais íntimo de seu coração, o desejo de ser mãe, sentimento que está presente em todas as mulheres. Imediatamente Sri Ramakrishna disse às outras senhoras que estavam presentes: “Vejam vocês! Foi pisado na cauda de uma verdadeira cobra! Bendito seja Deus! Sarada é uma alma tão simples, completamente inocente dos caminhos do mundo, mas vejam quanto entesoura dentro dela! Ouviram o que foi dito? É que todos morrem?”. Sarada, envergonhada, se afastou.
Cada vez que Sri Ramakrishna feria os sentimentos de Sarada tratava, de alguma maneira, de remedia-lo. Um dia estava sendo representada uma obra teatral religiosa na aldeia vizinha. Sarada e as outras senhoras queriam ir, mas o Mestre negou seu consentimento, dizendo que ele mesmo logo a representaria para elas. Sarada se sentiu ferida. Quando finalizou a representação, ele regressou a sua casa e representou toda a obra até em seus mínimos detalhes. Sri Ramakrishna tinha uma voz musical muito doce e uma memória prodigiosa; era, além do mais, um perfeito ator.
As senhoras da família esqueceram sua decepção e ficaram encantadas com sua imitação.
PRIMEIRA VISITA A DAKSHINESWAR
SRI RAMAKRISHNA regressou a Dakshineswar e Sarada a Jairambati. A divina companhia do Mestre tinha produzido uma mudança no caráter íntimo de Sarada, o que não era percebido pelos demais. Tornou-se mais concentrada, profunda, reflexiva e inegoísta. Sentiu que não lhe faltava nada e despertou nela uma grande simpatia pelos sofrimentos e tribulações das pessoas. Converteu-se na viva imagem da compaixão. Não obstante, sua vida exterior prosseguiu como antes, entre seus parentes, em sua casa paterna.
Transcorreram quatro longos anos. Sarada, naturalmente, sentia falta de Sri Ramakrishna. Uma angústia escondida transpassava seu coração, mas a lembrança da divina felicidade que havia experimentado em Kamarpukur a ajudava, de alguma maneira, a suportar sua vida, dia após dia. Às vezes dizia si mesma: “Ele foi tão afetuoso comigo na última vez, como pude esquecer-me? A seu devido tempo, por sua própria decisão, me chamará ao seu lado. Que possa esperar pacientemente esse feliz momento!”.
Enquanto isso, chegaram até Jairambati alguns rumores de que Sri Ramakrishna, novamente estava completamente louco em Dakshineswar; que andava desnudo e clamava em voz alta o nome de Deus. As pessoas confundiam seu estado de embriaguez de Deus com uma loucura comum. As mulheres da aldeia, que naturalmente gostam mais dos murmúrios do que comer e beber, apontavam Sarada como ‘a mulher de um louco’ e fingindo simpatia diziam: “Pobre Shyamasundari! Casou sua filha com um lunático, que desgraça!”. Shyamasundari se sentia profundamente angustiada pela indiferença de Sri Ramakrishna para com o mundo e de vez em quando dizia, diante de sua filha: “Casei minha filha com um louco. É como se a tivesse atirado ao mar atada pelos pés e mãos!”. Sarada se sentia dolorida por estas observações e evitava as pessoas o mais que podia. Encontrava certo alívio em manter-se ocupada com suas obrigações do lar dia e noite. Não obstante, sentia certa tranqüilidade na companhia de uma senhora do lugar, chamada Bhanu, a quem ela chamava ‘tia Bhanu’. Esta mulher possuía certa visão interior, havia tido um vislumbre da personalidade de Sri Ramakrishna e uma vez disse a Shyamasundari, “Seu genro é Shiva mesmo e Krishna também. Pode ser que você não compreenda agora, mas compreenderá mais tarde. Lembre de minhas palavras”. Ferida pelas críticas para com seu esposo, Sarada ia constantemente à casa de tia Bhanu e se sentava no alpendre. Mas seu verdadeiro alívio era unicamente com sua intensa ocupação e dedicação aos deveres do lar.
Referindo-se a esses momentos tão difíceis de sua vida, disse mais tarde: “As pessoas devem manter-se sempre ocupadas. O trabalho mantém o corpo e a mente em bom estado. Em Jairambati, em minha primeira juventude, ficava ativa dia e noite e não visitava a casa de ninguém. Se alguma vez o fazia, a única coisa que ouvia dizer das pessoas era: ‘A filha de Shyamasundari é casada com um louco!’. Para não ouvir tais comentários, evitava as pessoas, mas não era fácil fazer calar essa gente mesquinha”.
Finalmente Sarada decidiu ir a Dakshineswar e ver as coisas com seus próprios olhos. Como a maioria das moças hindus, sentia grande timidez de falar a seu pai deste assunto; finalmente uma amiga o fez em seu nome. Seu pai ficou de acordo e acompanhou, ele mesmo, sua filha.
Logo se apresentou a oportunidade. Um grupo de mulheres tinha resolvido ir a Calcutá, distante 60 milhas, para banhar-se no sagrado Ganges em uma ocasião muito auspiciosa. Sarada e seu pai se uniram ao grupo, partindo de Jairambati em 25 de março de 1872. Os primeiros dias da caminhada foram leves e alegres. Sendo esta sua primeira saída mais além dos contornos de sua própria aldeia, Sarada desfrutava, contemplando os campos cobertos de pastos primaveris, os arrozais, as árvores frondosas, refúgio de uma multidão de aves canoras e os lagos cobertos de lótus e lírios em flor. Mas gradualmente suas pernas começaram a não lhe responder. A vida em uma região açoitada pela malária, não lhe havia concedido um físico robusto. No princípio ocultou seu cansaço de seu pai, até que, finalmente, se sentiu vencida pela febre alta. Isto lhes obrigou a fazer uma parada no caminho, em uma pequena pousada. Além do mais, se sentia mentalmente torturada pelo temor de que fosse seu destino não ver seu esposo.
Sofrendo assim física e mentalmente e quase inconsciente de tudo que a rodeava, entrou no seu quarto uma mulher de grande beleza e sentou-se ao seu lado. A desconhecia e tinha a pele muito escura, lembrando a Mãe Kali. Enquanto passava suavemente suas mãos pelo corpo de Sarada, a dor parecia escorrer pelos poros de sua pele. Então perguntou à visitante de onde vinha. Visitante: de Dakshineswar.
Sarada (surpresa): Verdade? Eu queria ir a Dakshineswar para vê-lo e servi-lo, mas talvez sela minha má sorte que meu desejo não se cumpra!
Visitante: Oh, não diga isso! Seguramente irá a Dakshineswar. Você ficará bem e o verá. É para você que o tenho conservado lá.
Sarada: De verdade? Quem é você? Algum parente nosso?
Visitante: Sou sua irmã.
Sarada: Talvez seja por isso que você veio...
Sarada observou que os pés da desconhecida estavam cobertos de pó, como se tivesse caminhado uma longa distância e lhe perguntou como era que ninguém tinha oferecido água para lavar-se. A desconhecida lhe disse que tinha que ir embora e desapareceu. *
* Evidentemente que era a Deusa Kali quem lhe apareceu nesta visão.
Logo Sarada ficou profundamente adormecida. Na manhã seguinte a temperatura estava normal. A visão a tinha feito se sentir renovada e havia devolvido o entusiasmo perdido. Seu pai não achou prudente permanecer mais tempo nesse lugar solitário e desconhecido e propôs continuar a marcha, ao que Sarada alegremente consentiu. Depois de percorrer certa distância, conseguiram um palanquim. Finalmente chegaram ao destino. Fizeram a última parte da viagem sobre o Ganges, em um barco rural.
O grupo chegou a Dakshineswar às 9 da noite. Ao desembarcar, Sarada conseguiu ouvir a voz de Sri Ramakrishna, que dizia a Hriday, da varanda de seu quarto, que ficava frente ao rio: “Esta é sua primeira visita; espero que a hora seja auspiciosa”. Estas primeiras palavras do Mestre, cheias de ternura, encorajaram Sarada a dirigir-se diretamente ao quarto de seu esposo. Seus companheiros se dirigiram a seus respectivos alojamentos.
Tão logo como Sri Ramakrishna veio a Sarada, disse: “Me sinto muito feliz que tenha vindo”. Pediu a alguém que estendesse uma esteira sobre o piso e ambos se sentaram para conversar. Sabendo de seu mal-estar durante a viagem, expressou sua preocupação. Ansioso por presentear-lhe comodidade física e tratamento adequado, dizia uma e outra vez: “Você chegou tarde. Ai! Meu Mathur não vive mais para cuidar de você. Com sua morte, sinto como se tivesse perdido meu braço direito!”. *
* O abastado custodio do templo de
Kali e provedor das necessidades pessoais de Sri Ramakrishna havia falecido
poucos meses antes.
Sarada quis ir ao Nahabat, onde vivia sua sogra, mas Sri Ramakrishna lhe disse, “Oh, não, fique em meu quarto. Será mais cômodo ao médico vê-la aqui”. Foi preparada uma cama separada para Sarada, no quarto do Mestre e se conveniou que uma de suas companheiras passasse a noite com ela. Como já havia passado da hora da ceia, Hriday deu aos visitantes uma grande tigela de arroz inflado como ceia. No dia seguinte veio o médico e em 3 ou 4 dias, Sarada se sentiu completamente restabelecida. Então foi ao Nahabat para ficar perto de sua sogra.
Sarada sempre sentiu grande carinho e respeito pela família de seu esposo. Seu sogro tinha falecido muito antes. Perto dele disse, um dia, com grande reverência: “Era um brahmin de espírito elevadíssimo. Ortodoxo até os ossos, não aceitava presentes das pessoas que não fossem brahmins, nem permitia que sua família aceitasse. Se algum vizinho dava à família algumas hortaliças como presente, minha sogra as cozinhava e as oferecia à deidade da família. Isto incomodava muito meu sogro. Sentia um amor abrasador por Deus. Por causa desse amor, Deus nasceu como seu filho”.
Com todo carinho se dedicou a cuidar de sua sogra e através dela conheceu as muitas alegrias e tristezas da família. Muito impressionada pela sua ortodoxia, mais tarde disse a um devoto: “Apesar de ter nascido em uma família tão ortodoxa, o Mestre teve que aceitar o posto de sacerdote em um templo, propriedade de um pescador!”. *
* Rani Rashmoni
e seu genro pertenciam a baixa casta dos pescadores.
Um brahmin não trabalha para um membro de casta inferior.
Seu encontro direto com Sri Ramakrishna, de imediato a convenceu da falsidade dos rumores de sua aldeia sobre sua insanidade. Todas as sombras se dissiparam por completo nesta primeira visita. Encontrou Sri Ramakrishna tão pleno de afeto, amor e ternura como antes, se não mais. Em seguida se deu conta de quais eram seus deveres e se dedicou por completo ao serviço de seu esposo e de sua sogra. Seu pai, impressionado pelo estado profundamente espiritual de seu genro e com a certeza de que Sarada seria feliz em Dakshineswar, partiu para Jairambati com a mente serena e despreocupada.
Agora Sri Ramakrishna se propôs à tarefa de provar a profundidade e realidade de seu conhecimento de Brahman. Ao mesmo tempo, quis cumprir com seus deveres para com sua esposa, iniciados em Kamarpukur e interrompida por seu período de práticas espirituais, em Dakshineswar. Seu mestre, Tota Puri, quando soube que o Mestre era casado, lhe disse: “Somente está estabelecido na realização de Brahman aquele que vê o mesmo Ser no homem e na mulher. O que vê a diferença entre os sexos pode ser um aspirante, mas está longe até de experimentar Brahman”. Disse, além do mais, que a alma iluminada como Sri Ramakrishna, firme no conhecimento do Ser, poderia muito bem cumprir com seus deveres para com sua esposa sem que isto interferisse em sua vida espiritual.
Sri Ramakrishna começou a ensinar Sarada o relacionado com os deveres do lar; como preparar as lamparinas de azeite; como dispor as verduras e preparar folhas de betel *; como ajustar sua conduta segundo o tempo, lugar, circunstância e a natureza das pessoas com quem devia tratar e a não ferir os sentimentos de ninguém. Colocava especial ênfase em que abrigasse sentimentos amistosos para com todos. Uma vez, ao sair para Kamarpukur, ele lhe disse: “Seja agradável para com seus vizinhos; se alguém estiver enfermo, interesse-se por sua saúde de quando em quando”.
* Utilizadas com especiarias para mastigar depois das comidas, como digestivo.
Em outra ocasião, anos mais tarde, a esposa de Balaram Bose, devoto chefe de família de Sri Ramakrishna, estava doente em Calcutá. O Mestre pediu a Sarada que fosse vê-la. Não acostumada a caminhar pelas ruas da cidade, perguntou como poderia ir, dado que não havia nenhum veículo. “Vá a pé” – disse com firmeza o Mestre – “meu Balaram pode perder sua esposa e você não irá vê-la? Vá a pé”.
Sri Ramakrishna também instruiu Sarada sobre meditação, oração, samadhi e o conhecimento de Brahman. Não perdia a oportunidade para imprimir em sua mente a idéia de que a realização de Deus é o único objetivo da vida humana. Além do mais vigiava bem de perto se seus ensinamentos se cumpriam. Um dia, falando de Deus, Sri Ramakrishna lhe disse: “Assim como a lua é o ‘tio’ de todas as crianças, assim Deus é muito de cada um; todos temos o mesmo direito de chama-Lo. Aquele que roga a deus com segurança, será abençoado com Sua visão. Rogue a Deus e tenha a certeza de que O verá”.
Certamente Sri Ramakrishna colocava a prova o desejo espiritual de Sarada. Passava todo o dia no Nahabat, mas a noite voltava ao quarto do Mestre para dormir. Uma noite, encontrando-a sozinha, lhe perguntou: “Diga-me se veio aqui para fazer baixar minha mente à vida mundana”. Sem a menor hesitação, ela respondeu: “Certamente que não. Por que eu lhe arrastaria ao mundo? Eu vim para lhe ajudar em seu ideal espiritual”. Por sua vez, um dia, enquanto massageava seus pés, Sarada lhe perguntou: “Como me considera?”. Ele lhe respondeu: “A Mãe adorada no templo e a mãe que me trouxe ao mundo, a mesma mãe é a que agora massageia meus pés. Realmente a considero como a personificação da bem-aventurada Mãe do Universo”.
Sri Ramakrishna queria por à prova sua total integridade espiritual: pediu a Sarada que compartilhasse seu próprio leito. Freqüentemente passava a noite em samadhi, inconsciente de seu corpo, mas uma noite, encontrando-se consciente do mundo, dirigiu seu olhar a sua jovem esposa, que dormia a seu lado e disse a si mesmo: “Oh! Mente, este é um corpo de mulher; os homens o consideram como o mais cobiçado e estão sempre ansiosos por gozar dele. Mas se um homem abraça este corpo, fica enredado no mundo e não pode realizar Deus. Agora, oh mente minha, não seja hipócrita. Pode ser que a língua não diga o que sente o coração; seja verdadeira e diga-me o que quer: este corpo ou Deus. Se quiser o primeiro, aqui o tem, tome-o”. Fazendo este discernimento, estendeu sua mão para tocar em Sarada, mas de imediato retrocedeu e ele entrou em samadhi. Nessa noite não recobrou o estado normal. No dia seguinte, depois de repetidos esforços, conseguiu fazer baixar sua consciência ao mundo físico.
Durante oito longos meses, Sri Ramakrishna e Sarada passaram suas noites juntos. A mente de Sarada, como a de seu esposo, vivia constantemente no plano mais elevado. Nenhum dos dois sentia o mais leve desejo pelos prazeres físicos. Muitos anos depois, Sri Ramakrishna disse a seus discípulos: “Se ela não tivesse sido tão integralmente pura, se tivesse perdido seu controle e exigido satisfações físicas de mim, por acaso, não seria possível que eu também perdesse meu controle e que minha mente descesse ao nível físico? Quem pode assegurar isso? Depois de meu casamento, ansiosamente roguei à Divina Mãe: ‘Oh Mãe, lhe rogo, tire todo o vestígio de luxúria da mente de minha esposa!’. Que meu rogo foi literalmente cumprido, pude comprovar quando convivi com ela”.
Anos mais tarde, alguns críticos opinaram que Sri Ramakrishna virtualmente havia forçado Sarada a levar uma vida de uma virgem ou uma viuvez. Quando esta crítica foi formulada por um líder do Brahmo Samaj ante Max Muller, este respondeu: “Em que você se baseia? Por acaso alguma vez a esposa de Sri Ramakrishna expressou alguma queixa contra ele?”. Escreve Romain Rolland: “Sri Ramakrishna pode ser censurado e muito duramente por tê-la sacrificado; sem dúvida, ela mesma jamais demonstrou o menor vestígio de tal sacrifício. Derramou paz e contentamento durante toda sua vida e sobre tudo aquilo que estava em contato com ela. Foi com o consentimento de sua esposa que ele ficou livre de seguir a vida de sua escolha. Magnanimamente ela renunciou a seus direitos sobre seu esposo e o estimulou no cumprimento de sua missão”.
IV
DESPERTAR DA DIVINDADE
SRI RAMAKRISHNA estava ansioso por despertar completamente, em Sarada Devi, sua inata divindade. Depois de repetidas provas, tinha se convencido de sua pureza sem mácula e de que estava preparada para se tornar consciente de sua divina natureza. Os acontecimentos desses momentos não somente cumpriram com tal propósito, mas que também revelaram sua própria relação espiritual com sua esposa e o papel que ela representaria no futuro.
Era 5 de junho de 1872; Sarada tinha dezoito anos e Sri Ramakrishna trinta e seis. O dia era especialmente auspicioso para adorar a Divina Mãe. O Mestre fez os preparativos para realizar o Shoddhasi Puja. *
* Adoração à Divina Mãe como Shoddhasi, um de
seus dez aspectos, representada como uma formosa jovem virgem de 16 anos.
No templo de Kali se realizava o culto com grande despliegue e numeroso público. Mas Sri Ramakrishna arranjou uma cerimônia privada em seu próprio quarto. Já se encontravam dispostos todos os elementos necessários: flores, as sagradas folhas de bel, oferendas de comida, etc. No lugar correspondente estavam colocados assentos para a Deusa. Sri Ramakrishna tinha pedido a Sarada que estivesse presente para o culto, o qual começaria as nove da noite. Depois de cumprir com os ritos preliminares, o Mestre indicou a Sarada para que se sentasse no lugar reservado para a imagem. Encontrando-se já em um estado espiritual semiconsciente, ela cumpriu sua ordem. Então o Mestre invocou a Deidade, pronunciando essa pregação:
“Oh Divina Mãe! Oh eterna virgem, possuidora de todo poder. Lhe rogo, abre a porta da perfeição. Purifica seu corpo e mente e Se manifeste através dela, para o bem de todos”.
Através dos rituais prescritos, identificou Sarada como a deidade e a adorou em tudo, de acordo com as regras das escrituras. Durante todo o tempo em que durou a cerimônia, ela se manteve em um estado semiconsciente, observando tudo, mas incapaz de mover-se ou pronunciar uma só palavra.
Logo Sri Ramakrishna e Sarada perderam toda a consciência do mundo exterior. Ambos, adorador e adorada, uniram-se em um plano transcendental. Desta maneira passou um tempo. Era bem depois da meia-noite quando Sri Ramakrishna recobrou a consciência parcial do mundo. Então se ofereceu completamente à Divina Mãe, manifestada na pessoa de Sarada e entregou a seus pés seu rosário, ele mesmo e tudo o que era seu eu, recitando o seguinte texto sagrado:
“Oh Você, a mais auspiciosa de todos os seres auspiciosos, Oh Consorte de Shiva que cumpre todos os desejos, Oh Refúgio de todos, Oh Você de três olhos *, de cor dourada. Oh Poder de Naraiana, repetidas vezes te saúdo”.
* O terceiro olho colocado
entre os olhos e que denota o olho da Sabedoria.
O culto tinha terminado. A inocente menina, nascida em uma humilde aldeia, agora se fez consciente de um novo poder; e através dela, todas as mulheres do mundo foram santificadas. Sarada Devi, silenciosamente abandonou o quarto e se dirigiu ao Nahabat, logo depois de saudar mentalmente o Mestre.
A cerimônia que acabamos de relatar é das mais significativas. Para Sri Ramakrishna significou a destruição final de toda a luxúria e o completo triunfo do espírito sobre a matéria, a total supressão do animal no homem, ao reconhecer a divindade ali, onde os homens estão menos dispostos a vê-la.
Sri Ramakrishna, mediante esta adoração, concedeu a sua esposa uma posição especial, única na história espiritual do mundo. Algumas das religiões mais elevadas, tais como o Budismo, Hinduísmo e Catolicismo Romano, colocam ênfase no ideal monástico. Aos aspirantes avançados é ensinado a considerar a satisfação dos prazeres carnais como um obstáculo para o progresso espiritual. Muitos profetas e santos permaneceram no celibatário e outros renunciaram as suas esposas.Sri Ramakrishna não somente se casou, mas também manteve sua esposa a seu lado até o ultimo momento de sua vida, sem que nenhum deles permitisse à mente descer ao nível físico.
Através de Sarada Devi, Sri Ramakrishna demonstrou que toda mulher com firme convicção e consciência de sua missão, pode revelar sua divindade e alcançar o respeito e a homenagem dos membros do sexo oposto.
Para Sarada Devi também a adoração foi altamente significativa. Tinha sido pura desde seu nascimento. Sendo uma menina já orava olhando os brancos nardos em flor: “Oh Senhor, faça meu caráter tão branco e fragrante como estas flores!”. Nem a mais leve sombra turvou jamais sua pureza. Agora, ao final da cerimônia, quando Sri Ramakrishna entregou a seus pés o fruto de suas austeridades e seus alcances espirituais, a reconheceu como a verdadeira companheira de sua vida, semelhante a ele em todos os aspectos. Além do mais, mediante este ato, a fez co-participante de sua glória espiritual.
Como veremos mais adiante, Sarada Devi alcançou uma exaltada posição como mestra, sem passar pelas disciplinas usualmente praticadas pelos santos. E as disciplinas espirituais que praticou não foram tanto para sua própria iluminação, como para mostrar um exemplo a outros aspirantes, ou bem para dar um impulso a discípulos sem força mental. Desde esse momento Sri Ramakrishna prosseguiu dando à Sarada Devi indicações e instruções sobre seu futuro papel de mestra, a fim de completar a tarefa já iniciada por ele.
Durante seis meses depois deste culto especial, Sarada Devi passou suas noites, como antes, no quarto de Sri Ramakrishna. A companhia de seu esposo, sem dúvida alguma, era para ela fonte de enorme felicidade. Mas freqüentemente passava as noites sem dormir, por causa dos constantes estados espirituais de seu esposo, dos quais ela sabia muito pouco nessa época.
Lembrando esses momentos, disse mais tarde a seus devotos: “É impossível descrever seus estados espirituais daqueles dias. Em sua embriaguez de Deus, às vezes me dizia palavras incompreensíveis, ora ria, ora chorava e às vezes permanecia imóvel em samadhi, como se fosse um cadáver. E assim passava a noite inteira, meu corpo tremia de temor e ansiosamente esperava que amanhecesse. Eu não sabia nada de samadhi; uma noite sua mente não voltava ao plano comum de consciência e, assustada, mandei buscar Hriday, que depois de repetir o nome do Senhor durante um momento no ouvido do Mestre, pode fazê-lo retomar seu estado normal. Ao dar-se conta de meus apuros, me pediu que fosse dormir no Nahabat”.
Sarada Devi, enquanto viveu em Dakshineswar, fez do serviço ao Mestre e sua mãe, a única preocupação de sua vida. A mãe anciã estava tão fraca, que apenas podia mover-se por seus próprios meios e dependia de sua nora para tudo. Seu quarto estava no piso superior do Nahabat e o de Sarada no térreo, o que significava que Sarada freqüentemente tinha que correr pelas escadas assim que era chamada. Todo o momento que Sarada podia passar com seu esposo, era de um significado espiritual indizível. O fato dela ser capaz de captar a irradiação espiritual do Mestre, demonstra sua própria profundidade e desenvolvimento espiritual.
Durante esta primeira estada em Dakshineswar, Sarada passou um ano e oito meses. Em outubro de 1873 retornou a Kamarpukur e também foi a Jairambati visitar seus parentes.
No total, passou em Dakshineswar uns dez anos, com seu esposo. Uma vez um discípulo lhe perguntou quanto tempo tinha vivido em Dakshineswar. “Oh, muito tempo” – disse – “a primeira vez eu tinha 18 anos e depois disso continuei vivendo ali até a morte do Mestre. A cada dois ou três anos visitava Kamarpukur e Jairambati”. Sarada Devi foi a Kamarpukur a Dakshineswar oito vezes, a última vez em outubro de 1885, quando Sri Ramakrishna estava com câncer. Desnecessário dizer que, durante essas visitas, sempre se chegava a Jairambati. Durante todo este tempo, a crisálida lentamente se transformava em uma borboleta.
Durante este período ocorreram importantes acontecimentos. Rameswar, o irmão de Sri Ramakrishna, faleceu quando ela estava em Kamarpukur e em 26 de março de 1874, seu honorável pai, o devoto adorador de Rama, deixou o corpo. Sua viúva Shyamasundari teve que enfrentar uma espantosa miséria, ao serem interrompidas as entradas provenientes dos deveres sacerdotais do esposo. Afortunadamente tinha bom físico e grande força de vontade e se encarregou da tarefa de descascar arroz para uma família abastada da vizinhança. Este duro trabalho era insuficiente para criar e educar seus filhos; mais tarde as crianças se abrigaram na casa de diferentes parentes.
Pouco depois de seu regresso a Dakshineswar, em abril de 1874, Sarada Devi fixou residência no Nahabat. Como o quarto era sumamente pequeno, Sambhu Mal-lick, um devoto chefe de família de Sri Ramakrishna e um de seus provedores, construiu para ela uma casa bastante espaçosa no jardim dos templos, onde viveu com uma servente. Ali cozinhava para o Mestre e logo levava a comida ao seu quarto.
No entanto a casa era úmida. Depois de viver nela durante um ano, Sarada Devi sofreu severo ataque de disenteria, de cujo tratamento se ocupou Sambhu. Quando se sentiu um pouco melhor, voltou a Jairambati, em setembro de 1875, mas perto de chegar, a enfermidade recrudesceu até o ponto em que se temeu por sua vida. Ao inteirar-se de seu estado, Sri Ramakrishna se sentiu muito preocupado e angustiado. Dizia a Hriday: “Que vai acontecer? Se ela veio ao mundo só para ir-se, quando cumprirá com o propósito de ter tomado um corpo humano?”.
Sarada Devi se tornou um esqueleto. Olhando seu reflexo nas águas do tanque, disse a si mesma: “Que espanto! Isto é o corpo! Para que mantê-lo com vida mais tempo; deixemo-lo aqui mesmo, agora!”. Recordando esta enfermidade, dizia mais tarde: “Meu corpo inchou completamente. O nariz, os olhos e os ouvidos gotejavam constantemente. Meu irmão me aconselhou que ficasse prostrada ante a imagem de Simhavahini, sem comer, nem beber, até que a Deusa me revelasse um remédio *. Sustentada por ele caminhei até o templo e me prostrei. Finalmente, em uma visão, me pediu que pusesse nos olhos quase cegos, em gotas, o suco das flores de certa abóbora misturada com sal e me assegurou que me curaria. Apliquei este remédio e quase imediatamente meus olhos recuperaram a vista. Gradualmente o corpo desinchou e me curei. Meu tio também tinha ficado estendido no templo com o mesmo propósito, mas umas enormes formigas o perseguiram de tal maneira, que teve que levantar-se. A Deusa apareceu a minha mãe, em sonho, e lhe disse: ‘Estou dormindo agora. Por que me incomoda? Ele é um brahmin, não conhece as regras? Vá imediatamente e traga-o de volta para casa’. Minha mãe me disse: ‘Bem, se a Deusa pôde dizer tudo isso, por que não se incomodou em dar o nome do remédio?’. Desde então o poder da Deusa foi reconhecido por pessoas do lugar e de outras partes e vinham em grande quantidade para visitá-la. Sarada Devi sempre tinha com ela um pouco de terra do piso desse templo e comia um ou dois grãos todos os dias.
* Costume que havia para recobrar-se de uma séria enfermidade.
Sarada Devi não tinha sorte com a saúde. Logo recuperada da disenteria, teve um ataque de malaria, agravado por uma inflamação no baço. O tratamento que se conhecia era estranho e muito doloroso. O paciente, depois de banhar-se, devia encostar-se sobre o piso de certo templo de Shiva, perto de Jairambati. Três ou quatro pessoas sustentavam fortemente seus membros contra o piso, para que não se movimentasse. Em seguida era traçado um círculo no abdômen, com uma tocha acesa. Isto queimava a pele e torturava o paciente. Sarada foi a este templo para curar-se de seu mal. Observou os pacientes suportar o cruel tratamento e ouvia seus gritos de dor. Quando chegou sua vez, não permitiu que ninguém a tocasse; encostou-se no piso e se submeteu ao tratamento. Silenciosamente, suportou a penosa dor e seu baço voltou à normalidade.
Nos encontramos com numerosos acontecimentos como este, na vida de Sarada Devi e Sri Ramakrishna. Nestes assuntos eles simplesmente seguiam o costume do lugar. Aceitavam, sem vacilo, os mitos, rituais e cerimônias religiosas seguidas pelos hindus. Por mais incompreensível que possa ser para uma mente racional, encontramos estas mesmas coisas em todas as tradições religiosas.
Encontrando-se, no entanto, em Jairambati, faleceu a mãe de Sri Ramakrishna. Chandra Devi tinha 85 anos. Ao receber a notícia, Sarada se preocupou com o Mestre e voltou a Dakshineswar em 17 de março de 1876, com duas companheiras e fixou residência na casa construída por Sambhu-Malik. Pouco depois Sri Ramakrishna foi atacado pela disenteria. Uma senhora mais velha de Benares começou a cuidar dele. Foi ante sua insistência que Sarada voltou a viver no Nahabat, com o fim de permanecer mais perto de seu esposo. Quando Sri Ramakrishna se restabeleceu, esta senhora se foi e nunca mais voltaram a vê-la. Sarada Devi dizia, mais tarde: “Gente desconhecida chegava a Dakshineswar cada vez que o Mestre necessitava deles e depois desapareciam”..
Foi esta senhora de Benares que persuadiu Sarada a descobrir seu rosto ante o Mestre. Ela sempre havia se mantido velada em sua presença. Uma noite a senhora levou Sarada ao quarto de Sri Ramakrishna e tirou o seu véu. O Mestre começou a falar de Deus, enquanto elas escutavam extasiadas. Ficaram tão absortas, que não notaram que estava amanhecendo.
Foi em fevereiro de 1877, ao regressar a Dakshineswar, que Sarada enfrentou um assaltante. Nessa ocasião demonstrou coragem, inteligência e autocontrole excepcionais. Ia a pé com várias companheiras, entre elas Lakshmi e Sivaram *. O caminho atravessa uma extensa zona muito solitária, freqüentada por assaltantes, que não só roubavam os viajantes, mas ocasionalmente os matavam. As pessoas não se atreviam a cruzar essas paragens a noite ou sozinhos. Sarada e suas companheiras chegaram a este lugar antes que o sol se pusesse e resolveram cruza-lo rapidamente, enquanto havia luz. Cansada e com seus pés descalços e doloridos, com muita dificuldade seguia a marcha de suas companheiras; era sua natureza não causar inconvenientes aos outros, para seu próprio benefício; portanto lhes pediu que se apressassem, já que temiam que chegasse a noite. As companheiras continuaram a marcha, pedindo-lhe que se apressasse também. Sarada caminhava com dificuldade, quando o sol se escondeu no horizonte e o crepúsculo tingiu o céu de vermelho.
* Filho de Rameswar,
irmão mais velho de Sri Ramakrishna. Se chamava Sibu.
Naturalmente ficou preocupada. Subitamente viu uma figura tosca, alta, com fartos cabelos eriçados, que se dirigiu para ela na obscuridade. Observando que portava sobre o ombro um grosso pau, Sarava Devi se deu conta de que espécie de pessoa era e ficou quieta. O homem quis amedronta-la dizendo, com vez severa: “Quem anda por aqui, sozinho, a estas horas da noite? Aonde vai?”. Timidamente ela lhe disse: “Vou para o Leste”. O homem lhe disse: “Vai por um mau caminho; deve ir para lá”. Sarada Devi permaneceu imóvel, enquanto o homem se aproximava mais e mais. Ao olhar seu rosto, algo estranho aconteceu com ele e disse, suavemente: “Não tenha medo. Minha mulher está comigo e logo chegará aqui”.
Sarada se tranqüilizou ao ver, a certa distância, uma mulher e disse ao homem: “Pai, minhas companheiras me deixaram para trás; talvez tenha errado o caminho. Seu genro * vive no templo de Kali, em Dakshineswar e eu vou para lá. Acompanhe-me, eu lhe rogo. Ele seguramente apreciará sua amabilidade e lhe mostrará a devida cortesia”. Tão logo como Sarada disse estas palavras, chegou a mulher: era a esposa do homem. Com confiança Sarada tomou sua mão e lhe disse: “Mãe, sou sua filha Sarada. Minhas companheiras me deixaram para trás e tenho muito medo. É por uma boa sorte que você e o pai chegaram, de outro modo não sei o que teria sido de mim”.
* Referindo-se a Sri Ramakrishna.
Estas simples palavras, ditas com toda sinceridade derreteram o coração do casal; imediatamente a consideraram como sua filha e lhe asseguraram que teria nada que temer. Observando seu cansaço, se detiveram em uma pequena pousada. O homem comprou algo para comer e a esposa improvisou uma cama com suas próprias roupas. Com todo afeto, a colocaram para dormir, enquanto o salteador de caminhos se fez de guardião à porta, durante toda a noite, com o pedaço de pau ao seu lado. Pela manhã bem cedo, seguiram viagem para Tarakeswar, onde Sarada tinha planejado passar a noite com suas companheiras. Ao chegar ao lugar, buscaram albergue em uma pousada. Pouco depois suas companheiras a encontraram e sentiram grande alívio ao vê-la sã e salva. Todo o grupo comeu alegremente. Quando chegou o momento de separar-se, Sarada e seus novos pais começaram a chorar. Sarada, ao chegar a Dakshineswar, contou ao Mestre sua experiência da noite anterior.
O assaltante e sua mulher visitaram Sri Ramakrishna várias vezes, levando-lhe alguns presentes; ele, por sua vez, os tratou afetuosamente, como se fossem parentes. Sarada, mais adiante, disse a seus devotos: “Embora meu pai adotivo tivesse sido honesto e bom, mesmo assim creio que deve ter sido antes um bandoleiro”.
Podemos somente conjeturar por que Sarada causou tão profunda impressão na mente deste homem. Seria por que ele e sua mulher tiveram um vislumbre de sua real natureza? Uma vez ela lhes perguntou: “Por que foram tão carinhosos comigo?”. Eles lhe responderam: “Porque você não é um ser comum. A vimos com a Mãe Kali”. “O que é que viram?” – ela lhes perguntou. Eles, firmemente responderam: “Não, filha, realmente a vimos como Kali. Você esconde essa forma de nós porque somos pecadores”. “Mas eu realmente não sei de nada” – disse Sarada Devi indiferente. Muitos anos depois, um discípulo lhe perguntou: “O aue o ladrão viu em você?”.
Mãe: Ele disse que viu Kali.
Discípulo: Então você apareceu diante deles como a Mãe Kali. Por favor, não esconda nada de nós; nos diga francamente o que aconteceu!
Mãe: Por que ia mostrar a eles a forma de Kali? Foi ele que disse que tinha visto essa forma.
Durante a visita de Sarada Devi a Jairambati, em princípios de 1877, Shyamasundari recebeu, em sonho, o mandato da Deusa Jagadhatri * - uma manifestação da Divina Mãe do Universo – para introduzir Sua adoração na família. Desde então este culto se efetuava todos os anos e Sarada Devi prestava toda a ajuda que podia para a realização do culto.
* Literalmente: Sustenta o Universo.
Quando Sarada Devi foi de Jairambati a Dakshineswar, em março de 1881, permaneceu somente um dia. Estava acompanhada por sua mãe, Lakshmi e vários vizinhos. Ao chegar, Hriday, por alguma razão que desconhecemos, as tratou muito grosseiramente. Sri Ramakrishna, temeroso de desgosta-lo, ficou em silêncio. Shyamasundari disse: “Com quem deixo minha filha aqui? Voltaremos para casa”. Sarada Devi, ao voltar disse, dirigindo-se à Mãe Kali: “Mãe, somente se a Senhora me trouxer, voltarei aqui”.
Hriday costumava tratar Sarada Devi com muita descortesia. Uma vez Sri Ramakrishna o advertiu, dizendo-lhe: “Escute-me bem: você pode me insultar, mas não fira jamais seus sentimentos. Se Aquele que mora neste (seu próprio corpo) sisea, pode ser que haja ajuste, mas se o faz Aquele que mora nela (Sarada Devi), ninguém, sem sequer Brahma, Vishnu ou Shiva poderão protegê-lo”. Pouco tempo depois Hriday perdeu seu posto no templo de Kali, por causa de um ato de indiscrição e foi proibido terminantemente de entrar no recinto dos templos.
Ramlal, filho de Rameswar, ocupou o cargo de sacerdote de Kali. Cheio de orgulho, começou a descuidar de Ramakrishna, que certamente permanecia inconsciente por causa de seus profundos estados espirituais. A comida do Mestre se esfriava no prato e ninguém cuidava dele. Repetidamente fazia chegar suas mensagens a Sarada Devi, pedindo-lhe que viesse a Dakshineswar. “Me encontro em grande dificuldades aqui” – mandou dizer. “Ramlal não me dá nenhuma atenção. Lhe rogo que venha por qualquer meio; seja qual seja o custo, o pagaremos aqui”. Ela voltou a Dakshineswar em princípios de 1882.
No ano seguinte fez sua sétima visita a Kamarpukur e Jairambati, regressando a Dakshineswar sete ou oito meses mais tarde. Algum tempo antes, em estado de samadhi, o Mestre tinha caído e deslocado um osso do braço esquerdo. Sri Ramakrishna lhe perguntou quando tinha saído de sua casa e assim supôs que tinha sido uma hora não auspiciosa, segundo a tradição bengali. Respeitoso das tradições lhe disse: “É por isso que machuquei o braço. Volte à sua casa em seguida e comece novamente a viagem em uma hora auspiciosa”. Sarada estava decidida a partir imediatamente, mas ele lhe pediu que passasse a noite ali. No dia seguinte Sarada foi para Jairambati, voltando em poucos dias a Dakshineswar.
Em 1884 foi a Kamarpukur para assistir à cerimônia do casamento de Ramlal, o sobrinho de Sri Ramakrishna; em tal ocasião foi também a Jairambati, voltando a Dakshineswar em março de 1885. Esta foi sua última visita a Kamarpukur e Jairambati, durante a vida de Sri Ramakrishna.
Também o Mestre foi várias vezes a Kamarpukur durante este período de sua vida, sendo a última em 1880. O clima úmido de Dakshineswar, durante a estação das chuvas, influía negativamente em sua saúde e para uma mudança de ares, visitava sua aldeia nativa quase todos os anos. Também ia a Jairambati e Sihore, lugar de nascimento de Hriday. Onde fosse, alternava livremente com os aldeões e freqüentemente os entretinha com seus cantos e sua conversa. Sem dúvida as pessoas de Jairambati sempre o ridicularizavam, chamando-lhe de “o genro louco”. De vez em quando ele, de repente, saltava de seu assento e exclamava: “Desta vez todos serão liberados, incluindo os muçulmanos e os intocáveis! Ninguém será esquecido”. Ao ouvi-lo, as pessoas diziam: “Que louco!”. Quando as mulheres iam vê-lo, ele começava a contar histórias de color subido que as fazia rir e, ao mesmo tempo, fugiam envergonhadas. Sri Ramakrishna, então, dizia aos que tinham ficado: “Conseguimos afastar o joio;agora sentem-se e eu falarei”.
Já mencionamos a tia Bhanu, vizinha de Sarada Devi, que havia tido certo vislumbre espiritual de Sri Ramakrishna e tinha muito carinho por ele. Esta senhora, em uma ocasião, disse ao autor que uma vez ela tinha feito uma guirlanda com a intenção de coloca-la no colo de Sri Ramakrishna. Escondendo-a sob o sari, foi vê-lo, mas sentiu vergonha de oferecê-la na presença de outras mulheres. O Mestre, de alguma maneira, soube de sua intenção e contou algo engraçado que fez as mulheres rirem e deixarem o quarto imediatamente. Quando Bhanu ficou só com ele, ele lhe pediu que lhe oferecesse a guirlanda. Tão logo ela lhe colocou no colo, o Mestre entrou em profundo samadhi. Ignorando o que este estado significava, ficou com medo, pensando que talvez tivesse sido picado por um inseto escondido entre as flores. Nesse momento chegou Hriday e fez o Mestre voltar ao estado mental normal, com a ajuda de certas palavras místicas. Depois deste incidente, Shyamasundari manteve as mulheres longe do Mestre.
Shyamasundari, no mais profundo de seu coração, sentia tremenda angústia por sua filha. Freqüentemente dizia: “Casei minha filha com semelhante louco! Ela não conhecerá a felicidade da vida familiar. Não terá a felicidade de que a chamem ‘mãe’”. Sri Ramakrishna, uma vez, a olhou e disse: “Mãe, não se preocupe com isso, eu lhe peço. Sua filha terá tantos filhos, que seus ouvidos queimarão de tanto ouvir chamarem-na de ‘Mãe’ constantemente”.
Veremos, mais adiante, como se cumpriu literalmente esta profecia do Mestre.
A MARCHA DOS ACONTECIMENTOS
DURANTE OS DEZ ANOS que Sarada Devi passou em Dakshineswar, viveu a maior parte do tempo no Nahabat, uma estrutura de ladrilho de dois pisos, a uns 25 metros ao norte do quarto do Mestre. Situada sobre as margens do Ganges, dali se divisava uma formosa perspectiva do rio sagrado e do espaçoso jardim dos templos.
No piso superior, a mãe do Mestre viveu até sua morte. O quarto de Sarada, no andar térreo, a uns 2 metros sobre o nível do chão, era octogonal; a medida interior de cada uma das paredes era de algo mais de 0,90 m e a distância máxima entre as paredes, através do piso, de uns 2,40 m. A altura do piso ao teto era de 2,70 m e o espaço livre era de uns 17 m quadrados. Ao redor de todo o quarto havia uma estreita varanda de 1,20 m de largura, com uma só abertura que conduzia ao quarto. Havia duas aberturas, mas não tinha janelas. A porta, de 1,20m X 0,60 m era tão baixa, que Sarada Devi muitas vezes se bateu e até feriu a cabeça, até que aprendeu a inclinar-se para passar. Com o fim de salvaguardar sua intimidade, tinham plantado pés de bambu ao longo da varanda, o que impedia a passagem do sol e do ar fresco. No outro lado da varanda estava a escada que conduzia ao piso superior e sob esta escada, ela tinha sua cozinha.
Neste pequeno quarto desprovido de ventilação, Sarada Devi guardava seus pertences; ali também rezava, meditava e dormia. Duas ou três devotas do Mestre costumavam passar a noite com ela em seu quarto. No teto estava pendurada uma vasilha contendo peixes vivos destinados a alimentação do Mestre. Estes peixes espirravam água toda a noite.
Sarada Devi freqüentemente se referia ao tempo que passou no Nahabat como o mais feliz de sua vida. Só de recorda-lo se inundava de felicidade. “Que feliz eu era, então!” – repetia de vez em quando. Certamente, quão poucas pessoas poderiam ter suportado uma vida tão precária! A sagrada atmosfera do Ganges e os templos; o serviço aos devotos; a atenção ao seu esposo e suas próprias práticas e experiências espirituais, elevavam sua mente por sobre as dificuldades materiais. Seus dias transcorriam em uma incessante atividade, alternada com a serenidade e o silêncio da oração.
O dia de Sarada Devi começava entre as 3 e as 4 da madrugada, antes que os demais tivessem despertado. Antes de tudo se banhava no Ganges; suas companheiras era pescadoras que tomavam seu banho a essa hora, deixando suas canastras nos degraus do Nahabat. Sarada Devi conversava com elas. Depois do banho se apressava para voltar ao seu quarto, para evitar ser vista pelos outros. À noite os pescadores cantavam, enquanto pescavam e ela os escutava. Logo passava uma hora e meia em oração e meditação. Depois começava a cozinhar, o que era algo simples. Depois massageava com azeite o corpo de Sri Ramakrishna, antes que tomasse seu banho.
Isto, certamente, não acontecia todos os dias, especialmente se os discípulos estavam presentes. Em seguida levava a comida a seu quarto e enquanto ele comia, o entretinha com uma conversa casual, para evitar que entrasse em samadhi, o que freqüentemente acontecia sem que fosse possível prever. Ela era a única capaz de fazê-lo comer sem essas mudanças espirituais. Depois ela ia ao seu quarto comer alguma coisa.
Em seguida preparava rolos de folhas de betel para o Mestre e os devotos. Enquanto fazia isso cantava, mas com uma voz tão suave, que as pessoas de fora não a ouviam. Tinha a voz musical e o Mestre a animava para que cantasse.
Às treze horas, uma fábrica da vizinhança soava uma sirena. A mãe de Sri Ramakrishna a chamava de “a flauta de Krishna”. Era a hora em que Sarada se sentava para almoçar. Depois descansava um pouco. Já era três da tarde. Então regulava as lâmpadas para a noite, queimava incenso em seu altar e meditava. Depois vinha a fora de preparar a ceia. Depois de dar de comer a Sri Ramakrishna e sua mãe, ela ceava e se retirava para dormir, ao redor das onze da noite.
Sua maior dificuldade provinha da carência de um banheiro. Ela utilizava os pastizales às margens do Ganges para tal propósito. Era um verdadeiro problema durante o dia, quando havia pessoas por todo lado. Se ela sentia o chamado da natureza, tinha que se controlar até a noite e rogar ao Senhor que a livrasse destas dificuldades. Por conseqüência, com o passar do tempo, sofreu de transtornos intestinais.
A cozinha consumia grande parte do tempo e energia de Sarada Devi. De vez em quando uma servente a ajudava. No princípio de sua vida em Dakshineswar, cozinhava para o Mestre, sua mãe e ocasionalmente para alguns parentes ou convidados. Mas a partir de 1880, o número dos devotos de Sri Ramakrishna aumentou consideravelmente e muito freqüentemente tinha que cozinhar para eles. Para satisfazer o gosto particular dos diferentes devotos, tinha que preparar pratos especiais. Durante um aniversário do Mestre, teve que cozinhar para umas 50 ou 60 pessoas. Freqüentemente fazia chapatis – um pão hindu – com 4 ou 5 quilos de farinha. Gopal, o mais velho *, fazia as compras e depois Lati ** amassava a farinha e lavava a cozinha. Suresh, um devoto chefe de família e discípulo do Mestre, dava dez rúpias para os gastos da comida dos devotos. O tremendo peso de manejar o lar recaiu completamente sobre Sarada Devi, que suportou toda a responsabilidade sem uma queixa.
* Depois da morte do Mestre, Gopal renunciou ao mundo e recebeu o nome de Advaitananda.
** Quando se tornou monge, recebeu o nome de Adbhutananda. Estava entre os primeiros discípulos de Sri Ramakrishna que abraçou a vida monástica.
Mas o mais agradável e responsável de seus deveres era cozinhar para Sri Ramakrishna para quem, por causa de seu estômago delicado, tinha que preparar uma alimentação especial. Somente à vista de muito arroz no prato, ficava nervoso e até o desprezava, por medo de ter indigestão. Sarada Devi, portanto, recorria a um plano: pressionava o arroz até formar um pequeno monte. Da mesma forma fervia o leite um bom tempo, para que ao consumir-se, parecesse ter uma menor quantidade. Uma vez o Mestre, suspeitando disso, perguntou a Golap-Ma qual era a medida real do leite e ela lhe disse a verdade. Por conseqüência, nesse dia o Mestre teve indigestão. Golap-Ma ficou aflita e disse a Sarada Devi: “Você deveria ter-me confiado o segredo. Como podia saber? Arruinei seu almoço!”. Ela lhe respondeu: “Não há nenhum mal em mentir-lhe a respeito a sua comida. Assim é como as preparo para que se alimente”. E foi realmente assim que Sri Ramakrishna melhorou de saúde e se curou quase completamente de seu mal-estar estomacal e até aumentou de peso.
Muitos anos mais tarde, Mrs. Ole Bull, uma discípula americana, lhe perguntou qual tinha sido sua atitude para Sri Ramakrishna. Ela respondeu: “Em assuntos espirituais, absoluta obediência; em outras coisas seguia meu próprio sentido comum”.
Será interessante descrever brevemente algumas discípulas de Sri Ramakrishna que freqüentavam Dakshineswar e que passaram grande parte do tempo com Sarada Devi. Duas delas viveram permanentemente com ela.
Yoguindra Mohini Devi, conhecida como Yoguin-Ma, era de aparência régia e de porte digno. Provinha de uma aristocrática família de Calcutá. Casada em uma idade muito precoce com um jovem de boa aparência e de família abastada, dilapidou sua fortuna em pouco tempo. A vida matrimonial de Yoguin-Ma foi trágica. Seu primeiro filho morreu aos seis meses. Com o passar dos anos, casou sua filha que, pouco depois, abandonou o lar e foi viver com sua mãe. O romântico quadro de uma família feliz e próspera havia se despedaçado e Yoguin-Ma, sentindo-se desolada, voltou sua mente para a religião.
Foi nesse tempo que visitou Sri Ramakrishna, em Dakshineswar e viu o Mestre gingando como um bêbado por causa do êxtase. A amarga lembrança de seu marido ébrio a fez estremecer. No entanto logo compreendeu a verdadeira natureza da emoção espiritual do Mestre.
Quando o
Mestre se inteirou de que ela tinha jejuado, a enviou
ao Nahabat, onde Sarada Devi, com grande ternura, lhe deu de comer. Logo nasceu
entre ambas uma relação muito íntima e Sarada Devi costumava referir-se a sua
nova companheira como “minha Yaia”. *
* Uma das assistentes da Divina Mãe Durga. A outra é Viyaia.
Falando de Sarada Devi, Yoguin-Ma dizia: “Cada vez que ia vê-la, me confiava todos os seus segredos e freqüentemente seguia meus conselhos. Cada separação dela me causava tremenda dor. Uma vez, pouco depois de tê-la conhecido, a Mãe se dirigiu ao Ganges para tomar o barco e iniciar sua viagem a Kamarpukur. A vi partir com lágrimas nos olhos e à medida que o barco se afastava de minha vista, mais amargamente eu chorava. O Mestre me consolou contando-me algumas de suas experiências espirituais. Quando depois de um ano e meio ela voltou, ele lhe disse: ‘Essa moça de grandes e formosos olhos a quer profundamente; estava desconsolada quando você se foi’. A Mãe disse: ‘Sim, a conheço muito bem; seu nome é Yoguin’”.
Golap Sundari Devi, a quem depois os devotos do mestre chamaram Golap-Ma, tinha nascido em uma família brahmin ortodoxa; no entanto ela tinha idéias liberais. Sua vida matrimonial não foi feliz. Seu esposo morreu jovem, deixando-lhe um filho e uma filha. Em pouco tempo morreu o filho e anos depois, a filha. Agoniada com tanta desgraça, Golap-Ma voltou sua atenção para a vida interior. Nesse momento conheceu Yoguin-Ma, que vivia na vizinhança e ela a levou para Sri Ramakrishna. Golap-Ma desafogou toda a sua angústia ao Mestre, chorando amargamente. Chamando Sarada Devi, lhe disse: “Dê-lhe de comer em abundância, até encher seu estômago; isso aliviará seu pesar”. Logo lhe falou da transitoriedade da felicidade do mundo e lhe aconselhou a amar somente a Deus. Um dia disse a Sarada Devi: “Não perca de vista esta senhora brahmin; viverá sempre com você”. Sarada Devi disse dela: “A mente de Golap é muito pura; não conhece a ira, o orgulho, nem a vaidade”.
Lakshmimani, carinhosamente chamada de Lakshmi-Didi pelos devotos do Mestre, foi já mencionada várias vezes aqui; era sobrinha de Sri Ramakrishna, filha de Rameswar. De uma inteligência excepcional e possuidora de uma prodigiosa memória, era reservada e introspectiva desde sua infância e somente falava com seus parentes mais chegados. Embora sua educação formal não fosse muito longe, lia em Bengali o Ramaiana, o Mahabharata e outros livros da mitologia hindu. Casou-se aos 12 anos, mas Sri Ramakrishna profetizou sua precoce viuvez. Um dia, pouco depois do casamento, seu esposo saiu em busca de trabalho e nunca mais tornaram a se ver. Depois de doze anos, de acordo com a tradição hindu, Lakshmi se considerou viúva. Chegou a Dakshineswar aos 14 anos e vivia com Sarada Devi no diminuto quarto do Nahabat. Lakshmi recebeu iniciação de Sri Ramakrishna. Mais adiante desenvolveu certa natureza masculina com a qual o Mestre não interferiu. Sarada Devi disse, uma vez: “Lakshmi cantava e dançava diante do Mestre, imitando as cantoras profissionais. Então ele me disse: ‘Essa é sua natureza, mas você não deve imita-la e perder, assim, sua modéstia’”.
Gauri-Ma tinha 25 anos quando visitou Sri Ramakrishna pela primeira vez. Nascida em 1857, perto de Calcutá, evidenciou um forte desejo pela vida espiritual ainda sendo muito jovem. Ingressou em uma escola missionária cristã, porém se desgostou ante a atitude anti-hindu das autoridades. Nesse tempo aprendeu, de memória, muitos hinos em sânscrito e chegou a aprender bem; tinha, além do mais, noções de inglês e persa. Aos 10 anos Gauri-Ma foi iniciada na vida espiritual por um brahmin e aceitou como seu ideal espiritual Sri Krishna, a quem adorava em um emblema de pedra chamado Damovar. Este emblema a acompanhou por toda sua vida, como objeto de adoração. Sua mãe viúva, alarmada pelo seu desinteresse pelo mundo, arranjou seu casamento. Quando Gauri-Ma soube, disse: “Só me casarei com aquele que é imortal”, evidentemente se referindo a Sri Krishna.
Na véspera de seu casamento, fugiu de casa. Abrasada pela sua paixão de realizar Deus, abandonou o lar aos 18 anos e viajou a diferentes lugares sagrados em companhia de religiosos mendicantes. Suas únicas posses eram uns poucos livros sagrados e a pedra-emblema de Krishna, que levava pendurada no pescoço, em uma pequena bolsa. Quando depois de 7anos chegou a Sri Ramakrishna, ele imediatamente a aceitou como discípula. Na segunda visita, a apresentou a Sarada Devi e desde então costumava viver com ela no Nahabat. Visitava freqüentemente Sri Ramakrishna, a quem considerava seu pai e mãe. Preparava delicados pratos para o Mestre e o alimentava com grande devoção. Sempre cantava com sua voz melodiosa; ao ouvi-la, Sri Ramakrishna entrava em samadhi.
Um dia Sri Ramakrishna a viu juntando flores e lhe disse: “Bem, Gauri, eu estou vertendo água sobre a terra; você amassa a argila”. Explicando estas enigmáticas palavras, lhe disse que trabalhava para o bem-estar das mulheres da Índia, que se encontravam em muito triste situação. Quando ela lhe disse que gostaria de treinar algumas moças na solidão dos Himalaias, ele lhe respondeu: “Não, não! Você deve trabalhar nesta cidade. Já teve bastante de prática espiritual; agora dedique sua vida ao serviço das mulheres. Elas estão sofrendo terrivelmente”. Mais adiante Gauri-Ma cumpriu com este desejo do Mestre.
Apesar de ser sua discípula, Gauri-Ma, freqüentemente manifestava mais amor para Sarada Devi. Um dia, em tom de brincadeira, o Mestre lhe perguntou, na presença e Sarada Devi, a quem dos dois ela queria mais. Ela se desfez da situação respondendo-lhe com este canto: “Oh! Krishna! Você que toca a flauta, seguramente não é maior que Raddha; aqueles que estão aflitos rogam a você, mas quando o aflito é você, é a Raddha que chama com Sua flauta”.
Naturalmente Sarada Devi se sentiu confusa, enquanto que o Mestre ria. Gauri-Ma freqüentemente experimentava elevados estados espirituais, estando em Dakshineswar.
Outra senhora que costumava visitar Sri Ramakrishna era Aghormani, que mais tarde foi conhecida como Gopaler-Ma (Mãe de Gopala), por causa de sua íntima relação com o Menino Krishna (Gopala). Nascida em 1822, Gopaler-Ma foi cedida em matrimônio aos 9 anos, mas ficou viúva imediatamente depois. Mas sendo jovem, fixou sua residência em um templo perto de Calcutá, onde lhe deram um pequeno quarto para suas práticas espirituais. Nas palavras de Sister Nivedita: “Seu quarto carecia por completo de qualquer conforto. Sua cama era de pedra, como o piso e o pedaço de esteira que oferecia para sentar-se os que chegavam para vê-la, tinha que ser tirada de uma estante e estendida. O punhado de arroz tostado e açúcar cande, que constituía sua única provisão e que era tudo o que podia oferecer, tinha que ser tirado de um pote que pendia do teto, sustentado por uma corda. Mesmo assim, o lugar era limpo e reluzente, lavado com água do Ganges, que ela mesma transportava. Em uma hornacina a seu alcance guardava um velho exemplar do Ramaiana e seus grandes óculos, junto a uma pequena bolsa contendo seu rosário. Com somente isto, Gopaler-Ma se converteu em uma santa. Hora após hora, dia após dia, durante quantos anos permaneceu sentada, dia e noite, absorta em meditação!”.
Gopaler-Ma experimentou muitos estados exaltados espirituais e freqüentemente via a manifestação de Gopala, seu Ideal espiritual, em Sri Ramakrishna. Estando em Dakshineswar, quase sempre almoçava e ceava com Sarada Devi, a quem considerava e amava como sua nora.
Estas mulheres devotas estavam ligadas pelos laços de um amor indissolúvel. Era suas amigas e companheiras e quando estava em Dakshineswar, a ajudavam a cozinhar e a fazer outros trabalhos do lar. Esta relação continuou através de toda a vida.
Voltaremos, agora, à vida de Sarada Devi em Dakshineswar. Latu, o jovem discípulo do Mestre, amassava a farinha para fazer o pão, lavava a cozinha e cumpria as ordens. Um dia Sarada Devi tinha amassado uma grande quantidade de farinha, enquanto Latu meditava nas margens do Ganges. O Mestre coincidentemente passou por ali e lhe disse: “Olhe Latu. Aquela em quem você medita está aqui agora, trabalhando na farinha *”. O Mestre levou Latu até o Nahabat e disse a Sarada Devi: “Este rapaz é uma alma pura. Cada vez que necessitar de ajuda, lhe rogo que peça a ele”. Latu se converteu em um membro chefe de família de Sarada Devi.
* Evidentemente Sri Ramakrishna estava se referindo a Sarada Devi, a quem considerava idêntica à Divina Mãe Kali. Latu estava meditando em Kali.
Sri Ramakrishna dependia completamente de Sarada Devi quanto a sua alimentação. Segundo um costume social entre os hindus ortodoxos, uma mulher hindu é considerada impura durante três dias, durante seu período menstrual e não lhe é permitido cozinhar, nem realizar outras tarefas de casa. Quando Sarada, por esse motivo, não cozinhava para o Mestre, ele comia a comida da cozinha do tempo de Kali. Invariavelmente esse alimento lhe causava mal. Um dia em que se sentia mal do estômago, perguntou a Sarada Devi por que razão ela não preparava seu alimento. Quando ela explicou, ele disse: “Quem lhe disse que uma mulher não pode cozinhar durante esses três dias? Você deve fazê-lo para mim como sempre; não há nada de mal nisso. Diga-me, que é impuro em uma pessoa: a pele, a carne, os ossos, a medula? É a mente o que faz que alguém seja puro ou impuro. Fora da mente não existe tal impureza”.
Assim como a toda mulher é ensinado que deve considerar seu esposo quase como um Deus e servi-lo de corpo e alma, Sarada Devi considerava Sri Ramakrishna como “Deus eterno e absoluto”, utilizando suas próprias palavras. Sentia que servi-lo era adorar a Deus. Esta atitude lhe permitiu enfrentar alegremente suas tarefas diárias. Mais tarde disse: “Quando pensava que o estava servindo, não sentia o menor incômodo físico; os dias passavam em uma ininterrupta felicidade”. Mas freqüentemente, quando não tinha o privilégio de estar perto dele, ou de servir sua comidas, essa felicidade diminuía. Isto acontecia especialmente quando o número de seus discípulos aumentou e eles mesmos o atendiam. Sarada Devi era muito tímida para se apresentar diante deles e tampouco e Sri Ramakrishna aprovava. “Às vezes – disse uma vez – passava dois meses sem pode vê-lo. Naturalmente me sentia triste e dizia a mim mesma: ‘Oh mente! Pensa que há de ser tão afortunada para vê-lo todos os dias?’. Permanecia de pé durante horas atrás de um pequeno orifício no enredado do alpendre de meu quarto, escutando-o cantar. Esta foi a causa de meu reumatismo, pois permanecia horas inteiras de pé”. Sarada Devi observava o Mestre e os devotos cantarem, dia e noite, em seu aposento; freqüentemente pensava: “Oh” Se não fosse um desses devotos!”. Com respeito ao seu retraimento, o administrador do templo-jardim disse, uma vez: “Sim; ouvimos que ali vive, mas nunca a vimos”.
Sri Ramakrishna e Sarada Devi costumavam passar longo tempo sem se ver, apesar de viver a uma distância de 25 metros um do outro. Apesar de estar quase constantemente em elevados planos de consciência e esquecer seu corpo e o mundo, mesmo assim o Mestre não era indiferente em relação a ela. Pelo contrário, estava sempre atento a seu estado de saúde e bem-estar físico. Um dia, ao saber que tinha dor de cabeça, perguntava a Ramlal uma ou outra vez: “Diga-me, por que lhe dói a cabeça?”.
Sri Ramakrishna chamava o quarto de Sarada Devi, com seu enredado de bambu, de “a jaula”. Freqüentemente Lakshmi compartilhava o quarto com ela. O Mestre, brincando, as chamava de “o par de periquitos”. Quando levavam a seu quarto o prasad do templo de Kali, dizia a Ramlal: “Leve um pouco de arroz e fruta aos pássaros que estão na gaiola”. Alguns discípulos íntimos, não tendo visto a Mãe, levavam esta brincadeira ao pé da letra.
Sarada Devi era profundamente consciente da renúncia de Sri Ramakrishna, tanto em espírito como na prática. Tinha sido testemunha de muitos exemplos e sabia muito bem até que ponto seu sistema nervoso se contraía ante as idéias de acumular alguma coisa.
Durante vários anos Sri Ramakrishna compareceu ao festival religioso de Panihati, a poucas milhas ao norte de Dakshineswar, do qual participavam milhares de pessoas. Em 1885 estava disposta a ir, acompanhado de alguns devotos e devotas. Sarada Devi pediu a uma devota que perguntasse ao Mestre se ela também poderia ir. O Mestre respondeu: “Se ela quiser pode ir”. Sarada pensou, por um momento, em suas palavras e disse que não iria, pois haveria muitas pessoas.
Ao regressar o Mestre comentou: “Que quantidade de pessoas! À raiz de meus estados espirituais, me tornei no centro de atração. Foi muito prudente da parte dela não me acompanhar. Se as pessoas nos tivessem visto juntos, nos teriam ridicularizado e feito brincadeiras, dizendo: ‘lá vai o hamsa e a hamsi *. Ela é muito inteligente’”.
* Hamsa significa
“cisne” e também Deus ou Grande Alma. Hamsi é a fêmea
do cisne.
Quando alguém repetiu isso à Sarada Devi, ela observou: “Me dei conta de sua reserva ao dar-me permissão. Em lugar de dizer ‘sim, que venha’, simplesmente disse: ‘pode ir, se ela quiser’. Deixou a decisão a meu encargo. Portanto renunciei à idéia de ir”.
Se bem que Sarada Devi obedecia Sri Ramakrishna de forma absoluta e na maioria dos casos, em certos assuntos ela exercia seus próprios juízos. Havia certa mulher que a visitava de vez em quando. Esta mulher, em sua juventude, não tinha levado uma vida moral, mas nos últimos anos tinha se dedicado à vida espiritual. Um dia o Mestre disse a Sarada Devi: “Por que lhe permite entrar no seu quarto?”. E se referiu ao passado da mulher, ao que Sarada respondeu: “Isso pode ser, mas agora ela fala somente de Deus e de coisas espirituais”. “Mas”, insistiu o Mestre, “Diga o que disser agora, ela foi uma prostituta”. Sarada Devi permaneceu insensível. Ela não podia desprezar uma pessoa que se mostrava arrependida e buscava a graça. Como veremos mais adiante, ela nunca se desviou de tal atitude.
A liberalidade e compaixão de Sarada Devi eram o resultado do despertar da maternidade nela. Sentia que era a mãe de todos os que chegavam a Sri Ramakrishna e agia de acordo. Neste aspecto particular de sua vida, não permitia interferências de ninguém. Não podia desprezar ninguém que se dirigisse a ela como “Mãe”. Para dar um exemplo, um dia, quando levava o almoço ao quarto de Sri Ramakrishna, se aproximou uma mulher e lhe disse: “Mãe, eu rogo, deixe-me levar a bandeja!“. Ela permitiu e a mulher levou a comida ao quarto do Mestre, a colocou diante dele e saiu. Sarada Devi se sentou perto do Mestre enquanto ele comia. Mas ele não pode sequer provar a comida. “Que fez? Por que permitiu que ela tocasse na bandeja? Não sabe que leva uma vida imoral? Como posso comer o que ela tocou?”. Sarada Devi disse: “Sei disso, mas por favor, coma”. Mas mesmo assim o Mestre não podia tocar no prato. Ante a insistência de Sarada Devi lhe disse: “Prometa-me que não permitirá que essa mulher volte a trazer minha comida”. Ela firmemente lhe respondeu, juntando as mãos: “Mestre, não posso prometer-lhe, embora faça tudo para trazê-la eu mesma. Se alguém se dirige a mim como ‘mãe’ e deseja trazer a bandeja, não posso recusar. Não deve esquecer que você não somente é meu Senhor, mas o Senhor de todos”.
Sri ramakrishna ficou satisfeito e comeu tudo.
VI
PRÁTICAS ESPIRITUAIS
A TERNA PLANTA da vida espiritual de Sarada Devi, que mais tarde se transformou em uma poderosa árvore, doadora de refúgio a muitos buscadores de Deus, se desenvolvia silenciosamente na sagrada atmosfera de Dakshineswar. Próximo a este muito significativo período de sua vida, Sarada Devi não deu maiores detalhes a seus devotos, dos quais nos ocuparemos neste capítulo.
Sri Ramakrishna começou a treinar Sarada Devi na prática das disciplinas espirituais. Para ela, ele era o mestre, pai, mãe, companheiro, esposo e Deus mesmo. Ele se revelou a ela de duas maneiras; como a demonstração dos princípios eternos de todas as religiões e também como sua Ishta-devata, seu Ideal Escolhido, ou o Deus Pessoal. Deus, sem dúvida, penetra toda a criação como Sat-chit-ananda, Existência-Consciência-Felicidade. Mas Ele se manifesta mais através dos seres animados do que na natureza inanimada. Entre os seres animados, Ele se manifesta mais através do homem, do que por meio de seres sub-humanos, mais ainda através dos santos, do que das pessoas mundanas comuns. Mas Ele se manifesta, na mais elevada medida, através de um homem-Deus que, apesar de viver no mundo, está completamente desapegado dele, está constantemente absorto na consciência de Deus e quem, para citar as palavras de Sri Ramakrishna, “canta, dança e se esquece de si mesmo, em divino êxtase”.
Sarada Devi observava, com seus próprios olhos, todos os sinais de divindade em Sri Ramakrishna. Foi testemunha de sua total conquista da luxúria e da cobiça. Cada mulher, para ele, era uma manifestação da Divina Mãe. Jamais pensou em qualquer outro sentido, nem sequer em sonhos. O dinheiro e as posses terrenas nunca o tentaram o mínimo sequer. Se chegasse a tocar uma moeda, sentia como se seu corpo tivesse sido “picado por um escorpião”, como ele dizia. Sarada Devi disse que a completa renúncia era sua especial mensagem para esta época. Sarada Devi observava seus freqüentes samadhis, nos quais ficava totalmente absorto em Deus. Ela se encantava em escutar suas canções e música devocional. Quando Sri Ramakrishna cantava e dançava com os devotos em estado de êxtase, em seu quarto, pedia a Ramlal que mantivesse aberta a porta de seu quarto que dava ao Nahabat, dizendo: “Neste quarto haverá uma intensa manifestação de sentimento e amor por Deus; ela deve presencia-lo, de outra maneira, como vai aprender?”.
Sarada Devi e Lakshmi tinham sido iniciadas por um monge, enquanto viviam em Kamarpukur. O Mestre lhes deu nova iniciação em Dakshineswar. Sarada Devi, apesar de seus muitos deveres do lar, passava muito tempo na repetição do sagrado mantra. Dizia que costumava repeti-lo diariamente cem mil vezes*. Lembrando um incidente daquele tempo, Sarada Devi disse: “Em Dakshineswar me levantava às 3 da manhã e me sentava para meditar. Freqüentemente esquecia completamente meu corpo e o mundo. Se uma pessoa é firme e constante na meditação, vê claramente o Senhor em seu coração e escuta Sua voz. No mesmo momento que uma idéia surge em sua mente, se cumprirá e se sentirá submerso na paz. Oh! Que estado mental tinha naqueles dias!”.
* A raiz de sua rigorosa disciplina se formou com o hábito de repetir o
mantra mentalmente, enquanto realizava qualquer espécie de trabalho.
Sarada Devi experimentava enorme felicidade em Dakshineswar; não esqueçamos que viva com alguém que era a personificação da Felicidade. Referindo-se ao estado de felicidade de Sri Ramakrishna, disse: “O Mestre era único! A quantas mentes iluminou! Que incessante era a felicidade que irradiava! Dia e noite seu quarto reverberava com risadas, histórias, conversas e música. O Mestre cantava e eu escutava horas e horas de pé, detrás do enredado do Nahabat. Quando o canto e a música terminavam, eu o saudava juntando minhas mãos. Por quantos prazerosos dias passamos! As pessoas fluíam de dia e de noite e não havia fim para os temas espirituais. Jamais o vi triste. Divertia-se com todos, fosse um menino ou um ancião”.
Sri Ramakrishna vigiava muito de perto as práticas espirituais de Sarada Devi e observava se ela meditava regularmente. Às três horas da madrugada chegava à porta do Nahabat e dizia a Lakshmi: “Levante e acorde a sua tia. Até quando vão dormir? Está amanhecendo. Comecem a meditar”. No inverno, Sarada Devi queria que Lakshmi dormisse um pouco mais. Ao ouvir que o Mestre estava na porta, sussurrava ao ouvido de Lakshmi: “Não responda. Ele é que não pode dormir. Não é hora de levantar-se; nem os corvos despertaram. Não se mova”. Ao não ouvir resposta e pensando que continuavam a dormir, o Mestre às vezes se divertia, jogando água por debaixo da porta. As jovens tinham que se levantar rapidamente para evitar que a cama se molhasse. E realmente, tinha vezes que chegava a se molhar. E assim Lakshmi adquiriu o hábito de levantar-se cedo.
Cada vez que se apresentava a oportunidade, Sri Ramakrishna instruía Sarada Devi espiritualmente. Uma noite falou extensamente a ela e a Lakshmi sobre o amor a Deus. Quando se retiravam, disse a sua sobrinha: “Esta noite, discuta com ela o que escutou de mim. Você já viu as vacas, nos campos, comendo pasto durante o dia; à noite elas tornam a mastigar o que comeram. Portanto, reflita com sua tia o que escutou e aprendeu hoje. Então não esquecerá minhas palavras”. Muitos anos mais tarde, quando alguém estava lendo o Evangelho de Sri Ramakrishna, Sarada Devi disse: “Quantas formosas instruções recebi dele! Se eu soubesse escrever, as teria anotado”.
Sarada Devi não permitiu jamais que seus deveres e obrigações do lar perturbassem sua meditação e outras práticas espirituais. Levava adiante ambos; o trabalho e a adoração. Durante seu tempo livre, de vez em quando fazia guirlandas para a imagem de Kali no templo. Mas nunca utilizou o trabalho como desculpa para se descuidar de sua adoração.
Como notamos, Sarada Devi se mantinha afastada de todos os homens. Era retraída e modesta por natureza e Sri Ramakrishna, aprovando sua conduta, até proibiu Ramlal de freqüentar seu quarto. Um dia repreendeu Hriday severamente por passar longo tempo no Nahabat, entre conversas e risadas.
Uma noite ela e Lakshmi estavam cantando em voz baixa. O Mestre as ouviu de fora. No dia seguinte disse a Sarada Devi: “À noite a ouvi cantar e parecia estar absorta. Isso é muito bom”.
Sarada Devi era muito reticente com respeito às suas experiências. Apesar de ter muitas visões, ela não supervalorizava sua importância. Com respeito à essência da realização espiritual, uma vez disse a suas devotas: “Por meio da realização, a mente se torna pura e por meio dessa mente pura, se alcança a iluminação”.
Quando Sarada Devi chegou pela primeira vez a Dakshineswar, é muito provável que não tivesse experimentado nenhum samadhi, se bem que mais tarde alcançou até o nirvikalpa samadhi *. Somente tinha observado os estados espirituais de Sri Ramakrishna e seus discípulos. Vendo os êxtases de Gauri-Ma, Sarada Devi também quis experimenta-lo e por meio de Lakshmi pediu ao Mestre que se cumprisse esse desejo. Em resposta, o Mestre disse: “Por que deseja ter êxtase? Gauri tem a natureza masculina, mas ela deve reprimir todas as suas emoções espirituais”. Logo, citando um provérbio, acrescentou: “Uma mulher desamparada desenvolve sua força permanecendo desamparada. Somente assim terá êxito. Uma mulher deve ter uma vida anônima. A modéstia e o retraimento são sua religião. Se o perde, as pessoas falarão mal dela”.
* A mais elevada experiência espiritual, na qual o homem realiza sua
completa unidade com Seus e o universo.
Uma noite Yoguin-Ma dormia com Sarada Devi na mesma cama, quando alguém começou a tocar a flauta. Sarada entrou em profundo samadhi. De quando em quando ria. Yoguin-Ma despertou e a contemplou. Temerosa de toca-la, nesse momento, sentou-se a um canto por um longo tempo, até que Sarada Devi recobrasse seu estado normal.
Como podemos observar, Sri Ramakrishna não motivava as manifestações de Sarada Devi. Um dia em que ela se queixava ante o Mestre de que não experimentava muita emoção, ele lhe disse: “Que vai acontecer se entrar em êxtase? Se caírem suas roupas e começar a fazer cabriolas? Quem cuidará para que suas roupas não caiam?”. Sri Ramakrishna, freqüentemente se tornava inconsciente, em samadhi e suas roupas caíam no chão, enquanto ele dançava.
Sarada Devi não fez nenhum exercício de austeridades, nem observou os rituais, na medida que o fez Sri Ramakrishna. Sua vida era de constante oração e meditação e mesmo assim, jamais descuidou do cumprimento de seus deveres cotidianos. Sua aparência era mais de uma dona de casa que a de uma asceta ou ermitã, ante os demais. E sem dúvida, o oceano de sua experiência espiritual era insondável como em Sri Ramakrishna. Isto demonstra que ela não era meramente uma santa ou uma mística, mas que, como seu esposo, era uma manifestação da Divindade.
Sri Ramakrishna conhecia perfeitamente o futuro de Sarada Devi. Um dia disse a uma discípula: “Ela é Saraswati. Assumiu corpo humano para compartilhar sabedoria aos homens, mas escondeu sua beleza celestial para evitar que as pessoas, ao olha-la, possam manchar sua mente com pensamentos indesejáveis”. Tanto durante sua vida como depois de seu desaparecimento, o Mestre freqüentemente lhe recordou seu futuro papel. Deu-lhe detalhadas instruções sobre como despertar o poder espiritual de seus futuros discípulos.
Sarada Devi, treinada por Sri Ramakrishna, cumpriu uma missão especial: a de demonstrar a Maternidade de Deus. Desde a mais tenra idade, ela expressou de muitas maneiras a inata maternidade que se encontra em todas as mulheres; cuidando de seus irmãozinhos, alimentando os pobres e depois cuidando dos jovens discípulos do Mestre, em Dakshineswar. Como é natural em todas as mulheres, ocasionalmente desejava ter tido filhos. Na sociedade hindu, uma mulher sem filhos é considerada desafortunada e não apta para participar de certos rituais religiosos. Em Kamarpukur tinha ouvido os murmurinhos dos vizinhos, ao ver que ela não tinha filhos e isto a entristecia no mais profundo de seu coração.
Estando em Dakshineswar, este pensamento cruzava, muitas vezes, sua mente. Já relatamos o pesar de sua mãe por ter casado sua filha com um louco, o que a privava da felicidade de ser chamada “mãe”. Um dia Sri Ramakrishna leu o pensamento dela e lhe disse: “Por que se preocupa? Lhe deixarei muitos filhos, todos puros como o ouro, dessa espécie que muitas mulheres não poderiam ter, nem fazendo austeridades durante milhões de vidas. Tanta gente a chamará de ‘mãe’, que não encontrará tempo para ocupar-se de todos eles”.
É muito possível que estas palavras alentadoras não tenham satisfeito completamente Sarada Devi; mesmo assim ela queria ouvir a doce palavra ‘mãe’. Sri Ramakrishna novamente leu seu pensamento e instruiu alguns de seus discípulos de Calcutá que, antes de entrar em seu quarto, passassem freqüentemente no Nahabat e dissessem em voz alta: “Mãe, aqui estamos, chegamos!”.
Com quanta perfeição cumpriu Sarada Devi com as demandas da maternidade! Uma vez uma mulher mentalmente alterada teve uma atitude ante o Mestre que o desgostou muito, pelo que a repreendeu severamente. Quando Sarada Devi soube disso, disse a Golap-Ma, com voz angustiada: “Olhe o que foi feito! Se a moça foi indiscreta, por que não a mandou aqui?”. Então mandou buscar essa mulher e lhe disse: “Filha minha, se ele se incomoda com sua presença, não vá. Vem a mim!”.
Toda mulher sente o chamado da maternidade, sentimento que Deus semeou em seu coração para perpetuar sua criação e também para a gradual sublimação dos desejos carnais. Aquelas que são fisicamente criativas satisfazem esse sentimento mediante a descendência física; mas umas poucas delas, criativas em espírito, satisfazem esse mesmo desejo através dos filhos de espírito. Sarada Devi pertence a esta última categoria e é por isso chamada carinhosamente de “A Santa Mãe” pelos próprios discípulos de Sri Ramakrishna. Um dia disse a um discípulo: “O Mestre considerava todas as criaturas como manifestações da Divina Mãe. Ele me deixou no mundo para expressar esta Maternidade”.
O conceito da Maternidade de Deus e da adoração de Deus como a Divina Mãe, forma um aspecto especial do hinduísmo. Sri Ramakrishna, que alcançou sua primeira comunhão com Deus através de sua adoração à Divina Mãe a Quem adorou ao longo de sua vida, dizia que adorar Deus como Mãe é o estado final da evolução espiritual.
Um hindu, sem dúvida alguma, adora Deus como Pai, Amigo e Bem-amado; mas a idéia de Deus como Mãe o faz ficar muito mais perto de Deus. Segundo a Vedanta, a Realidade Última, conhecida como Brahman, é uma entidade neutra transcendental, que é sem nome, sem forma e sem atributos. No final da existência não-dual, só existe Brahman. A alma e o universo se tornam uno com Ele. É Shakti, também chamada maia, o inescrutável poder de Brahman, que projeta e preserva o universo e os seres animados e inanimados.
No final de um ciclo, todos os nomes e formas retornam a Ela * e permanecem em estado de semente, até que no começo do novo ciclo reaparecem em suas formas densas tangíveis. Shakti é a totalidade da criação, como todos seus pares de opostos: bem e mal, prazer e dor, vida e morte. Funciona através de ambos: conhecimento e ignorância. Ambos são necessários para perpetuar a criação.
* Shakti, considerada como a Divina Mãe, é feminina.
Através de seu aspecto de ignorância – avidya maia – ela ilude as criaturas, atando-as ao mundo e prolongando sua existência fenomenal. Através de seu aspecto de conhecimento – vidya maia – ela concede visão espiritual aos aspirantes, tirando suas cadeias e finalmente os libera. Esta Shakti controla ambos: ligação e libertação. Sri Ramakrishna a adorou como Kali, a mãe e muito carinhosamente a chamava “minha Mãe”. Brahman e Kali, a Divindade e Seu poder, são inseparáveis como o fogo e seu poder de queimar, como uma jóia e seu brilho, como uma palavra e seu significado. Todas as criaturas, deuses e anjos, profetas e santas, mundanas e malvadas, são manifestações Suas, Sua progênie. Ela aparece como uma mãe terrena, em que os seres criados saem Dela e depois de nascerem, Ela mesma os preserva. No momento da libertação final, eles entram em Brahman, por meio do portal de Sua graça.
O amor de Deus pelo homem, inegoísta, não solicitado e não merecido, tem sido destacado pelos místicos e profetas de todas as religiões. O exemplo mais próximo deste amor, na experiência humana, é o amor de uma mãe pelos seus filhos. Seu amor e sacrifício estão acima de toda outra relação. O amor de uma esposa pode flutuar de acordo com a resposta que recebe, mas o carinho da mãe, por sua natureza, é mais profundo à medida que aumentam as necessidades e acompanha seu filho até o inferno.
Um ansioso amor que nunca nos despreza; uma benção que habita para sempre em nós; uma presença da qual não podemos nos separar; um coração no qual sempre nos sentimos a salvo; uma doçura insondável; um laço indestrutível, sagrado, sem uma sombra, tudo isso e muito mais, constitui o amor materno.
Sri Ramakrishna fez de Sarada Devo um símbolo da Maternidade de Deus; através de seu imaculado corpo e mente, a Divina Shakti se manifestou no Máximo grau, nesta época. Sua atuação serviu a dois importantes propósitos: ao adorar a Deus como a Mãe onipotente, compassiva e que tudo perdoa, um aspirante desenvolve intrepidez e se aproxima da realidade. Vendo Deus em uma mulher, gradualmente sublima seus desejos carnais. A carnalidade, que busca satisfação através da relação com um membro do sexo oposto, é um dos inimigos mortais contra o qual todo aspirante espiritual deve lutar, seja homem ou mulher.
Uma mulher pode vencê-lo facilmente, considerando o homem como seu filho. Ela é, em essência, a mãe de todos os homens, não importa quantas outras interpretações possa lhe dar a sociedade. Um homem também, facilmente submete sua luxúria, vendo na mulher o símbolo da maternidade. Mas o ignorante considera a mulher como um objeto para satisfazer seus apetites físicos. Corre atrás do corpo e retira dele a Divindade. E assim fica enredado no mundo. Mas se adora a Divindade nela, é abençoado com o néctar da imortalidade.
Uma vez Sri Ramakrishna perguntou a um jovem discípulo como considerava as mulheres. Respondeu-lhe: “As odeio. São obstáculos na vida espiritual. Fujo delas como da impureza mesma. Há um leão dentro de mim que ruge na presença das mulheres”. O Mestre lhe disse: “Filho meu, você não poderá se libertar da fatalidade do sexo odiando as mulheres. Dessa maneira cairá mais facilmente em seus laços. Considere a mulher como a sua mãe; isso não lhe prejudicará, pelo contrário, lhe ajudará a vencer sua paixão”.
Sri Ramakrishna mostrou, assim, o caminho fácil para vencer o instinto sexual. Deixou Sarada Devi no mundo, cujo corpo permaneceu sempre puro; cujo caráter era puro e que era a personificação da pureza, para que, ao contempla-la, os homens pudessem vencer os últimos vestígios de impureza.
É oportuno, também, mencionar que o hinduísmo pede à esposa que considere seu esposo como Deus. Ao associa-lo com a Divindade, ela gradualmente sublima seus desejos físicos. Bendita é na verdade, a família onde esposa e esposo podem mutuamente se considerar como manifestações de Deus e cujos filhos possam ver em seus pais, Seu símbolo terreno!
Ao concluir este capítulo, queremos nos referir à necessidade da prática de disciplinas espirituais por Sarada Devi, que era uma manifestação da Divindade.
Todas as principais religiões, como também os santos, profetas e místicos, enfatizavam a necessidade da disciplina espiritual aos aspirantes espirituais, para a purificação do coração. Mas que acontece com as Encarnações de Deus, que nasceram livres e permanecem sem mácula durante toda sua vida neste mundo? Por que eles também praticam disciplinas espirituais, como um ser humano comum? O mistério da Divina Encarnação parece estar no fato de que Deus é eternamente puro, iluminado, livre; apesar de que a essência Dele é Existência-Consciência-Felicidade-Absoluta; e apesar Dele ser incorpóreo, sem nome e Espírito sem forma, mesmo assim, por meio de Seu próprio e inescrutável poder, Ele assume forma humana, sem compulsão externa alguma, nem tampouco com o desejo de cumprir algum propósito egoísta.
A razão total da personificação do Divino é a de mostrar ao homem o caminho de saída do labirinto do mundo; Deus se torna homem para que o homem possa tornar-se Deus. Quando, com, o correr do tempo, a religiosidade declina e o mal prevalece, Deus de torna homem para restaurar os valores espirituais.
Uma Encarnação é um homem-Deus, uma combinação de Divindade e humanidade. Desce sobre a terra, cobrindo-se com um fino véu de maia ou ignorância cósmica, através do qual Ele, de tempos em tempos, obtém o vislumbre de Sua divina natureza e missão. Por Sua própria vontade, assume algumas das imperfeições humanas e atua como homem com respeito à fome, sede, enfermidade e outras características da existência corpórea. Também, como um homem, Ele ora, medita, adora e observa disciplinas espirituais, como para rasgar o véu de maia auto-imposto. Suas lutas espirituais se assemelham as do homem, porque Ele mesmo assumiu uma forma humana. Se assim não fosse, não haveria propósito algum em encarnar.
O homem não pode compreender a verdade transcendental, a menos que se expresse através de atos humanos. Uma vez transpassado o véu, a Encarnação se torna completamente consciente de Si Mesmo. E mesmo assim, Ele pratica disciplinas para deixar um exemplo para os outros. Sua meditação e adoração, antes de tornar-se consciente de Sua vontade, servem ao mesmo propósito, já que é óbvio que necessita delas para Sua própria libertação.
Um homem-Deus pratica disciplinas muito intensamente, condensando os esforços de muitas vidas comuns em uma, porque é Sua missão conceder a libertação a muitos e despertar a consciência espiritual da humanidade. Sabemos quanta luta é necessária para um homem comum desenvolver algo da consciência de Deus! Isto explica a sobre-humana renúncia, austeridade, desejo, pureza e autocontrole, que é manifestada na curta vida de um homem-Deus. Seus êxtases e íntima comunhão com a Divindade O fazem parecer quase como um ser anormal. Na realidade, Ele é anormal: se fosse normal como nós, não seria um Homem-Deus, um despertador da consciência espiritual da humanidade.
O Divino Poder se encarna em um corpo, para cumprir com uma necessidade espiritual cósmica. O hinduísmo não limita a Encarnação de Deus a uma pessoa, ou tempo particular. Sri Ramakrishna é, agora, considerado como um homem-Deus para nossa época e a mesma Divindade que se manifestou através de Sri Ramakrishna, também se manifestou através de Sarada Devi.
O propósito desta atual manifestação, por meio do que a sociedade chama de “esposo e esposa”, se revelará através destas páginas, como o drama da vida de Sarada Devi.
Sri Ramakrishna disse, uma vez, a Sarada Devi: “Eu sei quem você é, mas não revelarei agora”. Ele a comparava com um gato escondido entre as cinzas; quando o gato sacode as cinzas, alguém pode vê-lo.
VII
A MORTE DO MESTRE E ACONTECIMENTOS
CONSEQUENTES
EM DAKSHINESWAR Sarada Devi foi feliz em todos os aspectos. Mas neste mundo impermanente, nada dura para sempre. Os dias felizes de Dakshineswar logo terminariam irremediavelmente. Em abril de 1885 Sri Ramakrishna começou a sentir dor de garganta; um simples tratamento não foi eficaz, por isso consultou-se com um especialista, que diagnosticou a doença como sendo câncer. Sarada Devi se ocupava de sua dieta especial e acompanhada por um grupo de seus jovens discípulos, atendiam o Mestre. O médico o preveniu contra os êxtases e as conversas prolongadas, mas ele não fez muito caso, a doença se tornou grave,
Um dia, do mês de setembro, a garganta do Mestre sangrou e alguns dos discípulos mais velhos consideraram prudente leva-lo para viver em Calcutá, para facilitar o tratamento e o cuidado pessoal. Foi alugada uma casa em Shyampukur, no setor norte da cidade, onde fixou sua residência no mês de outubro. Sarada Devi continuou vivendo em Dakshineswar, onde levava uma via tranqüila, sem ter a menor idéia do real significado da doença do Mestre.
Sarada Devi tinha, então, 32 anos. Ocupava seu tempo em melhorar seus conhecimentos de leitura, o qual tinha interrompido ao deixar Kamarpukur. Uma moça da vizinhança a visitava de vez em quando e lhe dava lições. Sarada Devi a recompensava com frutas e verduras do jardim do templo. Foi assim que chegou a ler o Ramaiana, o Mahabharata e outros livros similares, em bengali. Mas não pode aprender a escrever. Uma vez um discípulo, muitos anos depois, insistiu para que lhe desse um autógrafo, mas por mais esforços que tenha feito, não conseguiu escrever o seu nome.
Preparar a dieta para o Mestre se tornou um verdadeiro problema e os devotos consultaram sobre a possibilidade de trazer Sarada Devi a Shyampukur. Porém a casa não tinha dependências que salvaguardassem a sua intimidade. Quando levaram a idéia a Sri Ramakrishna, ele lhes lembrou a natureza retraída de Sarada Devi e disse: “Poderá viver aqui?”. E acrescentou: “É melhor que perguntem a ela. Se depois de conhecer os fatos se mostrar disposta a vir, que venha”.
Lembrando o preceito de seu esposo, de que deve ajustar sua conduta ao tempo e às circunstâncias, ele colocou de lado os inconvenientes, que significava viver em um lugar pequeno e partiu para Shyampukur, dedicando-se imediatamente ao serviço do Mestre.
Em Shyampukur, Sarada Devi tinha que viver com os discípulos do Mestre. Com exceção de Latu e Gopal, o mais velho, nunca trocou uma palavra com eles. Sri Ramakrishna ocupava uma grande sala no andar acima e Sarada Devi dispunha de um pequeno quarto adjacente. A cozinha ficava situada em um pequeno espaço coberto, que conduzia ao terraço. Antes das três da manhã, quando todos dormiam, ela terminava seu banho no único banheiro que havia na casa e se dirigia à cozinha. Suas noites consistiam de três horas de sono. Ali ela meditava, cozinhava para o Mestre e os que o atendiam e cumpria com os outros deveres do lar. Quando a comida do Mestre estava pronta, avisava os devotos. Cada vez que convinha, os devotos deixavam o quarto do Mestre para que ela mesma pudesse levar a comida e acompanha-lo enquanto ele comia. Praticamente era invisível para os devotos, exceto para Latu e Gopal, o mais velho. Ocasionalmente Golap-Ma e Lakshmi a ajudavam. Os que viviam na casa dificilmente se inteiravam de sua presença. Quatro ou cinco discípulos, incluindo Narendranath (mais tarde Swami Vivekananda), passavam as noites atendendo Sri Ramakrishna. Passaram-se dois meses, mas a enfermidade do Mestre piorava. Finalmente, em 11 de dezembro de 1885, foi transladado a uma casa jardim, em Cossipore, um subúrbio ao norte de Calcutá, onde podia respirar mais livremente e ver a luz do sol.
Nesta nova casa, Sarada Devi se sentiu aliviada, pois tinha mais liberdade de movimento. Sri Ramakrishna ocupava uma ampla sala no andar superior e Sarada Devi um pequeno quarto no andar térreo; Lakshmi vivia com ela, como sua ajudante e companheira. Algumas mulheres devotas visitavam Sarada Devi de tempos em tempos e passavam a noite com ela. Narendra e vários jovens discípulos se estabeleceram na casa, com a finalidade de atender o Mestre constantemente. Às vezes eram doze os que viviam nos outros dois quartos disponíveis no andar térreo.
Três diferentes espécies de comida eram preparadas diariamente: uma para Sri Ramakrishna, outra para Narendra e os outros jovens discípulos e a terceira para o resto dos que viviam ali. Os gastos se cobriam com as doações que os devotos chefes de família efetuavam.
Gopal, o mais velho e Latu transmitiam a Sarada Devi as instruções do médico sobre a dieta do Mestre e ela mesma preparava. O doutor prescrevia certa variedade de alimentos, tais como creme de aveia, que devia ser peneirada, arroz cozido na água e também carne e camarões. Quando foi dito a Sarada Devi que deveria cozinhar camarões, ela se opôs, dizendo que se tratava de criaturas viventes, as quais tinha visto mover-se na água. Como podia mata-los? Mas Sri Ramakrishna lhe disse: “Como é isso? Eu posso comê-los e você não pode prepara-los?”. Ela pensou e logo cumpriu suas ordens. Sem dúvida se sentiu aliviada por uma revelação que teve, na qual viu que somente Deus é ambos: o que mata e o que morre.
Se bem que as coisas estavam mais organizadas em Cossipore do que em Shyampukur, Sarada Devi não tinha trégua em seu duro trabalho. Tinha que cozinhar para muitos e supervisionar as comidas do meio-dia e da noite, para o Mestre.
Sri Ramakrishna se sentiu ligeiramente melhor em Cossipore, durante quinze dias. Logo sua condição começou a piorar. Seu corpo esbelto e vigoroso ficou reduzido a um mero esqueleto. Sarada Devi costumava limpar a ferida com uma gaze, para tirar o pus.
Cinco anos antes, Sri Ramakrishna tinha feito algumas previsões com respeito a sua morte. Tinha dito que quando já não pudesse discernir sobre as pessoas que tocavam sua comida; quando ele passasse noites em Calcutá; quando permitisse aos outros comer parte de seu alimento antes que ele mesmo o provasse e, finalmente, quando grande quantidade de pessoas lhe mostrasse respeito e o adorasse como Deus, ele abandonaria o corpo.
Sarada Devi notava que todas as condições, menos a última, tinham se cumprido antes que ele deixasse Dakshineswar. E agora, esta se estava cumprindo em Cossipore. Um dia, alguns devotos do lar foram a Dakshineswar para visitar o Mestre, com oferecimento de doces e frutas. Ao saber que estava em Cossipore, ofereceram o que tinham levada diante de sua foto. Quando Sri Ramakrishna soube disso, disse: “Por que fizeram o oferecimento ante minha foto, em lugar de faze-lo à Mãe Kali, no templo?”. Sarada Devi sentiu-se inquieta, ao lembrar que ele havia previsto sobre seus últimos dias. Sri Ramakrishna lhe disse: “Não se aflija. Verá, mais adiante, que as pessoas adorarão meu retrato em seus lares. Lhe asseguro; posso jurar”.
Apesar de sua agudíssima dor e sua extenuação física, Sri Ramakrishna incessantemente se ocupava das necessidades espirituais de seus discípulos e devotos. Falava-lhes por sinais ou sussurrava. Em primeiro de janeiro, se sentiu um pouco melhor e às três horas da tarde desceu ao jardim, acompanhado por um de seus discípulos. Caminhava lentamente, quando viu um grupo de devotos do lar sentados debaixo das árvores, enquanto outros passeavam pelo jardim. Subitamente todos eles rodearam o Mestre e o saudaram, tocando seus pés; então o Mestre entrou em um estado elevado e tocou suas cabeças ou o peito, ao mesmo tempo em que dizia: “Que sua consciência espiritual desperte”. Os devotos se sentiram repletos de felicidade e todos e cada um, foram abençoados com uma experiência espiritual.
Em Cossipore, Sri Ramakrishna se encarregou, de uma forma muito especial, de moldar a vida espiritual de Narendra, que haveria de espalhar sua mensagem na Índia e através do oceano. Foi aqui que Narendra experimentou o nirvikalpa samadhi. Sri Ramakrishna repetidamente lhe pediu que cuidasse do bem-estar espiritual de seus jovens irmãos-discípulos e que se encarregasse de que não regressassem aos seus lares. Foi aqui, também, onde deu a alguns discípulos o hábito ocre, em preparação para a vida monástica e lhes pediu que saíssem a mendigar sua comida, como monges errantes.
Vemos, assim, que ele mesmo estabeleceu as bases da ordem dos monges, que mais tarde estaria associada ao seu nome. Tudo isso aconteceu ante os olhos de Sarada Devi e talvez intuitivamente, ela sentiu que teria que representar um papel importante na futura propagação da mensagem do Mestre.
Um dia, pouco antes de sua morte, Sri Ramakrishna estava olhando fixa e intensamente para Sarada, ela lhe perguntou: “Que há em sua mente?”. Ele lhe respondeu: “Diga-me, você não fará nada? É que este (apontando seu corpo) tem que fazer tudo?”. “Mas” – protestou ela – “que eu posso fazer? Sou uma simples mulher”. “Não, não!” – insistiu o Mestre – “Você terá de fazer muitas coisas”.
Em outra ocasião, Sarada Devi levava o almoço ao quarto do Mestre e o encontrou recostado, com os olhos fechados. Ela disse, alçando a voz: “Por favor, sente-se; é hora de almoçar”. Sri Ramakrishna pareceu voltar de uma viagem a um reino distante e lhe disse, abstraído: “Olha as pessoas de Calcutá! Estão vivendo como vermes na obscuridade. Você deve levar-lhes a luz”. Sarada Devi lhe respondeu: “Pensaremos nisso mais tarde. Agora coma”.
De vez em quando o Mestre cantava na presença de Sarada Devi:
Oh! Que tremendo peso estou suportando!
A quem explicarei?
Somente quem o leva, conhece seu peso;
Que pode saber os demais!
E logo dizia a ela: “Isto não é só meu peso; você também terá que compartilha-lo”.
A condição física de Sri Ramakrishna piorava visivelmente. Vendo que o tratamento médico se tornou ineficaz, Sarada Devi resolveu pedir a ajuda divina. Com esse propósito, foi ao famoso templo de Shiva, de Tarakeswar, na outra margem do Ganges, decidida a jejuar e manter-se desperta até obter o remédio, por meio da intervenção de Shiva.
Passados dois dias sem alimento e sem dormir, na terceira noite subitamente viu, em uma visão, uma montanha de potes de argila cozida, que logo caiu com grande estrondo, reduzida a pó, como se tivesse sido empurrada com um pesado garrote. Uma voz surgiu em sua mente: “Quem é o esposo? Quem são seus parentes? Para o bem de quem estou quase por suicidar-me aqui?”. Imediatamente sentiu um profundo desapego e se entregou a Deus. Depois de saciar sua sede com um pouco de água, voltou a Dakshineswar. Assim que o Mestre a viu, lhe disse: “Bem, conseguiu algo? Nada é real – não é assim?”.
Sarada Devi teve um vislumbre do que Deus tinha predestinado? Diz-se que, mediante uma sincera súplica, não se pode sempre obter o cumprimento do objetivo imediatamente, mas pode-se conhecer a vontade divina e, assim, obter a força necessária para aceita-lo com calma e resignação.
Sarada Devi teve outro indício do próximo fim do Mestre. Um dia lhe contou um sonho que teve: “Um elefante estava cavando a terra para conseguir seu remédio quando, de repente, Gopala, o menino Krishna, me despertou”. Evidentemente o Mestre não obteria o remédio para o seu mal. Por sua vez, Sarada Devi lhe contou um sonho que teve: “Vi a Mãe Kali com o colo inclinado para um canto. Lhe perguntei por quê e ela me respondeu: ‘É por causa desta doença que ele tem; eu também estou doente’”.
Sarada Devi, agora, estava convencida de que a doença do Mestre era incurável. Se assim não fosse, por que a Divina Mãe, totalmente consciente de seu sofrimento, não o curava? Um dia o Mestre lhe disse: “Estou passando por tudo isto porque tomei sobre mim o sofrimento do mundo”. Ao ouvir isto, ela sentiu uma imensa paz; subitamente o propósito de sua enfermidade lhe foi revelado e uma indescritível compaixão pela humanidade invadiu todo o seu ser.
Só restavam uns poucos dias de vida do Mestre sobre a terra. Pensava no futuro de Sarada Devi e um dia lhe disse: “Quer lhe dizer algo. Não lhe faltarão roupas nem alimento simples. Se estender sua mão a alguém, lembre-se bem, será como vender sua própria cabeça. Se for absolutamente necessário, pode mendigar seu alimento, mas nunca viva sob o teto alheio. Os devotos podem recebê-la com grande respeito e carinho em suas casas, mas você não deixe que a pequena cabana de Kamarpukur venha abaixo”.
Em outra ocasião, pouco depois, o Mestre estava recostado na almofada, em profundo silêncio. Mandou chamar Sarada Devi e lhe disse, com voz quase inaudível: “Não sei porque minha mente, nestes dias, permanece constantemente absorta em Brahman”. Ela compreendeu e chorou em silêncio.
Chegou o último dia, 16 de agosto de 1886. Quando Sarada Devi entrou no quarto com Lakshmi, ele lhe disse: “Me alegro que esteja aqui. Sinto como se estivesse indo a um país muito longe, além do oceano. Muito, muito longe...”. Sarada irrompeu a chorar. Então ele a consolou com estas palavras: “Por que se preocupa? Viverá como até então. Eles (referindo-se a Narada e os outros discípulos) farão por você o que fez por mim. Deixe que Lakshmi viva com você e cuide de você”. Estas foram as últimas palavras a Sarada Devi, em seu corpo físico.
A 01h06, Sri Ramakrishna repetiu três vezes, com voz clara, o nome de Kali, sua bem-amada Deidade e entrou em profundo samadhi, do qual sua alma não voltou mais ao corpo. Sarada Devi, de pé junto ao leito, caiu em pratos como uma criança desconsolada, enquanto dizia, entre soluços: “Mãe Kali, Oh Kali*! Que fiz para que ele tenha ido, deixando-me só neste mundo!”. Mas imediatamente se controlou, voltou ao seu quarto e permaneceu em solene silêncio.
* Anos mais tarde Sarada Devi disse a um discípulo que ela sempre tinha
considerado o Mestre como a Mãe Kali.
No dia seguinte, o corpo do Mestre foi cremado e suas cinzas levadas à casa jardim, em uma urna. Até o anoitecer Sarada Devi começou a tirar suas jóias, seguindo o costume das viúvas hindus. Quando se dispunha a tirar os braceletes, Sri Ramakrishna apareceu diante dela com o aspecto que tinha antes de adoecer e tomando-a pela mão, lhe disse: “Acaso estou morto para que você aja como uma viúva? Só passei de um cômodo a outro”. Sarada Devi não tirou os braceletes, os quais usou durante toda sua vida.
Balaram Bose, o bem-amado discípulo chefe de família de Sri Ramakrishna, entregou a Golap-Ma para Sarada Devi um sari branco sem borda colorida, como os que usam as viúvas ortodoxas. Ao vê-lo, Golap-Ma estremeceu e disse: “Meu Deus! Quem é capaz de entregar-lhe este tecido branco?”. Mas quando foi até ela, a encontrou tirando a barra vermelha de seu sari. Desde esse dia, sempre usou sari branco com uma estreita borda vermelha.
Três ou quatro dias mais tarde Sarada Devi, acompanhada por Golap-Ma, Lakshmi e Latu, fizeram uma visita a Dakshineswar e voltaram a Cossipore na mesma tarde.
Uma semana depois da cremação do corpo do Mestre, a Santa Mãe *, respondendo ao carinhoso convite de Balaram Bose, deixou Cossipore e foi a sua casa. A urna, contendo as cinzas do Mestre, foi também levada para lá e adoradas diariamente como uma presença visível. O pesar da Santa Mãe era imenso. Referindo-se a esses dias, disse uma vez: “Depois de seu desaparecimento, minha dor era insuportável. Uma ou outra vez me dizia: ‘Semelhante jóia se foi... como poderei continuar vivendo!’. Não encontrava alívio em nada e fugia da companhia das pessoas”.
* De agora em diante chamaremos assim Sarada Devi, nome pelo qual
chamavam carinhosamente os devotos e discípulos seus e do Mestre.
Com o propósito de que recuperasse sua paz interior, Balaram planejou envia-la em peregrinação. Duas semanas depois da morte do Mestre, a Santa Mãe foi para Brindavan, lugar associado com a vida de Sri Krishna, acompanhada por Golap-Ma, Lakshmi, a esposa de “M”, Yoguen, Latu e Kali *.
* Um jovem discípulo do Mestre que logo foi o Swami Abhedananda.
Neste ínterim, em outono de 1886, os jovens discípulos do Mestre, destinados a ser monges, renunciaram ao mundo e viveram juntos, em uma casa quase em ruínas em Baranagore, um subúrbio de Calcutá. Ali estabeleceram um monastério, praticaram disciplinas e austeridades e passavam seus dias em meditação, estudo e adoração das relíquias do Mestre. Este monastério, gradualmente se tornou Belur Math, estabelecido em 1898 como o Centro Principal dos monges da Ordem Ramakrishna.
A caminho de Brindavan, se detiveram em Deoghar, Bihar e fizeram sua adoração no famoso templo de Shiva. No dia seguinte partiram para Benares, onde permaneceram uma semana. Ali, no templo de Shiva, a Santa Mãe adorou Viswanath (o Senhor do Universo) e visitou outros templos e santuários. Um dia, enquanto atendia o serviço de Shiva no templo, entrou em tão profundo estado espiritual, que voltou para sua casa quase inconsciente do mundo. Logo disse: “Foi o Mestre que me trouxe de volta para casa, levando-me pela mão”.
Em Benares a Mãe e seus companheiros apresentaram seus respeitos ao renomado e venerado Swami Bhaskarananda, que estava completamente nu. Olhando-as, o Swami disse: “Mães, não se sintam incomodadas; todas vocês são manifestações da Divina Mãe do Universo; por que se sentirem perturbadas? É por causa de minha nudez? Trata-se simplesmente de um dedo a mais”. A Mãe disse, depois: “Que alma serena, que grande alma!”. Ficava sempre nu, no inverno e no verão”.
Foi aí, em Benares, que a Mãe conheceu uma santa, proveniente do Nepal, que a aconselhou a praticar a austeridade “dos cinco fogos” (panchatapa) para aliviar sua angústia mental.
Ao chegar a Brindavan se dirigiram à horta de Kala-babu, pertencente à família de Balaram, onde o pai deste passava seu tempo em oração e meditação. Neste lugar se encontraram com Yoguin-Ma, que tinha deixado Calcutá poucos dias antes da morte do Mestre. A Mãe a abraçou, chorando: “Oh Yoguin!”, repetia e suas lágrimas se derramaram.
A Mãe chorava muito pelo Mestre. Uma noite, em Brindavan, Sri Ramakrishna lhe apareceu e disse: “Por que chora tanto! Aqui estou. Onde eu fui? É só uma mudança de um cômodo para outro, não é assim?”. Repetidas visões do Mestre, durante esse período, sem dúvida suavizaram um pouco o pesar do coração da Santa Mãe.
Em Brindavan a Santa Mãe passava seus dias em êxtase espiritual. Swami Yoganada, discípulos de Sri Ramakrishna, nos deixou suas recordações daqueles dias: “Um dia, suas companheiras a encontraram absorta em profundo samadhi e começaram a repetir o nome do Senhor para trazer sua mente a este plano. Logo eu repeti em voz alta o nome de Sri Ramakrishna e a Mãe deu sinais de baixar sua mente ao mundo. Durante esses momentos de êxtase, sua maneira de falar, sua voz, seu modo de comer, de caminhar e sua conduta geral, se assemelhavam completamente aos do Mestre. Ouvimos que na profunda meditação, o adorador e o adorado se tornam um. A Santa Mãe esquecia sua existência separada e se comportava exatamente como o Mestre, sentindo sua unidade com ele. Nos sentíamos maravilhados e assombrados ao ver o espírito de Sri Ramakrishna unificado com ela. Compreendemos que o Mestre e a Mãe eram uma só essência, mesmo aparecendo em corpos separados. O Mestre me disse, muitas vezes, que não havia nenhuma diferença entre seu próprio corpo e o da Mãe”.
“Em uma ocasião passou quase dois dias em um estado supraconsciente. Depois dessa experiência, houve uma grande transformação nela. A partir dessa experiência, a víamos permanecer continuamente imersa em felicidade. Todo seu pesar, dor e sentimento de separação do Mestre tinham desaparecido, transformando-se em um estado de serena felicidade. Era tal a felicidade que experimentava, que desejava a presença de Krishna; pronunciava Seu nome com tanto e intenso amor, que trazia à memória a lembrança de Radha. Ouvi de Yoguin-Ma e Golap-Ma que a Mãe, às vezes, falando abertamente de si mesma, tinha declarado que ela era Radha. Em Brindavan, pela graça da Mãe, pude compreender e valorizar o divino jogo (lila) de Sri Krishna”.
Em um templo de Krishna, em Brindavan, a Santa Mãe recebeu o primeiro mandato de sua futura missão. Sri Ramakrishna lhe apareceu e lhe disse que iniciasse formalmente Swami Yogananda. Quando essa visão se repetiu por três vezes, ela disse ao Mestre: “Não falo com Yoguen. Como posso inicia-lo?”. O Mestre lhe disse que usasse Yoguin-Ma como intermediária. Finalmente iniciou Yogananda, convertendo-se este em seu primeiro discípulo. Este foi o começo de um novo capítulo de sua vida.
A Mãe permaneceu em Brindavan durante um ano praticando meditação e experimentando muitas visões e êxtases, do qual, no entanto, guardava silêncio. Como se sentia feliz! Disse, uma vez, que ela e Yoguin-Ma ficavam tão absortas em meditação, que não sentiam as moscas que pousavam sobre suas pálpebras.
De Brindavan a Santa Mãe e alguns de seus companheiros partiram para Harwar, onde o Ganges, descendo de um elevadíssimo glacial, nos Himalayas, desliza pelas planícies da Índia. Neste lugar a Mãe atirou alguns fios de cabelo e unhas do Mestre no sagrado rio. Dali se dirigiram a Jaipur e Allahabad.
Na confluência do Jamuná e o Ganges, o Allahabad, a Mãe atirou alguns dos cabelos de Sri Ramakrishna. Descrevemos este incidente com suas próprias palavras:
“É acaso uma bagatela o cabelo do Mestre? Depois de sua morte, levei seus cabelos a Allahabad para oferecê-los na confluência dos rios sagrados. As águas estavam tranqüilas. Enquanto sustentava os cabelos em minha mão, subitamente se levantou uma onda e os levou. Esse lugar, por si sagrado, pegou os cabelos de minha mão, para aumentar sua santidade”.
O grupo voltou a Calcuta em agosto de 1887.
VIII
DIAS DE AFLIÇÃO
E
RESTABELECIMENTO DA TRANQUILIDADE
DEPOIS DE seu regresso de Brindavan, a Santa Mãe viveu em seu corpo mortal trinta e três anos, que podem ser divididos, em termos gerais, em três períodos.
Durante o primeiro deles (1887-1898) viveu afastada das pessoas, viajando freqüentemente entre Calcutá, Kamarpukur e Jairambati. Não há maiores detalhes deste período de sua vida. Durante o segundo (1898-1909) começou formalmente seu ministério espiritual, o qual alcançou sua culminação durante o terceiro período (1909-1920).
Ao regressar de sua peregrinação, em agosto de 1887, a Santa Mãe passou uns dias na casa de Balaram e logo se dirigiu a Kamarpukur, acompanhada por Yoguin-Ma, Golap-Ma e uns poucos devotos. Antes de partir, foi a Dakshineswar saudar as diferentes deidades dos templos. Desnecessário dizer que também visitou o quarto do Mestre e o Nahabat, associados com tantas perenes lembranças.
O grupo, por falta de dinheiro, teve que caminhar umas 16 milhas, da estação ferroviária para Kamarpukur. A Mãe se sentia exausta e com fome, pelo que Golap-Ma as convenceu de preparar uma comida simples na beira do caminho. Ao prova-la, a Mãe disse: “Golap, o que você preparou é néctar!”. Poucos dias depois de chegar a Kamarpukur, seus companheiros de viagem voltaram a Calcutá. Lakshmi decidiu viver em Dakshineswar com seu irmão Ramlal, que trabalhava como sacerdote do templo de Kali. A Santa Mãe ficou completamente só, na casa paterna do Mestre.
Ali permaneceu cerca de um ano (1887-1888), sob as mais penosas circunstâncias, sofrendo pobreza, solidão e crítica maldosa das pessoas. Em Cossipore, Sri Ramakrishna tinha dito a seu sobrinho que Sarada Devi viveria permanentemente em Kamarpukur, ao que Ramlal, com toda indiferença, respondeu: “Que viva onde quiser!”. Diante dessa resposta, o Mestre disse: “Que quis dizer? Você é um homem e se expressa dessa maneira!”. Ramlal, não somente não se incomodou nem um pouco em ajudar a Santa Mãe, mas na realidade tornou sua situação pecuniária mais difícil ainda.
Depois do desaparecimento do Mestre, as autoridades do templo passavam à Mãe uma mensalidade de sete rúpias. Quando ela estava em Brindavan, Ramlal lhes disse que os abastados devotos do Mestre cuidariam dela e que, portanto, não tinha necessidade de nenhuma outra ajuda; por conseqüência, suspenderam a mensalidade. Narendra a defendeu o mais que pode, mas foi em vão. Quando a Mãe soube disse, com um espírito de total desapego: “Que a suspendam. Perdi o Mestre, que vou fazer com seu dinheiro?”. Alguns dos devotos chefes de família falaram em ajuda-la, mas não passou de um piedoso desejo.
Sri Ramakrishna tinha pedido a Sarada Devi, em Cossipore, que vivesse em Kamarpukur, acrescentando: “Plante alguns vegetais, coma arroz fervido com essas verduras e repita o nome de Hari”. Que dias tão difíceis e rigorosos teve que passar ali! Tinha dias em que só tinha arroz, sem sequer uns grãos de sal para tempera-lo. No entanto ela se manteve sem tropeços, lembrando o comando do Mestre, de que não deveria estender sua mão a ninguém por dinheiro. A maioria dos jovens discípulos do Mestre estava vivendo como monges errantes, sem ter a menor idéia das dificuldades pelas quais a Mãe estava passando. Uma vez Swami Saradananda observou: “Nem sequer sonhávamos que a Mãe não tinha meios nem para comprar um punhado de sal”.
Já dissemos que Ramlal e Lakshmi viviam em Dakshineswar. Shivaram, o irmão mais novo deles, também vivia ali. Shivaram queria profundo bem à Santa Mãe, que era para ele uma espécie de madrinha; mais tarde a visitaria, de vez em quando, em Jairambati. A Mãe não tinha nada em comum com estes sobrinhos. Ramlal, por sua vez, não lhe dava nenhuma atenção. Um dia, durante este período, foi a Kamarpukur e introduziu uma mudança drástica nos assuntos familiares. Deixou a Santa Mãe na cabana do Mestre e fez acertos sobre a propriedade e a adoração da deidade da família. A Santa Mãe se sentiu terrivelmente só e desamparada, mas enfrentou a situação com inteira calma e equanimidade. Suas roupas eram farrapos. Sua mãe, Shyamasundari, que também estava em situação de extrema pobreza, durante uma das visitas da Mãe a Jairambati, chorou ao vê-la em tal estado e lhe rogou repetidamente que viesse viver com ela. Mas a Santa Mãe não consentiu, somente dizendo: “Voltarei a Kamarpukur e veremos o que ordena o Senhor para mim”.
Muito logo surgiu outro problema, para aumentar o sofrimento da Santa Mãe. Os vizinhos da aldeia, de mente estreita e fanáticos quanto às tradições sociais, consideravam um ultraje que ela usasse sari com borda vermelha e braceletes, em lugar de viver como correspondia a uma viúva ortodoxa. Onde quer que ela fosse, havia murmurinhos de desaprovação. Angustiada, tirou os braceletes. Fora isso, ela não de sentia feliz vivendo longe do sagrado Ganges, pelo qual tinha profunda reverência. Até pensou em fazer uma viagem até o sagrado rio. Subitamente viu, com seus olhos físicos, Sri Ramakrishna, que vinha para casa, seguido por Narendra, Baburam, Rakhal e outros devotos. Viu, também que uma corrente de água, surgindo de seus pés, se levantava em ondas diante dele. A Mãe lhe disse: “Sim, o Mestre é tudo. O Ganges surgiu de Seus pés”. Rapidamente cortou algumas flores e as ofereceu à corrente. Sri Ramakrishna lhe disse: “Não tire os braceletes. Não conhece as escrituras Vaishnavas?”. Ela lhe respondeu que não sabia de nada disso. O Mestre lhe disse que Gauri-Ma viria a tarde e o explicaria. Gauri-Ma chegou, como ele havia anunciado e lhe disse que ela não poderia considerar-se viúva, sendo que seu esposo não era outro senão Senhor Mesmo. Esta visão a tranqüilizou. Novamente colocou os braceletes e ficou surda aos falatórios.
Um dia as mulheres da aldeia foram consultar Prasannamai, uma vizinha da Santa Mãe, muito respeitada por sua piedade e maturidade, sobre a conduta não-ortodoxa da Santa Mãe. Esta senhora, que havia tido um vislumbre da personalidade de Sri Ramakrishna e a Santa Mãe, lhes disse: “Não critiquem nenhum deles. Ambos possuem uma natureza divina”. Isto silenciou as críticas, pelo menos durante um certo tempo.
Personificação da paciência como era a Santa Mãe, não falou com ninguém de seus sofrimentos, mas alguma coisa chegou a saber por outras fontes. Uma servente, que costumava acompanha-la algumas noites, falou aos aldeões da condição desesperadora da Mãe e logo a notícia chegou a Jairambati. Shyamasundari se sentia assolada de dor e angústia. Um de seus filhos, que vivia em Calcutá, levou a notícia a Golap-Ma, que por sua vez comentou com alguns dos discípulos de Sri Ramakrishna, laicos e monásticos, que se sentiram muito aflitos. Coletaram algum dinheiro e o enviaram, com toda urgência, pedindo-lhe encarecidamente que voltasse a Calcutá com eles. Mas esse convite trouxe um novo problema. Depois de tudo, ela era uma viúva jovem, de trinta e tantos anos e os discípulos do Mestre, salvo dois ou três, lhe eram desconhecidos. Quando os aldeões souberam da situação, comentaram: “Mas como ela pode viver entre esses jovens!”.
Apesar de que uma voz interior lhe dizia que no futuro ela viveria com os devotos do Mestre, mesmo assim ela queria saber a opinião das pessoas do lugar. Alguns são fizeram objeção, mas a maioria desaprovou. Então Prasannamai veio salva-la. Quando a Mãe a consultou, muito sabiamente lhe disse: “Por que duvida? Certamente irá a Calcutá. Os discípulos de Gadai * são como seus próprios filhos. Não escute os falatórios da aldeia. É seguro que irá!”. Também pediu o conselho de sua própria mãe, que depois de consultar seus vizinhos, lhe deu seu consentimento.
* Abreviatura do nome do Mestre, Gadadhar, quando era menino.
Depois de ter permanecido nove meses em Kamarpukur, a Santa Mãe partiu para Calcutá, em abril de 1888. Permaneceu alguns dias com a família de Balaram e logo foi viver na casa de Nilambar Mukherji, em Belur, a que havia sido alugada pelos devotos para ela. Desnecessário dizer a alegria dos discípulos de Sri Ramakrishna, especialmente das mulheres, ao tê-la entre eles. Também compreenderam que a responsabilidade de cuidar dela e atendê-la recaía sobre eles.
Sabe-se, certamente, que no princípio, alguns dos chefes de família não reconheceram sua grandeza e criticavam a excessiva devoção das mulheres discípulas como Golap-Ma e Yoguin-Ma. Mas quando souberam dos elevados estados que tinha experimentado em Brindavan, mudaram de idéia. A responsabilidade de cuidar dela recaiu, principalmente, sobre Swami Yogananda e Golap-Ma.
Em fevereiro de 1889, a Mãe voltou a Kamarpukur e passou cerca de um ano ali. Antes de estabelecer-se em Jairambati, visitou várias vezes Kamarpukur. Durante uma destas visitas a Kamarpukur, ocorreu um penoso incidente. Harish, um devoto de Sri Ramakrishna que costumava passar uns dias com o Mestre, sentia grande desapego pela vida familiar. Sua esposa, alterada profundamente por sua indiferença, lhe havia dado certa bebida para atrair sua mente à vida mundana. Isto tinha afetado seu cérebro. Um dia chegou a Kamarpukur em um desordenado estado mental e começou a agir de maneira estranha. A Santa Mãe, sentindo-se preocupada, fez a notícia chegar aos jovens discípulos, que viviam em Baranagore. Antes que eles pudessem tomar alguma medida, Harish se tornou realmente louco. O que aconteceu é mais bem descrito com as próprias palavras da Mãe:
“Um dia, ao entrar em casa, regressando da visita a uma vizinha, Harish começou a me perseguir. Estava louco. Este estado tinha sido provocado por sua própria esposa. Não tinha ninguém em casa que pudesse me socorrer. Em um estado de desamparo, me dirigi para o celeiro e comecei a dar voltas ao seu redor. Ele me seguiu. Depois de ter dado sete voltas, me detive e assumi minha forma real *. Derrubei-o no chão, coloquei meus joelhos em seu peito e lhe dei umas bofetadas. Ele começou a se desesperar por um pouco de ar. Minhas mãos ficaram vermelhas”. Harish se acalmou e pouco depois foi a Brindavan, onde recobrou seu estado normal.
* Segundo alguns, ela assumiu a forma de Bagala,
uma das formas da Divina Mãe, como Destruidora dos demônios.
Em Kamarpukur a Mãe levou uma vida tranqüila. Sua situação econômica tinha melhorado um pouco. Também recebia uma pequena ajuda dos devotos do Mestre, em Calcutá; contava, além disso, com a cota de arroz da família que com ela se correspondia. Portanto, não existia o temor da indigência. Quando se apresentava a ocasião, recebia alguns monges, convidados e mendigos e aos devotos do Mestre que, de vez em quando, a visitavam. Além do mais, se ocupou de reparar a cabana e contribuiu com os gastos para oculto da deidade familiar. Mas tinha que trabalhar duramente. Finalmente sua mãe a convenceu de que fizesse de Jairambati sua residência permanente e vivesse com ela e seus próprios irmãos. Quando alguém lhe perguntou por qual razão tinha deixado a casa de Kamarpukur, quando o Mestre lhe tinha pedido que vivesse ali permanentemente, ela disse: “Em Kamarpukur sentia terríveis saudades do Mestre. É uma experiência muito dolorosa. É por isso que fui embora dali”. Outras das razões para viver em Jairambati foi, como veremos mais adiante, a de cuidar das famílias de seus irmãos.
Encontrando-se a Santa Mãe em Calcutá, na casa de Balaram, em abril de 1888, teve algumas experiências espirituais muito notáveis. Um dia, sentada no terraço da casa, estava meditando quando logo entrou em profundo samadhi. Descobrindo-se em êxtase, disse a Yoguin-Ma: “Senti que tinha viajado a um país muito distante. As pessoas do lugar demonstraram grande ternura por mim. Meu aspecto era de uma beleza indescritível. O Mestre estava ali e suavemente me fez sentar a seu lado. Não posso expressar, com palavras, a felicidade que senti nesse momento. Ao recuperar a consciência parcial, vi meu corpo ali estirado, horrível como um cadáver. Não sentia desejo algum de entrar nele. Depois de longo temp,o pude persuadir minha mente a entrar no corpo e novamente me tornei consciente do mundo físico”;
Yoguin-Ma, Golap-Ma e alguns dos discípulos monásticos do Mestre atuavam como seus assistentes. Uma tarde, a Santa Mãe se encontrava no terraço com suas companheiras, absorta em meditação. Depois de muito tempo, recobrando a consciência parcial do mundo, disse: “Oh” Yoguin! Onde estão minhas mãos, onde estão meus pés?”. Yoguin pressionou seus membros e lhe disse: “Aqui estão suas mãos e seus pés”. A Mãe recobrou a consciência total de seu corpo, depois de longo tempo.
Esta elevadíssima experiência tem sido descrita por muitos como nirvikalpa samadhi, em cujo estado se transcende totalmente a consciência do corpo e do mundo e sente-se sua identidade com Brahman.
Referindo-se a seus estados espirituais dessa época, disse uma vez a um discípulo: “Naqueles dias, minha mente ficava imersa em luzes de cor vermelha, azul e outras cores. Meu corpo não teria sobrevivido a essas experiências, se continuassem por muito tempo”.
Enquanto viveu na casa de Nilambar Babu, Latu colaborava com Swami Yogananda em cuidar do bem-estar da Mãe. Swami Abhedananda também a visitava e um dia recitou um hino que ele tinha composto em sua honra. Pouco depois a Mãe saiu em peregrinação a Puri, acompanhada pelos Swamis Brahmananda, Yogananda, Saradananda, Yoguin-Ma e sua mãe, Golap-Ma e Lakshmi. Chegaram a Puri em princípios do novembro de 1888 e imediatamente visitaram Jagannath, o Senhor do universo. Um dia a Santa Mãe levou uma fotografia do Mestre sob seu sari e a colocou ante as imagens do altar, uma vez que o Mestre nunca tinha ido a Puri. Ela tinha a convicção de que a fotografia é idêntica à pessoa que representa. Mais tarde disse: “Vi como se fosse um Leão entre os homens, sentado no sagrado altar e eu O estava atendendo como Sua donzela”.
O grupo regressou a Calcutá em 12 de janeiro de 1889. Em 5 de fevereiro, a Santa Mãe foi ao local de nascimento de Swami Premananda, junto com Swami Vivekananda, Swami Saradananda e alguns outros discípulos do Mestre. Dali voltou a Kamarpukur, onde permaneceu cerca de um ano.
Em 25 de março de 1890 fez uma peregrinação a Gaia para oferecer as tradicionais bolinhas de arroz e água, para o bem-estar da alma de sua sogra. De Gaia foi a Bodh-Gaia, lugar de iluminação de Buda, onde viu monges vivendo na abundância de um monastério. Lembrando a pobreza dos discípulos de Sri Ramakrishna, rogou fervorosamente a Deus para que lhes concedesse bem-estar físico.
Pouco depois de seu retorno a Calcutá, Swami Vivekananda foi visitá-la. O grande discípulo do Mestre ardia de desejo por realizar Deus e tinha resolvido viver no monastério de Baranagore somente durante algum tempo, longe de seus irmãos discípulos. Foi despedir-se da Santa Mãe e lhe disse: “Mãe, voltarei a vê-la, se puder me converter em um verdadeiro homem. Se assim não acontecer, desde já lhe digo adeus para sempre”. “Que está dizendo?” – a Mãe o interrompeu. “Sim, Mãe, voltarei pela Sua graça”. Ela disse a Swami Akhandananda (cujo nome era Gangadhar), que o acompanhava: “Lhe entrego meu tesouro. Você conhece os Himalayas; lhe rogo, cuide para que Naren não sofra a falta de alimento”.
Em 1891 a Mãe realizou o culto de Jagadhatri, a Divina Mãe, em Jairambati. Por sua conduta, se tornava evidente que, nessa época, estava plenamente consciente de sua divina natureza. Swami Saradananda e uns poucos devotos do Mestre, chegaram a Jairambati com todo o necessário para o culto. Ao vê-los, a Santa Mãe se sentiu inundada de felicidade. Ela mesma preparou as hortaliças e supervisionou a comida de todos. Shyamasundari estava na ocasião, considerando os devotos como seus netos. Presenteou aos convidados com muitas recordações da vida de Sri Ramakrishna.
Em 1893, vivendo na casa de Nilambar Babu, a Santa Mãe realizou o Panchatapa, ou “austeridade dos cinco fogos”, culto que lhe havia sido recomendado por uma asceta do Nepal, que encontrou em Benares. Não conhecendo a técnica, consultou-se com Yoguin-Ma, que lhe explicou, dizendo-lhe que ela a acompanharia. No terraço da casa, acenderam quatro flamejantes fogos, alimentados com esterco seco, a uma distância de 0,90 m um do outro. O sol que brilhava sobre suas cabeças, era o quinto. Ambas se banharam no Ganges e logo se aproximaram dos fogos. Deviam sentar-se rodeadas pelos fogos e permanecer meditando desde a saída do sol, até o seu poente. A Santa Mãe se sentia muito nervosa, mas sua companheira a acalmou. Mantendo Sri Ramakrishna em sua mente, entrou no círculo de fogos e imediatamente sentiu como se este tivesse perdido todo seu calor. Esta disciplina deve ser cumprida durante sete dias consecutivos. A Santa Mãe sentiu uma grande paz interior, mas sua pele bastante clara, perdeu todo o viço. Mais adiante, alguém lhe perguntou sobre essa disciplina e ela respondeu: “Realizei essa austeridade quase como uma demonstração. De outro modo as pessoas teriam dito: ‘Que há de extraordinário nela? Come, dorme e se comporta como as pessoas comuns’. É um culto que agrada muito as mulheres. Sim; é muito certo que o praticam por sua própria vontade”.
Mas quando um discípulo íntimo quis conhecer a verdadeira razão, ela claramente lhe disse: “Filho meu, fiz pelo bem-estar de todos vocês. Por acaso vocês podem praticar austeridades? É por isso que o fiz”.
O Panchatapa apaziguou a angústia mental, mas não revelou o propósito central de sua vida. Isto soube por meio de uma muito significativa visão que teve nessa época, a que também lhe revelou o porquê da personificação de Sri Ramakrishna.
Era uma noite de lua cheia. A Santa Mãe estava sentada nos degraus que conduzia ao Ganges, contemplando o reflexo da lua cheia, nas ondas do sagrado rio. De repente, viu Sri Ramakrishna, que vinha por trás e lentamente se dirigia ao rio; e quando tocou suas águas, seu corpo se dissolveu nelas.
Descrevendo esta visão, um dia a Mãe disse: “Todos os pelos de meu corpo se eriçaram, enquanto observava o que acontecia ante meus olhos, muda de assombro. Subitamente, não sei de onde, apareceu Naren. Gritando ‘Vitória a Ramakrishna!, tomou as águas com suas mãos e começou a espargi-la sobre inumeráveis homens e mulheres reunidos ao seu redor. Imediatamente todos eles alcançaram a liberação”.
Esta visão foi tão vívida, que por alguns dias não pode entrar no rio, onde o corpo do Mestre tinha se diluído. Esta experiência lhe fez lembrar, também, Suas palavras: “Você não pode ir embora agora; deve ficar para despertar a espiritualidade das pessoas. A quão poucos ajudei! Muitos virão a você e você terá que assumir sua responsabilidade”. A Santa Mãe resolveu cuidar de seu corpo, para poder cumprir com o trabalho do Mestre. Finalmente, essa visão a convenceu de que a morte física de Sri Ramakrishna não significava que ele havia deixado de existir. Ele havia encarnado para cumprir com um fim cósmico e ela devia cumprir com a parte que lhe correspondia. Assim, a Santa Mãe compreendeu qual era o propósito central de sua própria vida.
Quando Swami Vivekananda estava por embarcar à América, em 31 de maio de 1893, lhe assaltou a dúvida de que empreendia essa viagem para cumprir com a vontade de Deus, ou para satisfazer sua própria ambição. Tinha recebido indicações sobrenaturais da aprovação de Sri Ramakrishna, mas ele necessitava de um sinal mais concreto. Então escreveu para Santa Mãe, pedindo-lhe sua opinião.
Em lugar de sentir-se preocupada com este jovem de 30 anos que não possuía um centavo, completamente ignorante dos costumes mundanos, ela viu em tudo isso o dedo de Deus e lhe enviou suas bênçãos para o cumprimento de sua missão. Imediatamente, todo o vestígio de dúvida se desvaneceu da mente de Swami Vivekananda.
Depois de seu triunfo na América, escreveu cartas inspiradoras a seus irmãos discípulos na Índia, incitando-lhes a disseminar a mensagem de Sri Ramakrishna e dedicar suas vidas ao serviço da humanidade. Um dia, em 1895, alguém leu estas cartas à Santa Mãe, que disse: “Narendra é um instrumento nas mãos do Mestre. É o Mestre quem está trabalhando por meio de Naren. O que Naren disse é verdade; no futuro, suas palavras serão cumpridas”.
Swami Vivekananda regressou da América a Calcutá, em fevereiro de 1897, dirigindo-se, depois, a Dajiirling, para recuperar sua saúde. A Santa Mãe foi a Calcutá, em abril e ambos se encontraram ali. Não se viam desde 1890. Foi, na realidade, um encontro muito feliz, depois da longa separação. Seu coração de mãe se sentia cheio de orgulho e de indizível felicidade. Ela o esperou, silenciosamente, perto da porta de seu quarto, coberta dos pés à cabeça com um véu, símbolo de sua natural modéstia. Não se descobriu diante dele e nem falou diretamente. Golap-Ma atuou de intermediária. Swami Vivekananda caiu estendido a seus pés, mas não a tocou. Por sua vez, pediu a quem o acompanhava, que tampouco o fizesse, dizendo: “Se alguém tocar os pés dela, por sua infinita compaixão tomará sobre si todas as iniqüidades desse devoto e sofrerá por causa dele. Abram seus corações sem palavras, comuniquem-lhe seus desejos e peçam suas bênçãos, ela sabe o que se passa dentro de vocês”.
A Santa Mãe, por meio de Golap-Ma, lhe perguntou: “Como se sentia em Darjiiling? Se sente melhor agora?”. Swami Vivekananda lhe respondeu que, efetivamente, sua saúde havia melhorado lá.
Golap-Ma: Disse a Santa Mãe que o Mestre está sempre com você. E que tem muitas coisas mais que fazer, para o bem do mundo.
Swamiji: Vejo claramente que sou um mero instrumento nas mãos do Mestre. Vi grandes acontecimentos no ocidente: a dedicação de homens e mulheres aos ensinamentos de Sri Ramakrishna e também sua generosa ajuda em meu trabalho. Tudo isto tem me deixado mudo de assombro. Fui à América com as bênçãos da Mãe. O êxito obtido e o respeito de todos eles me demonstraram, me convenceram, de que tais coisas foram possíveis somente através do poder de suas bênçãos. Enquanto me encontrava na América, sentia que o Divino Poder, o qual o Mestre chamava “Mãe”, me estava guiando.
Golap-Ma: Disse a Santa Mãe que o Mestre não é diferente daquele a quem ele chamava “Mãe”. É o Mestre que realizou todos este trabalho através de você. Você é seu filho predileto e seu discípulo. Quanto lhe amava! Ele previu que você ensinaria aos homens.
Swamiji: Meu propósito é o de pregar a mensagem do Mestre e nada mais. E para tal fim, necessito dar forma a uma organização permanente. Sinto-me frustrado por não poder torna-lo realidade tão logo como quero.
Desta vez a Santa Mãe mesma disse, em um sussurro: “Não se aflija. O que está fazendo agora e o que fará no futuro, será permanente. Você nasceu justamente para realizar esse trabalho. Milhares de pessoas o aclamarão como mestre do mundo, um doador de conhecimento divino. Posso assegurar-lhe que o Mestre cumprirá seu desejo em muito pouco tempo. Verá que o trabalho que quer empreender, se cumprirá”.
Swami Vivekananda se sentiu tranqüilizado e profundamente comovido pelas bênçãos da Santa Mãe. No curso desta entrevista, lhe disse: “Mãe, desta vez cruzei o oceano de um salto *; fui a América em um navio construído pelos ocidentais. Lá descobri as imensas glórias de nosso Mestre. Quantas boas pessoas me escutaram, sem respirar, falar de Sri Ramakrishna e logo aceitaram suas idéias e ideais!”.
* Referência a Hanuman, devoto e servidor de
Rama que cobriu, de um salto o oceano entre a Índia e o Ceilão.
Em 1º de março de 1897, Swami Vivekananda inaugurava a Ramakrishna Mission, com as bênçãos da Santa Mãe. A Mission realizava reuniões semanais na casa de Balaram Bose, aos domingos. A Mãe compareceu a algumas dessas reuniões, acompanhada de várias devotas. Quando ela estava presente, Swami Vivekananda, freqüentemente, cantava.
Em 3 de fevereiro de 1898, foi adquirido o atual local de Belur Math, o centro permanente da Ramakrishna Mission, sobre as margens do Ganges. Um dia a Santa Mãe foi levada ao lugar para abençoa-lo, sendo recebida com grande respeito pelos monges e brahmacharis. Três discípulas ocidentais de Swami, Sister Nivedita, Mrs. Ole Bull e Miss Josephine MacLeod, que se hospedaram na vizinhança, deram a bem-vinda à Mãe e a acompanharam ao ambiente do futuro monastério.
A felicidade de Santa Mãe não tinha limite. Dizia: “Agora meus filhos têm lugar onde apoiar suas cabeças. No fim o Mestre fez descer Sua graça sobre eles”. Foi precisamente nessa época (1898) que Mrs. Bull persuadiu a Mãe a deixar tirar algumas fotografias. Uma delas é agora adorada por seus devotos em todas as partes. Ela disse, uma vez, referindo-se a essa foto: “Sim, é muito boa. No princípio neguei a deixar-me fotografar, mas Sara (Mrs. Bull) insistiu, dizendo: ‘Levarei essa foto à América e a adorarei’. Finalmente, tive que ceder”.
Em outubro de 1898, Swami Vivekananda regressou de uma viagem a Kashmir e visitou a Santa Mãe. Com certo ressentimento, lhe disse: “Mãe, que frágil é o poder de seu Mestre! Um santo, em Kashmir, se indispôs comigo porque um de seus discípulos se sentiu atraído para mim. Me maldisse, dizendo que teria dor de estômago e teria que ir embora em três dias. E aconteceu assim. Seu Mestre não pode me ajudar?”. A Santa mãe disse: “Esse é o resultado dos poderes psíquicos que o santo adquiriu. Deve aceitar a manifestação de tais poderes. O Mestre acreditava neles. Ele não veio para destruir; aceitava todas as tradições”.
Swami Vivekananda, ainda ressentido, disse que não aceitava mais Sri Ramakrishna. “Filho meu” – lhe disse ela sorrindo – “como você pode fazê-lo? Até a mecha de seu cabelo é sustentada pelas suas mãos!”.
Em 12 de novembro de 1898, a Santa Mãe visitou Belur Math e realizou o culto a Sri Ramakrishna no santuário. Pouco depois Belur Math foi formalmente dedicado e os monges se estabeleceram no lugar.
O QUADRO DOMÉSTICO
A santa mãe fez de Jairambati sua residência de descanso, desde 1897 até 1920, ano de sua morte. Quando vivia ali, especialmente nos últimos anos, muitos devotos próximos e longínquos, visitaram o lugar.