Emerson Berlanda Yoga System

 

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                                                                O NÉCTAR DAS PALAVRAS

DE

SRI RAMAKRISHNA

 

 

(Sri Sri Ramakrishna Kathamrita)

 

 

 

 

por seu discípulo “M

          (Mahendranath Gupta)

 

 

Pergunta — Acho que eu deveria traduzir o Kathamrita para o inglês. Depois você relê o que eu tiver feito. Muitos sadhus e bhaktas, na Índia e no estrangeiro, pediram.

M — Traduzir? Um colegial pode fazer isso (...) traduzir as palavras não basta. (...) Quero que o estilo seja simples e que se tome cuidado com o sentido. Sempre tentei escrever de modo claro, para que até um aluno da sétima série possa compreender. Algumas vezes desenvolvi uma única palavra em toda uma frase. Tentei transmitir as nuances exatas, como as havia ouvido. O Mestre quando falava dava expressão a um sentimento, um sentimento vivo. Foi o que tentei transmitir, usando suas palavras tanto quanto possível. (...) Tentei expressar-me numa linguagem simples. Se ignorarmos a intenção com a qual ele falava, o sentido poderá transformar-se completamente.

                                   (Sri Ma Darshan, vol. 3)

 

INTRODUÇÃO

De todos os mestres espirituais hindus dos últimos séculos, Ramakrishna é talvez o mais conhecido no Ocidente, graças ao trabalho de divulgação de seu discípulo Vivekananda nos Estados Unidos e na Inglaterra, continuado por outros grandes discípulos da primeira e depois da segunda geração. Na França, sua fama se deve às biografias de Ramakrishna e Vivekananda escritas por Romain Rolland em 1929 (biografias admiráveis aliás, e que continuam sendo, provavelmente, os livros mais lidos de um escritor outrora célebre e agora um pouco esquecido). A influência atual do hinduísmo no Ocidente não precisa ser destacada: basta dar uma olhada na seção "Religiões" de uma grande livraria. O movimento criado por Ramakrishna é uma das forças principais que, na própria Índia, fizeram renascer o vigor e o orgulho de uma religião humilhada pelas agressões estrangeiras — e seu hinduísmo é totalmente isento do amontoado de quinquilharias ocultistas tão difundido aqui. Como ele mesmo o previra, o ensinamento desse pequeno sacerdote que falava um bengali interiorano, estabelecido em um templo às portas da grande metrópole da Índia (Calcutá), espalhou-se pelo mundo inteiro.

Vivekananda e seus sucessores trouxeram a mensagem de Ramakrishna para o Ocidente como uma forma tolerante, universalista, da Vedanta não-dual. No ensinamento de Ramakrishna, o monismo de Shankara torna-se a verdade suprema, para a qual convergem as outras formas religiosas (inclusive o islamismo, o cristianismo, o budismo e as variantes devocionais da religião hindu). Essa apresentação é com certeza atraente para os hindus ou os ocidentais que se voltam para o hinduísmo. Mas não explica a atração que a personalidade de Ramakrishna exerce sobre pessoas que estão nitidamente fora dos círculos religiosos e não têm intenção de adentrá-los, como o próprio Romain Rolland. Os ocidentais vão buscar na Índia as técnicas de meditação (talvez até mesmo os "poderes ocultos da mente humana") e "o conhecimento do Eu". Encontra-se tudo isso em Ramakrishna, que é um yogui e um vedantista. Mas ainda existe algo que nos toca mais profundamente, e faz dele um exemplo universal: um homem que só buscou Deus, e obteve todo o resto por acréscimo. A tendência ocidental é de falar muito de "religião", mas com temor ou vergonha de falar de Deus. Tudo segue essa tendência: crítica bíblica, psicanálise, discussões sobre moral, experiências no limiar da morte, parapsicologia, astrologia, especulações sobre o big bang ou os pré-hominídeos. Ramakrishna, por sua vez, não nos deixa escapatória: só fala de Deus. Por isso é necessário retomar suas próprias palavras, afastando os intermediários. Quem não estiver apto a segui-lo nesse terreno, pelo menos encontrará um interlocutor humanamente cheio de encanto e humor, o que não é tão habitual, sobretudo em se tratando de assuntos religiosos.

Encontra-se aqui a primeira série dos Diálogos de Ramakrishna, recolhidos e publicados em bengali por seu discípulo Mahendranath Gupta1, "M".  Os discípulos diretos atestaram que esse livro extenso (cerca de 900 páginas em bengali e mais de 1000 em inglês) traz as palavras de Ramakrishna com uma exatidão e um frescor que não existem em nenhum outro texto. Contudo, não se pode considerá-lo como uma estenografia, ignorando a personalidade forte de seu autor: modesto, fiel, teimoso, silencioso — às vezes um pouco desajeitado — e em geral notável escritor. Primeiramente, ele tomou notas esquemáticas para seu uso pessoal, depois reconstituiu os Diálogos a partir dessas notas, cinco a dez anos após os fatos no que diz respeito ao primeiro volume, e quarenta anos para o último. A organização do texto de M em cinco volumes não é cronológica: cada um deles contém Diálogos de todas as épocas entre março de 1882 e abril de 1886.

Como o ensinamento é sempre o mesmo mas o público muda de um diálogo para outro, o livro se repete muito. Nosso gosto moderno sente-se reconhecido por M ter conservado essas repetições, infinitamente mais vivas do que um conjunto de sentenças. Nisso ele é fiel a Ramakrishna, que não quer nenhuma elegância artificial de oratória e se repete com toda simplicidade. Para ler os Diálogos é preciso paciência, recompensada quando um parábola que se pensava conhecer bem brilha de repente numa cena cheia de vida.

Há duas traduções inglesas dos Diálogos. A primeira (1907), feita pelo próprio M, corresponde no conjunto ao primeiro volume da edição bengali (1902), mas comporta alguns belíssimos Diálogos suplementares. Não é uma simples tradução, porque M acrescentou alguns detalhes e colocou um pouco mais de açúcar. A grande tradução de Swami Nikhilananda (1942) abarca o conjunto dos cinco volumes bengalis, agrupando os Diálogos em capítulos, segundo a ordem cronológica (o que facilita as referências, mas acentua as repetições), e omitindo alguns trechos considerados “sem interesse para o leitor ocidental” — principalmente os comentários pessoais de M. Quanto a mim, ao contrário, preferi interessar-me pela personalidade de M, e acho esses trechos bonitos e reveladores. Ocorreu-me por vezes resumir um pouco (as longas sessões de kirtan2 por exemplo), mas sem suprimir nada.

No texto bengali, cada diálogo é dividido em seções numeradas, depois em breves subseções com um título que descreve o conteúdo. Em minha tradução, coloquei no início de cada diálogo o número do capítulo correspondente na edição bengali e o do capítulo da tradução de Swami Nikhilananda; mantive os números de seções, úteis para as referências, mas suprimi as subseções. Os números contidos nas notas de rodapé também dão indicações cômodas. Como este livro não se destina a especialistas, há muitas notas, para indicar trechos ligeiramente abreviados ou modificados, explicar uma citação, informar sobre esse ou aquele personagem. Quando uma parábola importante é repetida, uma nota remete ao seu aparecimento anterior.

O texto traduzido compreende os Diálogos do primeiro volume da edição bengali (exceto o último, relacionado aos discípulos após a morte do Mestre), e quatro Diálogos suplementares que aparecem na tradução de M. Não respeitei inteiramente a ordem cronológica: alguns Diálogos especialmente belos e completos foram colocados no início, formando de certo modo um pequeno livro dentro do grande; lendo-os, ter-se-á uma idéia bastante exata do ensinamento de Ramakrishna, e da atmosfera que o envolve. Certamente uma tradução integral seria desejável, pois os volumes que se seguem também trazem Diálogos notáveis.

Como os Diálogos descrevem sobretudo encontros públicos, seria preciso completá-los com o conjunto dos testemunhos sobre as instruções dadas em particular, especialmente aos discípulos monásticos — pelo menos aquilo que pôde ser contado sem desvelar o segredo das almas. Paralelamente aos Diálogos, essas lembranças formam uma literatura mais dispersa, de onde Swami Chetanananda retirou e traduziu para o inglês uma coletânea publicada com o título Ramakrishna As We Saw Him. Ver também seu outro livro, They Lived With God, onde se encontram indicações sobre certos discípulos que permanecem mudos nos Diálogos, ou nem sequer aparecem, como o santo discípulo leigo Durgacharan Nag.

Tudo isso abarca apenas os quatro últimos anos (1882-1886) da vida de Ramakrishna. Para os anos anteriores, a fonte principal é a grande biografia escrita por Swami Saradananda (Sri Ramakrishna - The Great Master), que reuniu as palavras do Mestre relacionadas ao seu passado e os testemunhos dos companheiros de juventude de Ramakrishna ainda vivos. É difícil para um não-hindu sentir-se à vontade nesse contexto, pois é também um tratado apologético que justifica cada detalhe da vida de Ramakrishna com citações das Escrituras.

Embora esses acontecimentos estejam próximos no tempo e as testemunhas sejam muitas vezes pessoas cultas, até mesmo céticas, e de uma sinceridade evidente, uma parte desses escritos pertence ao gênero hagiográfico, e saber onde isso termina supõe uma decisão arbitrária entre o que é “possível” e o que não é. Poderia ser de outro modo? Seria possível abordar objetivamente uma personalidade como a de Ramakrishna? As coisas já eram assim quando ele estava em vida. Ramakrishna suscitou também a desconfiança e a hostilidade. As pessoas saíam dizendo a seu respeito palavras venenosas, contra as quais os discípulos reagiam fortemente: ele era o “brâmane louco” de Dakshineswar, um “ladrão de crianças”, ou um simples charlatão que fingia o êxtase. O leitor encontrará aqui motivos para reagir segundo seu próprio temperamento.

Os Diálogos representam apenas uma parte das lembranças acumuladas por M em suas anotações, feitas sob uma forma impossível de ser usada por outra pessoa que não ele mesmo: breves indicações para a memória, marcando os Diálogos aqui e ali. Durante os últimos anos da vida de M, um monge da ordem  Ramakrishna que se apegara a ele e o considerava como seu guru, Swami Nityatmananda, escreveu em bengali um Kathamrita em segundo grau intitulado Sri Ma Darshan, em dezesseis volumes de tamanho médio. Ele mostra a veneração que rodeia M, numa época em que este era um dos últimos discípulos sobreviventes, o uso quase litúrgico do Kathamrita para leitura em voz alta e cantos para acompanhamento, e também coleta lembranças preciosas ou explicações que não haviam entrado no livro dos Diálogos.

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Para um leitor ocidental, a leitura dos Diálogos apresenta obstáculos que procurei atenuar, sem com isso lesar o texto.

Eliminei expressões devocionais (tais como “homem-deus” etc.) que devem ser reservadas ao público íntimo, deixando a cada qual a liberdade de repor as suas próprias. Tudo já começa pela capa: geralmente o livro é chamado em inglês The Gospel of Sri Ramakrishna, que é o título da tradução inglesa de M, e não o do original bengali4, e parece-me que chamá-lo “evangelho” provoca num ocidental uma reação que, positiva ou negativa, é inoportuna.

A seguir, para destacar o fato de que os personagens pertencem à Índia Moderna, e não a um mundo mítico (mesmo que ambos se encontrem), adotei uma atitude flexível na tradução dos nomes próprios, o que exigirá do leitor um pouco de esforço. Antes de mais nada, a pronúncia sânscrita, com todos os seus a, não é mais a das línguas modernas: escreve-se Shiva, Rama, mas pronuncia-se Shiv, Ram (e lamento não ter ousado escrever Ramkrishna). Além do mais, a pronúncia do bengali é bem diferente5: muitos desses a tornam-se o, os v tornam-se b, os s transformam-se em sh... Escrevi à bengali os nomes de pessoas vivas: Noren, Keshob, Bijoy, Biddashagor. Chamaríamos um italiano “Ludovicus” ao invés de Luigi? Mas fazê-lo sistematicamente complicaria demasiado as referências (nos títulos em particular), e por vezes o leitor terá que reconhecer um mesmo nome sob a forma bengali e a forma sânscrita. Os nomes clássicos são deixados na forma sânscrita (sem nenhuma pretensão científica na transcrição), e a maioria dos nomes próprios já familiares aos leitores de Romain Rolland aparecem também sem alteração (Dakshineswar, Brahmosamaj, Tagore).

Nos primeiros Diálogos, evitei os termos técnicos da filosofia hindu. Usei palavras ocidentais aproximadas para descrever as atitudes religiosas indianas. Os termos técnicos sânscritos, os únicos totalmente precisos, são depois introduzidos pouco a pouco. A palavra “devoto”, que retorna incessantemente, tem o sentido antigo e forte de ligação com Deus, sem a nuance de hipocrisia proveniente de Tartufo, nem a sentimentalidade insípida do século XIX; ela traduz, pelo menos nos primeiros Diálogos, a palavra bhakta, que designa uma pessoa que busca Deus pelo caminho do amor. Depois deixei essa palavra no texto. O mesmo ocorre com a palavra jñani (pronunciada djñani), difícil de traduzir, pois designa uma pessoa que busca Deus sob a forma do Uno, pela introspecção e pela discriminação do real e do irreal, e isso não existe entre nós. Nos primeiros Diálogos eu a traduzi por “vedantista”, ou por uma perífrase, depois deixei-a no texto. E o mesmo para as palavras-chave da Vedanta: Brahman é traduzido inicialmente por Uno, Absoluto; Atman por Alma Universal, o Ser, com maiúsculas. Essas palavras não são inteiramente apropriadas, mas o termo original é geralmente colocado entre parênteses. Mais tarde, Brahman e Atman são deixados no texto.

A palavra yogui é por demais conhecida para ser traduzida, mas não se deve compreendê-la erradamente: nada a ver com ginástica. Trata-se de raja yoga, ou seja, técnicas visando à concentração da mente, com um acompanhamento físico (controle da respiração) nada espetacular.

A palavra “mundo”, um dos termos fundamentais do hinduísmo, traduz muitas vezes palavras sânscritas ou bengalis, entre elas jagata e samsara. Além dos dois sentidos tradicionais da palavra “mundo” no Ocidente (o sentido comum e o do Evangelho: “vós não sois do mundo”, “o mundo não Te conheceu”), ela comporta na Índia uma dimensão cósmica: o ciclo dos nascimentos e das mortes, o universo inteiro levado pela roda do tempo.

A palavra sannyasin é traduzida por “renunciante”, às vezes “monge, asceta”, e não procurei indicar as nuances com brahmachari, sadhu — esta última sendo tão conhecida que muitas vezes a deixei no texto. Sadhana é traduzida conforme o caso por “ascese, disciplina espiritual, busca”.

A palavra “êxtase” é difícil. Aplica-se por um lado aos “encantamentos” ou “visões” místicas pertencentes às formas devocionais da religião, estados mais ou menos intensos de exaltação com perda mais ou menos completa da consciência externa (bhava, bhava samadhi); é o êxtase que (levando-se em conta a emotividade bengali) faz “cantar e dançar, rir e chorar”, diz Ramakrishna. Mas há também o “grande” êxtase, que corresponde em geral à palavra sânscrita samadhi, que vou deixando cada vez mais no texto no decorrer do livro, e que segundo a Vedanta representa de certo modo um estado “natural” da mente (ou até o único estado natural) sem equivalente explícito nas línguas e culturas ocidentais.

Os Diálogos se misturam com cantos religiosos, difíceis de traduzir, e às vezes de  compreender. Alguns são modernos, outros clássicos, como os célebres cantos de Ramprasad. Felizmente existem duas belas traduções francesas feitas por Michèle Lupsa*. Ramakrishna os conhecia de cor e cantava-os admiravelmente. Aliás, eles estão na própria origem de sua vocação (“Mãe, Ramprasad Te viu, por que não posso Te ver?”), e pode-se dizer que Ramprasad é o primeiro guru de Ramakrishna.

Basta de generalidades. Descobriremos pouco a pouco as múltiplas facetas dessa admirável história.

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ALGUNS TEMAS DOS “DIÁLOGOS”

Os Diálogos inserem-se na vida cotidiana e na vida intelectual da Bengala da década de 1880. Alguns comentários serão úteis para evitar ao leitor um estranhamento superficial, que dificultará a compreensão do texto.

 

Esboço biográfico. Sri Ramakrishna é o nome religioso6 de Gadadhar Chattopadhyay, um brâmane da aldeia de Kamarpukur, de família pobre e muito religiosa. Nascido em 1836, em 1856 instala-se em Dakshineswar, um subúrbio um pouco afastado ao norte de Calcutá, como oficiante do templo de Kali recentemente fundado por uma mulher notável, Rani Rasmani. Esta e sobretudo seu genro Mathur tomarão Ramakrishna sob sua afetuosa proteção durante dez anos (1856-66), entrecortados por longas estadias em sua aldeia natal, onde ele explora todas as formas da mística hindu, de início sozinho, depois em contato com diversos sadhus. Por longos períodos é considerado louco, desprezado pelos empregados do templo e mostrado aos médicos, que felizmente praticam apenas a medicina indiana tradicional. Mas Mathur percebeu sua grandeza espiritual e previne qualquer ameaça à sua liberdade. Para tentar curá-lo, sua mãe o casa em 1859, segundo o costume, com uma criança que ele vai formar pouco a pouco, e que herdará uma parte de sua influência espiritual, aquela que se dirige à Índia tradicional. Ela se chama Sarada Devi, e os discípulos a chamarão (bem mais tarde) “Santa Mãe”.

Em 1861 chega seu primeiro mestre, a “monja brâmane”; depois (por volta de 1864) o segundo, o monge errante Tota Puri, que lhe ensina a Vedanta estrita. Seguem-se alguns anos, durante os quais sua fama espalha-se pelas cercanias de Dakshineswar e para além, em círculos bem tradicionais. Por breves períodos, ele será atraído pelo islamismo (1866) e o cristianismo (1874), e se convencerá de que essas religiões são diferentes caminhos que levam ao mesmo Deus. A multidão de visitantes do templo proporciona-lhe uma larga experiência religiosa e humana. Tendo chegado ao final de sua ascese, a partir de 1873 entra em contato com os grandes personagens da vida intelectual e religiosa de Calcutá. Entre esses um só, porém dos mais célebres, reconhece realmente sua grandeza: Keshav Sen, chefe de uma das ramificações do Brahmosamaj. A partir de seu encontro em 1875, Keshav vai visitá-lo com seus próprios discípulos, e apresenta-o à sociedade culta e parcialmente ocidentalizada de Calcutá, então capital da Índia. Os primeiros discípulos saídos desse meio, homens de idade madura, chegam a ele em 1879-1880. A partir de 1882, são jovens que chegam e entregam-se totalmente a ele. Em 1885, enquanto sua fama se propaga, Ramakrishna é atingido por um câncer na garganta, e morre em agosto de 1886. As últimas testemunhas diretas de sua vida desaparecem na década de 1930, e Romain Rolland pôde ainda corresponder-se com algumas delas, especialmente com Swami Shivananda, então abade da ordem, e com o próprio M.

Talvez seja o fato de ter vivido até à loucura todas as formas extremas da religião que dá ao Ramakrishna da maturidade uma espiritualidade radiosa, equilibrada, onde se harmonizam todos os contrários.

Apesar de toda a sua grandeza religiosa e seus extraordinários dons intelectuais e artísticos, Ramakrishna permanece um homem sem “educação”, falando uma linguagem por vezes trivial e denotando falta de trato com a sociedade. A esse respeito veremos alguns exemplos: às vezes ele fala por um tempo demasiado longo, às vezes seu humor é engraçado mas ferino e outras vezes, ao contrário, seu amor transbordante coloca algum discípulo sobre brasas. São razões a mais para se apreciar Keshav ou Vijay, Naren ou M.

 

O Brahmosamaj. Não se pode compreender os Diálogos sem ter uma idéia desse movimento, muito bem apresentado no livro de Romain Rolland. Fundado em Calcutá pelo grande Ram Mohan Ray, sucedido por Devendranath Tagore, trata-se inicialmente de uma forma indiana das “Luzes” no sentido do século XVIII: um movimento teísta que, do ponto de vista religioso, rejeita o politeísmo, o culto às imagens, mais tarde a infalibilidade dos Vedas e talvez (menos nitidamente) a crença na reencarnação e no karma. Do ponto de vista social, rejeita o sistema de castas, os casamentos de crianças, aceita o casamento de viúvas, promove a instrução e a emancipação das mulheres. Embora o Brahmosamaj tenha agido diretamente apenas sobre a sociedade instruída de Bengala, sua influência sobre o desenvolvimento da Índia moderna foi fundamental, e o “espírito do Brahmosamaj” alcançou uma ressonância universal por meio da obra de Rabindranath Tagore ou Satyajit Ray.

O Brahmosamaj sofreu duas cisões. O tronco antigo, Adi Samaj, que permaneceu sob a direção de Devendranath Tagore, não aparece muito nos Diálogos. O cisma de 1866 afastou os elementos mais ativos, sob o comando de Keshav Sen, um homem extremamente sedutor, o ídolo da juventude de Calcutá. Mas Keshav acredita-se diretamente guiado por Deus, e em 1878 escandaliza sua igreja ao casar sua filha com o filho de um marajá, segundo um ritual “idólatra” e sem respeitar a idade mínima fixada pelos estatutos. Um grupo importante afasta-se então e funda o Sadharan Samaj, com Shivanath Shastri e Vijaykrishna Goswami, que serão encontrados aqui. Keshav proclama em 1880 a Nova Dispensação, mais sincretista do que fiel ao teísmo original, lança sua igreja num turbilhão de atividades e morre esgotado em 1883. Seu movimento, muito dividido, passa então para o segundo plano. Essas querelas não parecem afetar muito os fiéis, que procuram antes de mais nada um equilíbrio entre sua religiosidade tradicional e as idéias científicas ou democráticas importadas da Europa.

O Brahmosamaj é um movimento complexo, com aspectos racionalistas e também religiosos. Admiravelmente, uma espécie de simbiose (nascida do afeto profundo que unia Ramakrishna a Keshav Sen e Vijay Goswami) vai ligar por um tempo esses grupos reformadores, excluídos da sociedade ortodoxa, ao hindu mais que tradicional que é Ramakrishna. É a propaganda do Brahmosamaj e sua influência nas escolas que vão trazer a Ramakrishna a juventude de Calcutá, e com esta a maior parte de seus grandes discípulos. Após a morte de Ramakrishna, o trabalho de difusão de Vivekananda trará de volta ao hinduísmo uma parte das elites, e deixará amargura entre os brahmos.

 

O avatar. O autor dos Diálogos é um indiano parcialmente ocidentalizado, um professor, e um homem que gosta de escrever e o faz muito bem. É também um convertido, e que procura converter. Não ficaremos sabendo por ele o que na personalidade do Mestre pode afastar certos ouvintes: por que Sidhu (o parente de M que o acompanha na primeira visita) ou o grande pandit Vidyasagar não foram conquistados como M? Nada saberemos. Nos primeiros Diálogos, os interlocutores só dizem o que é necessário para situar o ensinamento do Mestre. Suas falas talvez não tenham sido anotadas. Só no final é que encontramos verdadeiras conversas com várias vozes, obras-primas de espontaneidade e humor.

Há outra coisa, mais difícil de compreender para um ocidental: M propõe-se convencer o leitor (hindu em primeiro lugar) de que Sri Ramakrishna é um avatar, palavra que eu não quis traduzir  (“encarnação” cria uma confusão grave com a noção cristã homônima). Seria antes uma “descida” ou “visita” do divino, pois trata-se de um fenômeno repetido: Deus, ou mais exatamente seu aspecto benevolente de Vishnu, encarna-se “cada vez que a religião declina”, diz Krishna no Bhagavad Guita. Ramakrishna, apesar de seu não-sectarismo e seu respeito pelas outras religiões, é um hindu totalmente ortodoxo, que aceita como realidade as narrativas das Escrituras e das grandes epopéias. Em todo esse extenso livro, não se encontrará uma crítica sequer aos costumes tradicionais — que no entanto Ramakrishna infringiu em sua juventude, tirando seu cordão de brâmane, varrendo com seus cabelos a casa de um intocável. Nesse contexto puramente hindu, a noção de avatar perde seu caráter exorbitante. Aliás, o hinduísmo admite, ao lado dos avatares maiores (Krishna, Rama, Buddha ou Jesus para muitos fiéis; Chaitanya para os vaishnavas bengalis), a possibilidade de avatares parciais, “descidas” em uma mesma pessoa de um ou vários deuses menores.

A última personalidade geralmente reconhecida como “trazendo” Deus dessa forma é Chaitanya (nascido por volta de 1486), o místico exaltado que renovou o culto de Krishna em Bengala e na vizinha Orissa, em torno do grande santuário de Puri. Foram analogias entre a personalidade de Chaitanya e a de Ramakrishna que levaram um colégio de pandits vishnuístas7 a atribuir a este último a qualificação de avatar. Tal idéia ganhará força mais tarde sob a influência da devoção apaixonada de Girish, escritor, ator e boêmio, e sobretudo durante a última doença de Ramakrishna.

O movimento que levou o hinduísmo a “divinizar” Chaitanya e Ramakrishna será talvez melhor compreendido se o compararmos à rápida canonização de São Francisco de Assis, o sannyasin cristão, que possui numerosas características exteriores em comum com eles: conheceu o êxtase, amou a beleza da natureza, a música e a poesia, atraiu as pessoas simples e deu vida nova a uma religião que estava a ponto de ressequir-se.

A exaltação do guru é o primeiro dever dos discípulos, mas o que o próprio Ramakrishna pensava disso tudo? Li um artigo de cristãos indianos afirmando que Ramakrishna havia sido deificado por seus discípulos sem ter absolutamente contribuído para isso. Essa é também a opinião de Shivanath Shastri, ou do doutor Sarkar, personagens que encontraremos neste livro. Tal ponto de vista pode apoiar-se na simplicidade infantil de Ramakrishna, e na sua absoluta falta de vaidade (já que a palavra humildade não convém a alguém tão expansivo), num país onde se mostra tão facilmente a arrogância, e especialmente a arrogância religiosa. Mas, em sentido contrário, temos uma grande quantidade de frases ditas aos discípulos mais íntimos. A realidade psicológica, a consciência que Ramakrishna tem de ser “teóforo”*, é indiscutível. Pode-se acrescentar que ele não impõe essa crença a ninguém.

 

Os deuses. Insistiu-se muito no fato de que o hinduísmo tardio não é um verdadeiro politeísmo. Os deuses são formas, aspectos do divino, bem distintos e dotados de personalidade, mas ao mesmo tempo o hindu sente-se livre para adorar esse ou aquele deus como Deus Supremo, sem com isso ofender os outros. Os três grandes deuses sempre mencionados, e dos quais cada um corresponde plenamente ao que chamamos “Deus” com maiúscula, são Vishnu, Shiva e a Mãe. Dito isso, nem a intolerância nem a carolice estão fora do contexto, e os membros das diferentes seitas (vaishnavas, shaivas e shaktas) são perfeitamente capazes de brigar para defender a honra de seus respectivos deuses. Por outro lado, não se pode deixar de lado os deuses menores, e até mesmo o pequeno sobrenatural: fantasmas, demônios que vivem nas árvores. Nem omitir o grande papel da astrologia na vida cotidiana, seja sob a forma anódina de almanaques que mencionam os dias fastos e nefastos, seja sob a forma menos anódina dos horóscopos detalhados consultados por ocasião dos casamentos: por que os hindus do século XIX seriam menos obscurantistas que os ocidentais do século XX?

 

Vishnu, também chamado Hari, Narayana, e mais adorado ainda em suas duas formas de Krishna e Rama, é um deus totalmente benevolente, o preservador do universo, um deus que brinca familiarmente entre os homens e visita-os cada vez que a religião está em declínio. Os vishnuístas são dóceis, vegetarianos, por vezes sectários e limitados. Ramakrishna é de família vishnuísta (sua divindade familiar é Rama, e seu nome Gadadhar designa um aspecto de Vishnu). Os grandes santuários de Vishnu são Gaya (onde o pai de Ramakrishna fez peregrinação antes do nascimento deste e teve um sonho anunciando a nova “descida”) e Puri, na vizinha Orissa, onde Vishnu/Krishna é adorado com o nome de Jagannath, o Senhor do Universo, o qual é ilustrado também pela lembrança de Chaitanya, o grande místico, que renovou a devoção vishnuísta e lhe deu a forma dos kirtans, essas longas sessões de cantos, dança e música religiosa (à maneira do dhikr dos sufis, ou dos “spirituals”), que terminam em exaltação. Os Diálogos dão numerosos exemplos de tais práticas, mais significativas ainda pelo fato de M ser um homem tímido e cheio de respeito humano.

As formas de Vishnu são associadas a figuras femininas da divindade: Rama a Sita, sua esposa, modelo das mulheres fiéis e castas, que compartilha seu exílio na floresta e depois é raptada pelo demônio Ravana, compondo a imagem da dor resignada e graciosa; Krishna a Radha, a amante apaixonada que se consome de desejo e saudade. Por meio do culto de Radha-Krishna, cuja escritura fundamental é o Bhagavata Purana, essa religião moral e pura toca em elementos eróticos, como as esculturas de certos templos, que agitam os ocidentais. Veremos aqui a atitude de Ramakrishna: uma perfeita pureza pessoal, mas não condenação. Deixando-se isso de lado, Vishnu é o mais próximo do “bom Deus” ao qual estamos mais ou menos habituados.

Shiva é uma figura de igual importância, mas menos central na devoção bengali do que na do Sul da Índia, por exemplo. Ele tem outros nomes: Mahadev (“o grande Deus”), Hara, Vishvanath. Seu santuário principal fica em Benares. Shiva situa-se no horizonte da religião de Bengala, assim como o Himalaya limita as planícies: é um deus intenso, abrupto, extático, profundo, a imagem mais próxima que ainda se possa dar do Absoluto sem imagens. Sua projeção humana são os ascetas de cabelos desgrenhados e olhar assustador, nus, a não ser por um pano minúsculo, silenciosos, carregando o tridente, vagando sem jamais parar. É ao mesmo tempo um deus destruidor, violento, um deus libertador. Seu nome queima o que é impuro, penetra vigorosamente toda obscuridade, arranca-nos dela como o cirurgião que nos arranca da doença, se necessário sacrificando alguns membros. Seu culto é despojado: sem imagem, um pilar com uma semi-esfera de pedra negra — os ocidentais baixam os olhos para cochichar que se trata de um símbolo fálico, e certamente esse Deus é uma figura complexa; mas a imagem do lingam é antes a da interioridade: um objeto duro, redondo e fechado, no qual se bate até que, pela graça, a porta se abra.

Shiva é associado a outras figuras divinas: sua esposa quase sempre é uma deusa do Himalaya, Uma, Parvati, e entre seus filhos encontra-se o popular deus Ganesha com cabeça de elefante e barriga grande, alvo favorito dos missionários, divindade amável e inteligente à qual se pode recorrer para questões corriqueiras, mas que não será mencionada aqui. Em Bengala, Shiva se tornou freqüentemente um deus passivo, extático, sobre cujo peito dança Kali, a Mãe — assim como as chamas de uma lareira dançam sobre as achas imóveis.

 

A Mãe: este será seu nome principal, além de Kali e Durga, mas geralmente ela absorve em si todas as formas femininas. Desempenha aqui o papel primordial, pois é antes de mais nada o Deus de Ramakrishna, sua Mãe, e as últimas palavras que ele pronunciará, repetindo-as três vezes, serão o nome de Kali. O culto de Kali é outro alvo favorito dos missionários, mas eles não são os únicos8 : às vezes os vishnuístas rejeitam-na com violência. Talvez se trate de uma divindade mais antiga que os Ários em solo indiano, a única do hinduísmo que ainda aceita sacrifícios sangrentos, a única cujos seguidores toleram ou buscam a embriaguez do álcool. É representada na cor negra, dançando sobre o corpo de Shiva, com quatro braços, dois dos quais destroem e dois protegem. Seu rosto é assustador: língua vermelha estirada, dois olhos grandes e fascinantes, e na testa um terceiro olho vertical, o da sabedoria. Ela freqüenta os lugares de cremação, o uivo dos chacais a anuncia, e os thugs lhe ofereciam sacrifícios humanos até recentemente. Não é muito distinta de Durga, forma mais calma porém igualmente poderosa, sentada sobre um leão, armada com uma lança, grande destruidora de demônios. Por isso, a Mãe é ao mesmo tempo todas as divindades femininas: Lakshmi, a beleza e a riqueza; Sarasvati, a ciência; Annapurna, a que dá o alimento. Enquanto o hinduísmo clássico havia dado três nomes divinos à criação, à preservação e à destruição, (o papel de criador estando associado à figura secundária de Brahma, e o hinduísmo não tendo diabo), esses três papéis são desempenhados pela Mãe. Ela é a rainha da região de Bengala, onde a maior festa do ano é o Durga Puja. Ramakrishna conhece de cor os cantos de Ramprasad e Kamalakanta dedicados à Mãe.

Que um deus desses —talvez o mais distante de nós entre os deuses da Índia — possa ser o Deus predileto do terno Ramakrishna é um dos maiores paradoxos dessa história. Sentimo-nos projetados para muito longe do universo bíblico, nas trevas que rodeiam os ídolos de Edom e Moab. No entanto, o cerne da espiritualidade de Ramakrishna está aqui. Ele conseguirá converter para Kali o seu próprio mestre de Vedanta, Tota Puri, e sobretudo o super-racionalista Naren (Vivekananda), não sem grandes resistências. De fato, podemos compreender Kali abstratamente como símbolo da Natureza, generosa e devastadora. Mas como explicar uma profunda relação de amor pessoal com a Natureza?

 

A Vedanta. Por trás das imagens dos deuses, existe ainda o Deus Impessoal dos Upanishads: Brahman, o Absoluto, o Uno, a Substância, o Ser — termos filosóficos que não designam objetos de discussão, mas sim um oceano no qual, ao preço de um esforço sobre-humano, alguns homens conseguem mergulhar, embora raramente conservem a vida do corpo e a faculdade de comunicar. A essência última da Vedanta, isto é, a advaita (não-dual), baseada nos grandes Upanishads e ensinada por Shankaracharya, é de fato que esse Uno é a única realidade e que a alma humana saída do Uno pode “realizar” que tudo o que não é o Uno é mera aparência, e pode reintegrar o Uno, ao preço de uma dura ascese de desapego, rejeição do corpo e do eu. O próprio Ramakrishna fez essa experiência e passou seis meses num êxtase de total unidade. É muito excepcional, pois em geral o corpo não sobrevive nesse estado mais do que alguns dias.

Freqüentemente essas teorias paradoxais fascinam os ocidentais, pelo seu caráter totalmente “laico”, ou seu sabor levemente blasfematório (“eu sou Deus”). Aqui também estamos longe da Bíblia, mas é algo mais familiar: lembra-nos coisas vistas em Plotino, Eckhart ou Espinoza. É claro que muitos indianos gostam de discutir essas coisas como teólogos, sem praticá-las: ver o divertido personagem que é Hazra, e a atitude de Ramakrishna a respeito.

O sentimento de que “tudo é Deus” interpenetra muito profundamente o hinduísmo, e nós o encontraremos presente em cada página dos Diálogos. A rótulo ocidental “panteísmo” não lhe cabe, pois aplica-se em geral a um Deus filosófico muito abstrato, enquanto aqui o Deus que interpenetra tudo continua sendo (permanece?) o da religião. A analogia mais forte talvez seja a da espiritualidade russa, tão plena do sentimento da natureza.

 

A “salvação”. Seja como for, o hinduísmo difere das três religiões originadas da Bíblia pelo fato de que nele a salvação não é concebida como uma continuação da vida pessoal terrena num mundo sem declínio, na presença de Deus. A salvação consiste em alcançar ainda na terra o estado de “liberto-vivo”, o mesmo em que vive Ramakrishna. Uma tal libertação é definitiva, mesmo que o corpo prossiga sua trajetória queimando o karma residual. Portanto, a mística não é de modo algum regulada por uma ortodoxia ciosa; ao contrário, trata-se de um caminho largo e balizado, que coloca como meta da religião para todos os fiéis uma experiência pessoal de Deus — o que em geral se chama “realizar Deus”. Na verdade, a salvação no momento da morte não perde todos os seus direitos: para quem morre em Benares, por exemplo, Shiva murmura ao ouvido o mantra libertador. Os devotos também pedem para ser carregados para morrer à beira do Ganges com os pés na água santa — mas nesse caso não se trata exatamente de uma libertação propriamente dita, e sim de uma orientação dada ao futuro nascimento pelos últimos pensamentos daquele que vai morrer. Alguns devotos de Ramakrishna rogam-lhe que venha tomá-los pela mão no momento de sua morte, para levá-los além das sombras. Os maiores nem sequer desejam mais a libertação. Simplesmente esperam reunir-se ao Mestre em seu “lugar” próprio e voltar à terra com ele em sua próxima descida, a fim de participar de seu Jogo.

 

Outras religiões. O quarto de Ramakrishna no templo de Dakshineswar recebe a visita de muçulmanos, cristãos e sikhs*. Cada um deles pode encontrar ali as imagens de sua própria religião. A imagem de Cristo caminhando sobre as águas e salvando Pedro está pendurada na parede. Posteriormente, a Ordem Ramakrishna será fundada numa noite de Natal, e Vivekananda traduzirá para o bengali a Imitação de Cristo. Todavia, percebe-se nos Diálogos uma certa hostilidade para com o cristianismo oficial dos mestres ingleses, intolerante e agressivo. No livro de M, leitor assíduo dos Evangelhos, sugere-se a idéia de que Ramakrishna é o Cristo, e de que aqueles que o conheceram podem portanto  compreender o Evangelho melhor do que os cristãos. Uma tal pretensão pode irritar um ocidental e os trechos em questão desapareceram da tradução de Swami Nikhilananda.

Entretanto, é necessário evitar uma reação demasiado sumária. Qualquer comparação direta entre Cristo e Ramakrishna seria arriscada, mas a experiência vivida por M e os outros discípulos de Ramakrishna oferece analogias de ordem psicológica para se compreender o que os discípulos de Jesus vivenciaram. Uns e outros sentiram a admiração, o sentimento do nunca visto, a passagem da familiaridade de todos os dias ao espanto diante de uma grandeza descoberta de repente. E nesse aspecto, a leitura dos Diálogos põe em relevo a do Evangelho, tirando as camadas das tintas hollywoodianas (ou da má literatura) que recobrem a imagem de Cristo.

 

O homem. Se o hinduísmo pode parecer terrivelmente complexo a respeito de Deus, em contrapartida é muito sóbrio em suas concepções do universo e do homem, e sua aparência “científica” nessa questão contribuiu muito para sua recente difusão no Ocidente. O universo é cíclico, sem começo nem fim. Sua evolução entre as criações e as dissoluções sucessivas é regida por forças impessoais, a cadeia impiedosa das causas e efeitos, o karma. Do mesmo modo como as espécies químicas não podem aniquilar-se, mas somente transformar-se e recombinar-se, as ações dos homens não podem extinguir-se antes de produzir seu fruto, e conseqüentemente a alma que engendrou essas ações deve reencarnar  até escoar o conteúdo dessa pesada herança — e para isso precisa evitar aumentá-la mais, parando pouco a pouco de produzir ação. Trata-se de um materialismo espiritual, que se pode comparar com as leis físicas de conservação: perenidade dos elementos químicos ou conservação da energia. Com freqüência isso seduz as mentes “positivas” em que nos tornamos.

Todavia, quando se olha esse sistema grandioso mais de perto, vê-se que é muito menos “científico” em seus detalhes. Algo deve transmigrar, mas o que exatamente? Será de fato a minha pessoa? Daí as antigas críticas budistas que ainda abalavam Vivekananda. E como se faz essa transmigração? A mitologia propõe o julgamento de Yama, que orienta as almas para infernos ou paraísos temporários, ou dirige-as para uma nova matriz, mas isso não é nem mais nem menos científico do que os julgamentos finais no pórtico das catedrais.

Dessa forma o hinduísmo atribui o destino feliz ou infeliz de determinada pessoa ao seu karma, às vezes nos menores detalhes, e sem explicar por meio de qual mecanismo ocorre essa retribuição. Esse determinismo pode acarretar uma certa indiferença: se tudo o que acontece ao meu vizinho é merecido, é melhor para ele que eu o deixe consumir seu karma em paz sem me meter em sua vida. Essa atitude aparece até certo ponto em Ramakrishna, mas é compensada por sua ardente compaixão, sua humanidade sempre a postos, um interesse pelos seres humanos que o faz ensinar por horas a fio, e um amor mais que maternal por seus discípulos.

A idéia de karma não é outra coisa senão a de causalidade: o “eu” dos seres vivos é de certa forma um átomo de causalidade, uma unidade de conta. As forças que agem sobre (e por) essas unidades são elas também descritas de maneira puramente objetiva, sem julgamento moral, conforme os “três modos” (gunas) da filosofia Samkhya, que veremos mencionados a todo instante: sattva, rajas e tamas. O primeiro manifesta-se pelo que a religião e a moral ocidentais chamam de bem: doçura, compaixão, sobriedade, altruísmo. O terceiro pelo que chamaríamos de mal: obscuridade, preguiça, entrega ao vício, violência, destruição. Mas não estamos habituados a colocar o segundo modo no mesmo plano: trata-se de um modo brilhante, que se manifesta com uma demonstração de poder, orgulho, atividade. Como se fosse o vermelho, entre o branco e o preto. É ao mesmo tempo construtor (pelo orgulho) e destruidor (pela agressividade). Nenhuma reprovação é feita aos dois últimos modos: eles são necessários à marcha do universo. Contudo, a inteligência pertence ao modo sattva, e é preciso cultivá-lo para deixar de ser um escravo da máquina. Ou melhor ainda: aquele que (por suas tendências inatas) tiver sattva como modo dominante, poderá encontrar o meio de escapar da engrenagem.

Há uma Escritura hindu que foge a esse universo mecânico, trazendo de volta Deus Pessoal e a graça: é o Bhagavad Guita. O Deus que aqui se manifesta possui todos os poderes, inclusive o de “suspender” o karma e dar o conhecimento e a libertação. Não é porém um “bom Deus” no nosso sentido, pois permanece responsável pela destruição, dialeticamente inseparável da criação. A Índia não conhece o diabo, e não atribui conteúdo metafísico ao pecado: como em Platão, o mal é cometido por ignorância — ou melhor, o mal e o bem são, com valor desigual, os dois modos da ignorância, tornando-se esta a própria raiz da criação, o processo pelo qual Deus faz pensar que existe outra coisa além dEle mesmo.

Diante de uma tal visão do universo, bem sombria em verdade, o hinduísmo propõe três condutas que, em níveis diferentes, permanecem compatíveis. A primeira é a busca da libertação pelo conhecimento. Esse procedimento é semelhante ao do budismo: trata-se de saber finalmente quem está aprisionado, de perceber que não sou eu, e que as forças cegas prosseguem com o seu jogo sem que isso me diga respeito. A segunda consiste em tomar as rédeas da prisão, mesmo que provisoriamente: os hindus sempre acreditaram que a ascese permite acumular poder, um poder até mais forte que o dos deuses. A terceira é a atitude que chamaríamos realmente religiosa: aceitar o mundo como o Jogo divino, reconhecer que sob suas leis cegas esconde-se a graça e tornar-se como uma folha levada pelo vento. Veremos a coexistência dessas três atitudes. Em relação à sexualidade, por exemplo. Nenhuma condenação moral é feita à sexualidade em si mesma, e o pudor extremo do judaísmo e do cristianismo não pertence à cultura indiana. No entanto, a castidade é expressamente recomendada como meio de acumular força, o que corresponde à segunda atitude.

Seja como for, a atitude hindu pode ser descrita quer como um realismo espiritual admirável, quer como um materialismo espiritual por vezes chocante. Os visitantes de um homem santo freqüentemente vêm para uma espécie de troca econômica: trazer uma oferenda, voltar com um benefício espiritual; livrar-se do karma ruim e conseguir um bom.

Seria isso tão estranho assim para a nossa cultura? Pensemos nas disciplinas, jejuns, cilícios; penitências e indulgências; méritos que se adquirem por sacrifícios, trocados pelo tempo passado no purgatório; e também essa idéia de que uma certa quantidade de mal, de pecado, pode ser redimida por essa ou aquela privação. A forma pode parecer-nos exótica, mas o fundo não o é. Parece-nos que todas as religiões muito antigas, seja qual for sua teologia, acabam por reconstituir toda a gama das atitudes possíveis.

 

Trocas. Quando os pregadores hindus do fim do século XIX souberam da teoria ondulatória da luz, ficaram maravilhados: “A ciência moderna confirma nossa tradição.”  E os teosofistas, por sua vez, inundaram-nos de ondas e todos os tipos de vibrações sutis. Uma troca leve, mas material, produz-se pelo olhar (certos brâmanes comem atrás de uma tela, para não serem vistos por não-brâmanes); os lugares santos estão saturados de boas influências, devido à devoção das multidões de visitantes, etc. A primeira forma de troca praticada por aquele que vem ver um santo consiste simplesmente em olhá-lo, em “obter o seu darshan”, que é uma espécie de impregnação pelo olhar. O mesmo ocorre com a imagem de uma divindade. O que traduzimos como “conhecer Deus” é em realidade “ter o darshan” de Deus, e não há descontinuidade entre esse darshan e o de um homem santo, ou o do Ganges ou o de um lugar santo.

O segundo tipo de troca, mais íntimo, é o contato. A forma usual de saudação a um santo supõe que nos prosternemos diante dele, “tomando a poeira de seus pés”. Isso evoca o contato de dois condutores, que se encontrem por um instante elevados ao mesmo potencial. Através desse contato, o santo pode às vezes assumir certa quantidade do karma de seu visitante; e os discípulos de Ramakrishna, discutindo o câncer que levara seu Mestre, atribuem-no a todo o mal que ele havia tomado para si. Quando o contato toma a forma de um serviço íntimo (não só tocar rapidamente os pés do mestre, mas massagear-lhe as pernas, por exemplo), ele fica infinitamente valorizado.

Terceira forma: a oferenda de alimento. Se o santo aceita o alimento que lhe dou, assume uma pequena dívida para comigo, que pode ser paga de várias maneiras. O alimento pode também ser oferecido a um deus, ficando, por meio do rito, descarregado de seu potencial ruim e carregado com potencial bom, sendo distribuído em seguida ao conjunto dos fiéis sob a forma de prasad, alimento purificado e enriquecido pela graça do deus ou do mestre espiritual. Mais uma vez aqui, o contato valoriza a oferenda de alimento: se o discípulo recebe o prasad na boca, da própria mão do mestre, como um filho o receberia de sua mãe — ou, mais incrível ainda, se o mestre se deixa alimentar pelo discípulo — o efeito espiritual é bem mais intenso. Da mesma forma, se o mestre aceita donativos em dinheiro isso o liga àquele que oferece, obrigando-o a assumir um pouco de sua carga.

Quarta forma: a iniciação. Trata-se quase sempre da transmissão feita por um mestre espiritual, ao ouvido de seu discípulo, de uma fórmula carregada de poder, um mantra — em geral uma espécie de oração jaculatória, consistindo em um ou mais nomes de Deus, e que deverá ser repetida ou contemplada pelo discípulo. Esse rito instaura também uma responsabilidade, uma verdadeira filiação espiritual entre mestre e discípulo.

O mau karma pode ser deslocado, mas não destruído, e muitas vezes caberá ao mestre pagar a dívida do discípulo. Quer por meio dos méritos adquiridos por ascese, quer sofrendo em seu lugar — e ficamos admirados por encontrar aqui, nesse universo mental tão distante, um dos temas da santidade cristã.

Poder-se-á constatar neste livro a que ponto essas trocas impregnam o relacionamento entre Ramakrishna e seus discípulos — e o quão livremente Ramakrishna se comporta com eles. Impossível classificar seu comportamento num esquema. Mas fica claro que ele dá uma grande importância a cada um deles. Jamais aceita a menor soma de dinheiro de quem quer que seja, e muito raramente dá  a iniciação formal. Toma muito cuidado com a comida, sobretudo em relação a quem a dá; quando aceita, primeiro oferece-a mentalmente a Deus, a fim de transformá-la em prasad, e então distribui uma parte para as pessoas presentes. Em relação ao contato simples em que o discípulo toca os pés do mestre, há momentos em que o evita e momentos em que se acha no meio de uma multidão e aceita-o da parte de desconhecidos. Uma coisa é certa: a felicidade que ele proporciona a seus discípulos aceitando pequenos favores, pedindo-lhes para comprar-lhe um pequeno objeto, aceitando guloseimas.

 

Puro e impuro. O contato e a divisão de alimentos com o mestre trazem um conteúdo positivo tão forte quanto o conteúdo violentamente negativo que têm na vida corriqueira. Aqui o materialismo espiritual funciona em sentido inverso: uma sujidade que nos parece material (o contato da pele com algo sujo) penetra sutilmente até a alma. O que é sujo? Todas as coisas usadas, rejeitadas, impregnadas das “vibrações” de sabe-se lá quem: excrementos, restos de alimento, louça não lavada, cabelos. E depois tudo o que se acha em contato com isso: os pés e os sapatos que tocam a terra suja, os homens que lidam com restos: lixeiros, varredores, barbeiros.

A analogia com a preocupação pela pureza entre os fariseus é notória, mas a Índia tem contra a sujeira um remédio que Israel não possuía: a água do Ganges. O Mestre mantém uma jarra dessa água em seu quarto, e quando alguém realmente sujo passou por ali — não um homem sem casta, mas um homem rico com seu cheiro de dinheiro, ou carregando um jornal* — faz-se uma aspersão no lugar onde ele se sentou.

 

As mulheres. Há poucas mulheres nos Diálogos. É que a província de Bengala esteve por muito tempo sob a influência muçulmana, e homens e mulheres ali ficam estritamente separados, pelo menos nas castas altas. As mulheres da boa sociedade quase não saem dos apartamentos interiores e circulam em carros fechados. O público dos Diálogos parece ser composto exclusivamente por homens. Contudo, muitas vezes grupos de mulheres vêm receber o darshan de Ramakrishna. Depois de um momento de conversa, Ramakrishna manda-as visitar sua própria esposa, que vive (em condições de extremo desconforto) num pequeno pavilhão do templo. Existe ali, ao redor da “Santa Mãe” (muito jovem ainda e extremamente tímida) um grupo de mulheres de personalidade vigorosa, algumas das quais têm uma coragem e uma ousadia que muitos homens poderiam invejar. Por outro lado, as mulheres têm em relação aos homens a superioridade de fazer a comida, o que dá ao santo homem indiano um meio de lhes comunicar sua graça de modo muito pessoal, que consiste em comer essa comida e apreciá-la. Quando Ramakrishna vai visitar a família de um discípulo em Calcutá, a reunião geralmente ocorre a portas abertas, e as mulheres ficam à distância nos apartamentos interiores, mas o Mestre vai visitá-las e ali come alguma coisa. Podemos lembrar aqui a reflexão engraçada da pobre viúva Gopaler Ma (aquela que via o menino Krishna), por ocasião de seus primeiros encontros com o Mestre: “Que coisa esse sadhu que só pensa em comer!”

Durante os quatro anos descritos pelos Diálogos, fica claro que Ramakrishna tem uma grande reserva em relação às mulheres, sem contudo jamais mostrar uma atitude artificial ou perturbada. Sempre adverte seus discípulos (Nityagopal e às vezes Naren) em relação às devotas demasiado maternais: “um sannyasin deve dar o exemplo da renúncia; um sannyasin não olha uma mulher, nem mesmo em pintura”. Essa é a regra geral. Mas como sempre, em se tratando de Ramakrishna, ela sofre exceções: por sua devoção, Binodini, uma atriz do teatro de Girish, será levada a disfarçar-se de gentleman inglês, enganando a vigilância dos discípulos e entrando no quarto de Ramakrishna enfermo em Shyampukur, para pousar a testa nos pés do Mestre, maravilhado com sua astúcia. Ótima oportunidade para risadas10!

 

Uma civilização. A época de Ramakrishna é o apogeu da civilização anglo-indiana. Calcutá é então a capital da Índia inglesa. A cruel revolta dos Cipayas11 ainda está próxima (1857) e o poder inglês transformou-se em Império em 1877. Ninguém duvida de sua perenidade, nenhuma oposição ousa levantar a cabeça, e a esperança de vê-lo comportar-se segundo os princípios generosos que ele anuncia ainda não se esvaneceu. Reinam a ordem e a paz, a capital embeleza-se, a burguesia bengali se enriquece e participa da administração inglesa, em níveis subalternos mas não humilhantes, e espera maiores regalias. A juventude instrui-se avidamente, primeiro na terra natal e depois na Inglaterra. Os antigos rajás ou proprietários de terras perdem a influência política, mas conservam suas riquezas, investidas em parte em residências suntuosas — sobretudo aquelas “garden-houses” onde se desenrola uma parte dos Diálogos — e na manutenção de uma vida artesanal e artística intensa. Como pano de fundo, há um desastre na zona rural: a exploração do solo pelas culturas industriais, as devastações do paludismo. Aproximam-se os tempos em que as esperanças insatisfeitas vão causar a agitação política, as primeiras revoltas, a divisão da província em 1905, e a transferência da capital para Delhi.

Agora o mundo inteiro é atingido pelos fenômenos que afligiam a Bengala de 1880: colonização cultural, dependência política ou econômica, erosão das línguas, dos costumes e das religiões. No seio daquela civilização em rápida evolução, Ramakrishna permanece “impoluto”, como ele mesmo o diz do Absoluto sem atributos. Por detrás de seu frescor infantil, de sua inteligência e de sua vivacidade, as multidões que acorrem a Dakshineswar podem vislumbrar a realidade de alguma outra coisa. Conhecer Ramakrishna alarga o campo do possível.

 

C.M.

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AGRADECIMENTOS. A Kumari, depositária dos comentários de Swami Ritajananda sobre o Kathamrita, pelas inúmeras observações sobre a exatidão e o estilo desta tradução; a Mira e Rakhal, pelo incentivo e por toda uma documentação referente ao Brahmosamaj, Shivanath Shastri e sobretudo “M”, a qual me permitiu avaliar o quanto este último se tornara uma figura religiosa imponente; a Swami Amarananda, por sua gentileza e paciência em esclarecer numerosos pontos obscuros do livro, que só um religioso e um bengali podia compreender perfeitamente; finalmente, a Swami Chetanananda, pela autorização para reproduzir o testemunho de Kshirod Chandra Sen.

 

 

 

 

 

UM TESTEMUNHO

 

No livro de Swami Chetanananda Sri Ramakrishna As We Saw Him figura o testemunho de Kshirod Chandra Sen, que foi ver Ramakrishna uma única vez com a idade de dezoito anos1, em 1879 (numa época em que Ramakrishna ainda era pouco conhecido), com um grupo de jovens do Brahmosamaj de Keshav. Esse testemunho, publicado em 1932 (em inglês) na Prabudha Bharata, a revista da Ordem Ramakrishna, é extremamente precioso. Antes de mais nada, a lembrança de uma visita única tem mais frescor do que uma síntese entre encontros múltiplos. E depois, esse rapaz da cidade, educado à inglesa, vê com olhos bem abertos o mundo bizarro dos sadhus. Ele descreve a longa espera do final da tarde em Dakshineswar, onde Ramakrishna (por motivo de êxtase) não pode receber o grupo de adolescentes, e a conversa da noite, pouco animadora. Sua reação, inicialmente negativa, à linguagem por vezes trivial do camponês que era Ramakrishna, ou a comentários um tanto ferinos sobre Keshav e seus discípulos, dá-nos uma outra visão de Ramakrishna, sem o filtro da devoção (e da arte) de M.

Após um mau jantar e uma noite perturbada pelos percevejos e pernilongos, os rapazes, decepcionados, gostariam de atravessar o Ganges e voltar a Calcutá pela outra margem. Mas seu chefe (designado por “C.K.”) faz questão de pedir uma instrução espiritual a Ramakrishna, que havia sido elogiado por Keshav. Essa conversa da manhã deixará em Kshirod uma lembrança inesquecível, que ele descreve a seguir. Para nós também ele parece comunicar algo da presença de Ramakrishna.

 

...Sri Ramakrishna sorriu e disse: “Que ensinamento vocês querem, meus filhos? Sentem-se e digam-me o que vocês querem me perguntar”. Nós nos sentamos, e Sri Ramakrishna sentou-se conosco. C.K. fez perguntas e Sri Ramakrishna respondeu. Mas antes de dar essas perguntas e respostas, eu gostaria de descrever à minha moda como ele falava, pois a forma era mais impressionante ainda do que o conteúdo (...).

Suas frases eram breves, em geral com três ou quatro palavras cada uma. Raramente eram completas do ponto de vista gramatical, mas eram carregadas de sentido. Seu pensamento era claramente coerente, mas suas frases pareciam descontínuas às vezes. Era preciso tempo para ligar logicamente cada uma delas com a seguinte. Mas Sri Ramakrishna falava lentamente, e parava de maneira perceptível ao fim de cada frase, o que nos permitia fazer a ligação. Ele dispunha as flores de seu pensamento com facilidade e com arte, mas sem usar linha e agulha para formar guirlandas com elas. Falava com a autoridade de um profeta. Nele, a inspiração e a expressão eram uma coisa só (...).

 

Eis algumas das perguntas de C.K. com suas respostas:

P — Por que as imagens de Krishna são negras2?

R — As pessoas sofrem da ilusão da distância. O céu nos rodeia. O próprio céu está no espaço3. Eles são idênticos. O céu é azul. O espaço é luminoso. Olhem melhor para Krishna. Vejam-no de perto, de frente. Vocês verão que Ele é luminoso.

P — A submissão a um guru é indispensável à salvação?

R — Vocês querem ir a Hugli. Podem ir a pé. Podem alugar um barco. Podem comprar uma passagem no barco a vapor. A única diferença é a velocidade. Se vocês forem sinceros, chegarão a Hugli. Vocês podem parar o barco em Serampur e fazer meia volta. Podem parar lá. Podem cair na água e afogar-se. Sejam sinceros. Não tenham medo.

P — O que é melhor, ser monge ou chefe de família?

R — Não lhes cabe escolher. Vocês não são livres. Algumas pessoas se tornam monges. A maioria constitui família. As duas coisas são difíceis. As pessoas acham natural ter família. A diversidade foi estabelecida por Deus. Shukadeva era um verdadeiro monge. Andava completamente nu. E no entanto as mulheres que estavam se banhando no rio não tinham medo quando ele chegava. Mas elas se escondiam quando chegava o velho pai dele. O rei Janaka manejava duas espadas, uma em cada mão. Levava as duas vidas ao mesmo tempo. Na essência elas não são incompatíveis. O importante é não se deixar poluir por um apego exagerado pelo mundo. O peixe4 mora no lodo. No entanto ele permanece brilhante. Um ser humano é mais que um peixe. Ele vive rodeado de lama, sujeiras, venenos. Como viver sem se sujar? O leite misturado com água perde o gosto. Perde seu valor nutritivo. Mas a água não penetra na manteiga. A manteiga precisa ser batida de manhãzinha. No calor do meio-dia não se pode mais. As árvores que cresceram não receiam mais as vacas. As vacas comem as árvores jovens. Por isso as pessoas colocam uma cerca em volta delas. Façam sua escolha, meus filhos. Pouco a pouco tomamos gosto pelas coisas ácidas. A visão do tamarindo5 agrada a quem gosta de acidez. Mas também podemos decidir abster-nos de tamarindo. Para isso é preciso vontade.

O coco verde é cheio de água. Chacoalhem (ele punha as mãos em concha e sacudia-as perto de sua orelha esquerda, como se houvesse um coco dentro). Vocês não ouvem nada. A água, a casca e as fibras são uma coisa só. Chacoalhem um coco maduro. Vocês vão ouvir a água mexendo-se. Quando o coco está totalmente maduro não há mais água. A castanha se separou da casca. Chacoalhem. Vocês vão ouvir o miolo. E ele disse: “Eu vivo em minha concha, mas ela não me aperta. Eu me libertei de meus apegos”.

Sri Ramakrishna prosseguiu assim durante muito tempo. Não me lembro de tudo o que ele nos disse: já faz mais de meio século, eu  era jovem e nunca havia recebido instruções sobre o valor do desapego, completo ou parcial. Talvez eu não tenha compreendido tudo. Mas o que compreendi tocou uma corda essencial em meu jovem coração, e nunca esqueci aquela música (...). Eu tinha dezoito anos, agora tenho setenta e um, e o desapego foi uma das notas dominantes de minha vida. Procurei viver como o peixe no lodo. Não estou certo de ter conseguido, mas o desapego é mais natural para mim do que o apego. Se existe algo de bom em minha vida, devo isso ao discurso de Sri Ramakrishna sobre o apego e o desapego.

 

 

SUMÁRIO

1. Mestre e discípulo (fevereiro-março 82)

2. Passeio de barco com Keshav (27 de outubro de 82)

3. O pandit Vidyasagar (5 de agosto de 82)

4. Em Dakshineswar com os discípulos (16 de outubro de 82)

5. Visita ao Brahmosamaj em Sinthi (28 de outubro de 82)

6. Conversa com Vijay (14 de dezembro de 82)

7. Com Amrita e Traylokhya (29 de março de 83)

8. Com diversos visitantes (22 de julho de 83)

9. Em Dakshineswar (19 de agosto de 83)

10. Festa em Sinduriyapati (26 de novembro de 83)

11. Última conversa com Keshav (28 de novembro de 83)

12. Na casa de Jaygopal Sen (28 de novembro de 83)

13. Kirtan na casa de Surendra (15 de junho de 84)

14. Visita ao pandit Shashadhar (25 de junho de 84)

15. Segunda visita em Sinthi (19 de outubro de 84)

16. Em Dakshineswar com Mahimacharan (26 de outubro de 84)

17. Na casa de Balaram e depois na de Girish (11 de março de 85)

18. Em Shyampukur (22 de outubro de 85)

19. Em Shyampukur (25 de outubro de 85)

20. Em Shyampukur (26 de outubro de 85)

21. Em Shyampukur (27 de outubro de 85)

22. Em Cossipore (14 de março de 86)

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DIÁLOGO 1*

MESTRE E DISCÍPULO: FEVEREIRO-MARÇO DE 1882

 

PRIMEIRO ENCONTRO

21  O templo de Kali em Dakshineswar, às margens do Ganges, na primavera, alguns dias após a festa de aniversário do Mestre2, e o passeio de barco do Mestre no Ganges, na quinta-feira, 23 de fevereiro, na companhia de Keshob Shen3 e do Sr. Joseph Cook4. É o fim da tarde. M5 acaba de entrar pela primeira vez no quarto do Mestre. O cômodo está cheio de pessoas silenciosas, sentadas no chão, bebendo suas palavras. O Mestre está sentado numa cama de madeira virada para o leste6; seu rosto está sorridente e ele fala de Deus.

M fica de pé, estupefato7. Tem a impressão de encontrar-se na confluência de todos os lugares santos, diante de Shukadeva8 em pessoa explicando o Bhagavata, ou em Puri quando Chaitanya9, com Ramananda, Svarupa e os outros,  levava todos os devotos (bhaktas) para cantar o nome do Senhor.

O Mestre dizia: “Aquele que estremece e chora só de pronunciar o nome de Hari ou de Rama não tem mais nada a ver com o culto e o ritual. Ele não precisa mais disso. Os ritos caem por si mesmos. Basta-lhe então repetir o nome de Hari ou de Rama, ou só a sílaba OM”. Depois ele acrescenta: “Pouco a pouco o culto se reduz ao Gayatri10 e finalmente este se reduz ao OM apenas”.

M chegou aqui por acaso, visitando com seu sobrinho Shidhu cada um dos parques das grandes propriedades de Boranogor11. Hoje é domingo, 26 de fevereiro de 1882; eles aproveitaram esse dia de feriado para passear. Encontravam-se no parque do Sr. Proshonno Bannerji quando Shidhu disse: “Existe mais um jardim encantador à beira do Ganges. Você quer visitá-lo? Um paramahamsa12  mora lá”.

M e Shidhu entraram no templo pela porta principal, e foram diretamente para o quarto do Mestre. Agora M olha em silêncio, com a máxima atenção; ele pensa “Ah, como esse lugar é agradável, como esse homem é agradável, como o que ele diz é agradável! A gente não tem mais vontade de ir embora!” Mas um momento depois diz consigo mesmo: “Vamos primeiro visitar o lugar, depois voltaremos para nos sentar aqui”.

Quando saem, o culto vespertino começa: gongos e sininhos, címbalos e conchas soam juntos e ouve-se a música da torre dos concertos no extremo sul do parque. Os sons se misturam, vagueiam ao longe sobre o Ganges, levados com o perfume das flores pela brisa leve da primavera. A lua sobe no céu. A natureza inteira parece oferecer ao Senhor o sacrifício noturno. Balançam-se as luzes diante dos deuses nos doze pequenos templos de Shiva, no templo de Radha e Krishna, e o da Mãe protetora do universo, e M sente uma grande alegria em olhá-los. Shidhu lhe diz: “Aqui é a fundação de Rani Rashmoni, o culto é celebrado perpetuamente, e os sadhus e mendigos recebem alimento”.

Saem do templo de Kali e conversando atravessam diagonalmente o grande pátio retangular calçado de tijolos, para voltar ao quarto do Mestre. Mas acabam de queimar incenso ali e as portas estão fechadas. Como M foi educado à inglesa, pára, e vendo Brinde, a criada do templo, de pé perto da entrada, pergunta-lhe:

M — Por favor, o sadhu está?

B — Está, no seu quarto.

M — Há quanto tempo ele vive aqui?

B — Oh, há muito tempo!

M — Ele lê muitos livros?

B — Livros! Ah, não, ele sabe todos na ponta da língua!

M terminara seus estudos recentemente e surpreende-o muito o fato de que o Mestre não leia livros.

M — Podemos entrar? Talvez ele esteja ocupado com o culto vespertino. Você pode nos anunciar?

B — Mas não precisa, meus filhos! Vamos! Entrem e sentem-se!

Então eles entram no quarto. Sri Ramakrishna13 está sentado na cama e não há mais ninguém. Acabam de queimar incenso e todas as portas estão fechadas. Ao entrar, M saúda o Mestre com as mãos juntas. A convite do Mestre, sentam-se ambos no chão. Ele lhes faz perguntas: de onde é sua família, qual é sua profissão, o que vocês vieram fazer aqui em Boranogor? M responde tudo, mas percebe que a mente do Mestre está longe. Mais tarde lhe explicarão que se trata de um estado extático (bhava). Sua mente está concentrada como a de um pescador com a vara de pesca espiando o peixe, atento ao movimento da rolha, sem ouvir quando falam com ele. Mais tarde M ficará sabendo que isso é habitual: o Mestre fica absorto assim com a chegada da noite, ao ponto de às vezes perder a consciência do mundo exterior.

M — Talvez nós o estejamos perturbando? O senhor ia celebrar o culto vespertino?

SR (parecendo ausente) — Não. O culto vespertino? Não, de modo algum.

Porém, eles não têm mais nada para dizer um ao outro. Depois de algumas frases mais, M saúda o Mestre e se despede. Então o Mestre diz: “Voltem para me visitar”.

No caminho, M pensa: “Que homem gentil e agradável! Acabo de deixá-lo e já quero vê-lo de novo. Será que é possível alcançar a grandeza sem ler livros? É impressionante o quanto eu quero voltar lá. Ele mesmo nos disse “Voltem para me visitar”. Irei cedo dessa vez, amanhã ou depois de amanhã14”.

 

SEGUNDO ENCONTRO

3  De fato, M voltou cedo, por volta das oito horas da manhã. O Mestre está sendo barbeado. Como está um pouco frio, ele se agasalhou com um xale de beirada vermelha. Ao ver M, diz: “Você voltou? Muito bem! Sente-se aí”.

Essa conversa acontece na varanda a sudeste do quarto. O Mestre, sentado, troca de vez em quando algumas frases com M enquanto o barbeiro lhe faz a barba. Seu corpo está envolto no xale e ele usa chinelos15. Seu rosto está sorridente e ele gagueja levemente.

SR — Bom, de onde é sua família?

M — De Calcutá, senhor16 .

SR — E o que você está fazendo aqui?

M — Moro com minha irmã mais velha, senhor, na casa do Dr. Ishan.

SR — Ah! Na casa de Ishan! Escute, você sabe como está o Keshob? Me* disseram que ele estava muito doente.

M — Eu também ouvi falar, senhor, mas creio que está melhor.

SR — Ofereci castanha de coco verde com açúcar para a Mãe, para ele ficar bom. De noite eu ficava chorando diante da Mãe: “Por favor, Mãe, cure o Keshob! Se ele desaparecer, não vou ter mais ninguém com quem conversar em Calcutá”. Por isso ofereci castanha de coco e açúcar. Bom, e Cook Saheb? Ele fez conferências. Keshob me levou para passear de barco e Cook Saheb estava lá.

M — Fiquei sabendo alguma coisa, mas não fui ouvi-lo. Não sei do que ele ia falar.

SR — Chegou o irmão de Protap17. Ele está aqui faz pouquinho tempo. Está sem trabalho, e pôs na cabeça que vai morar comigo. Me falaram que deixou sua família na casa do sogro. Ele tem uma récua de filhos. Eu lhe dei uma bronca: escute, os vizinhos não são obrigados a alimentar e educar seus filhos. Você não tem vergonha de que os outros os alimentem e seu sogro tome conta deles? Fiquei muito zangado e mandei-o procurar trabalho. Finalmente ele aceitou ir embora.

 

4  SR — E você, é casado?

M — Sim, senhor.

SR (aterrorizado) — Ai, ai, ai, Ramlal18, ele é casado!

M baixa a cabeça e se cala. Vê-se como que culpado de um crime horrível, e se pergunta por que é tão ruim ser casado. O Mestre faz outra pergunta:

SR — E você tem filhos?

O coração de M bate no peito; ele responde temeroso: “Sim, senhor”. O Mestre diz com tristeza: “Ah, filhos também”. Depois de levar essa reprimenda, M fica em silêncio. Sua vaidade levou um golpe.

O Mestre se cala um instante, depois olha gentilmente para M e diz: “Escute, há boas coisas em você; eu sei ver o que há nas pessoas, conforme sua testa, seu olhar. Bom, qual é a influência da sua esposa? Luminosa ou escura19?

M — Ela é muito boa, mas sem instrução.

SR(irritado) — E você, você se acha instruído20?

M nunca havia aprendido o que significa ser instruído. Até então pensava que se tratava de estudar e ler livros, mas logo essa idéia lhe será tirada, e ele compreenderá que ser instruído é conhecer Deus, ser ignorante é não conhecê-Lo. Quando o Mestre perguntou “Você se acha instruído?”, bateu de cheio novamente na vaidade de M.

SR — Bom, qual fé você prefere: Deus com ou sem forma?

M pensou: “Será uma questão de preferência? Se Deus tem uma forma, então é um erro acreditar em Deus sem forma, e se Ele é sem forma é um erro acreditar em Deus com forma; uma coisa e seu contrário não podem ser ambas verdadeiras, seria tão absurdo quanto leite preto!”

M — De preferência sem forma, senhor, gosto mais.

SR — Bom! É preciso agarrar-se firmemente numa fé. Deus sem forma, é ótimo! Mas não vá pensar que é a única verdade e que todo o resto é falso. Saiba que Deus é sem forma, e que pode também ter forma. Você acredita numa coisa, mas as pessoas têm o direito de acreditar em outra.

Novamente ouvindo falar de várias verdade, M não sabe o que responder. Não leu nada assim em seus livros! Seu orgulho recebeu outro golpe, mas ainda não está completamente esmagado. Por isso, prepara-se para discutir um pouco.

M — Bom, admitamos que Ele tenha uma forma: mesmo assim, o senhor não está querendo falar de uma forma de barro?

SR — Por que de barro? Ela é feita de espírito!

M não compreende, e diz: “Ouça, de qualquer modo é preciso explicar para aquele que adora uma imagem de barro que aquela imagem não é Deus, e a adoração que ele oferece à imagem deve ser relacionada com Deus! Não se deve adorar terra!”

SR (irritado) — Essa gente de Calcutá é assim mesmo! Dando conferências para os outros para lhes explicar o que eles precisam pensar! Reflitam um pouco sobre si mesmos. Quem são vocês para explicar? Só Aquele a quem pertence o universo é capaz disso. Ele fez o mundo, a lua, o sol, as estações, o homem, os animais. Previu seu alimento, um pai e uma mãe para protegê-los. Pôs nos pais o amor por seus filhos. Só Ele sabe o que é preciso explicar. Vocês acham que Ele pensou em tudo, menos isso? Se houver necessidade de explicação, Ele se encarregará disso. É Ele o nosso guia interior. Mesmo que haja algo errado na adoração de uma imagem de barro, será que Ele não sabe que esse culto se dirige a Ele? Ele fica satisfeito com esse culto da forma como é feito. Por que você fica quebrando a cabeça? É melhor você tratar de adquirir um pouco de conhecimento e de amor a Deus!

M sentiu sua vaidade definitivamente esmagada. Pensou: “Ele realmente tem razão. O que me deu na cabeça para dar lição aos outros? O que sei eu de Deus? Será que eu amo Deus? Como diz o provérbio: “Ele não tem lugar para se deitar e oferece sua cama aos amigos”. Ensinar aos outros o que a gente mesma não compreende não é nem honesto nem inteligente. Afinal de contas, não se trata de matemática, de literatura ou de história, mas do conhecimento de Deus. O que ele está dizendo me agrada totalmente!”

Foi essa a primeira e a última vez que M discutiu com o Mestre.

SR — Você diz “imagem de barro”. Se uma pessoa adora o barro, deve haver um motivo. Deus previu Ele mesmo todas essas formas de adoração. O mundo é dEle, Ele é o mestre da diversidade. Previu para cada um a forma de adoração de que cada um é capaz. Como uma mãe de cinco filhos que traz um peixe do mercado e o prepara de diversas maneiras: com arroz para esse, frito para aquele, com molho picante, refogado. Conforme agrada a cada um. Aquilo que o estômago de cada um pode digerir. Certo?

 

5  M disse humildemente: “Sim, senhor”. Depois perguntou: “Como voltar a mente para Deus?”

SR — Cantar sem parar o louvor de Seu Nome, e procurar a companhia dos santos. Visitar sempre os devotos de Deus e os sadhus. Se ficarmos dia e noite no mundo, no meio do trabalho e das preocupações, não conseguiremos voltar nossa mente para Deus. É indispensável retirar-se sozinho de vez em quando, para pensar em Deus. Se não aproveitarmos todas as oportunidades de ficar em solidão, será muito difícil levar a mente a Deus. Se você plantar uma árvore jovem, você precisará colocar uma cerca ao redor dela, senão as cabras e as vacas a comerão.

É necessário meditar, na floresta, num canto sossegado, ou retirando-se apenas mentalmente — e praticar sem cessar o discernimento entre o bem e o mal, o real e o irreal. Deus é real, já que não morre. O mundo é irreal, já que morre. Analisando as coisas assim, renunciamos pouco a pouco ao que é irreal.

M (humildemente) — E que atitude devemos manter em relação ao mundo21?

SR — Fazer o que você tem de fazer, mas com a mente fixada em Deus. Esposa, filhos, pai e mãe, aceitá-los e cuidar deles como se fossem realmente seus, mas sabendo que na verdade eles não lhe pertencem. Uma empregada em casa de ricos faz seu trabalho, mas sua mente permanece voltada para sua própria casa. Ela cria os filhos do patrão como se fossem os seus, fala deles dizendo “meu Hari, meu Rama”, mas sabe muito bem que não são seus filhos. A tartaruga da água parece nadar sem rumo, mas você sabe no que ela pensa? No banco de areia onde botou seus ovos. É preciso trabalhar no mundo com a mente voltada para Deus.

Se você se jogar no mundo sem possuir o amor de Deus, você vai ficar preso na rede dos perigos, do tédio, da dor, da impaciência. E quanto mais tudo isso aumenta, mais ficamos presos. Antes de abrir uma jaca, precisamos esfregar óleo nas mãos. Senão, ficarão coladas com o suco pegajoso. O óleo que impedirá que você fique colado pelo mundo é o amor a Deus.

Mas para obter esse amor, você precisa de solidão. Para fazer manteiga, você primeiro deve deixar o leite descansar tranqüilamente; se você o agita, o creme não se separa. Depois, você pára seus outros trabalhos e bate o creme. É assim que se faz manteiga.

Na solidão, a mente pode pensar em Deus, adquirir conhecimento, devoção, renúncia. Ao cair no mundo a mente se degrada. No mundo só se pensa em sexo e dinheiro22.

O mundo é como a água, a mente como o leite. Se você despeja a água no leite, eles se misturam e você não pode mais reencontrar o leite puro. Mas a manteiga depois de batida não se mistura mais com a água, ela flutua por cima. Por isso, primeiro é preciso bater a manteiga, praticando uma disciplina na solidão. Depois ficamos tranqüilos: a manteiga flutua sobre a água sem se misturar.

E o discernimento: só Deus é real, o sexo e o dinheiro são irreais. O que lhe traz o dinheiro? Pão, sim, lentilhas, sim, roupas, sim, um teto como abrigo, certo, mas não Deus. Então o dinheiro não pode ser o objetivo da vida. Isso se chama discriminar. Você entende?

M — Sim, senhor. Acabo de ler uma peça de teatro sobre isso, em sânscrito.

SR — Escute mais um pouco. O que é o dinheiro, o que é a beleza? Tente refletir: o que é um corpo? Ossos, carne, gordura, sangue, urina, excrementos. E é por causa dessas coisas que a mente esquece Deus!

M — Podemos ver Deus?

SR — Sim, com absoluta certeza. Retirar-se em solidão de vez em quando, cantar o Seu Nome, e discriminar. Eis os meios para consegui-lo.

M — E o que é preciso fazer para vê-lo?

SR — Chorar por Ele com grande desejo: então Ele se mostra. Os homens choram baldes de lágrimas por seus filhos. Pelo dinheiro então, daria para se tomar um banho! Mas quem chora por Deus? É preciso que o apelo por Deus seja um apelo verdadeiro.

E nisso o Mestre começou a cantar:

 

Grita de verdade, minha alma, e Shyama23 não poderá ficar longe,

Shyama não poderá ficar longe, Kali não poderá ficar longe.

Seja sincera, minha alma, oferece as flores rosas da bilva* ,

Com o sândalo do amor, oferece as flores aos pés da Mãe.

 

A saudade de Deus é como a cor rosa no céu: a aurora vem, o sol está prestes a aparecer. Primeiro a nostalgia, depois a presença de Deus. Se três apegos forem reunidos, o do homem mundano por seus negócios, o da mãe por seu filho, o da esposa por seu esposo, então, pela força desse triplo desejo a visão de Deus se produzirá. Trata-se de amar a Deus tanto quanto a mãe ama seu filho, tanto quanto a esposa ama seu marido, tanto quanto o homem mundano ama seus negócios! Se esses três desejos se encontram reunidos, então Deus aparece.

O desejo nos faz chamar Deus. O gatinho só sabe falar “miau, miau” para chamar sua mãe, e a gata o coloca aqui, depois o pega de novo e o leva ali. Às vezes na cozinha, às vezes no chão nu, às vezes na cama. Se o gatinho sofre, a única coisa que diz é “miau, miau”; ele só sabe dizer isso — e onde quer que a gata esteja, ela ouve esse “miau, miau” e acode ao chamado.

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TERCEIRO ENCONTRO

6  M encontrava-se na casa de sua irmã em Boranogor. Agora que conhecera o Mestre, não conseguia mais desligar dele o seu pensamento. Durante o dia inteiro seu rosto e suas palavras lhe voltavam à memória. Ele se perguntava como um pobre brâmane havia podido aprender, ou descobrir por si mesmo, verdades tão profundas. E M nunca vira alguém que se expressasse de modo tão claro e simples. Só pensava em voltar lá, para vê-lo e ouvi-lo novamente.

O domingo 5 de março acabou chegando. Em companhia de Nepalbabu de Boranogor, M chegou ao templo de Dakshineswar por volta de três ou quatro horas. Encontraram o Mestre sentado de frente para o leste, na pequena cama de madeira no centro do quarto. Este estava cheio, pois o domingo era a oportunidade para todos os discípulos visitarem o Mestre. M ainda não conhecia nenhum deles, e sentou-se na lateral. O Mestre falava com os devotos sorrindo. Parecia interessar-se especialmente por um rapaz de mais ou menos dezenove anos, falando em sua intenção. Ficava muito claro que sua presença enchia o Mestre de alegria. Esse rapaz se chamava Norendro24, era estudante e freqüentava o Sadharan Brahmosamaj25. Suas palavras eram cheias de energia, seu olhar brilhante, e ele parecia irradiar espiritualidade.

M compreendeu que o assunto era sobre os homens ligados ao mundo: se alguém se dedica seriamente a Deus e à religião, todos começam a falar mal. E no mundo existem também pessoas realmente más. Como se comportar com elas? Esse era o problema.

SR — O que você pensa a esse respeito, Norendro? É incrível tudo o que os mundanos são capazes de dizer! Quando um elefante passa, todas as espécies de pequenos animais gritam para ele, mas o elefante nem sequer vira a cabeça. O que você faria se as pessoas falassem mal de você?

N — Eu pensaria: “Vamos deixar ladrar os cães!”

SR — Você está exagerando um pouco! (risos). Deus está presente em todos os seres vivos. Mas só devemos nos ligar intimamente com as pessoas boas, e manter distância das más. Narayana26 está no tigre também, mas isso não é motivo para irmos abraçá-lo (risos). Deus está também naquele que lhe diz “Proteja-se”, então por que não obedecê-lo?

Ouçam uma história. Numa floresta vivia um sadhu que tinha numerosos discípulos. Uma vez, ele lhes ensinou que Deus está presente por toda parte e que então é preciso respeitar e cultuar todo ser vivo. Um dia, um de seus discípulos foi à floresta cortar lenha para os sacrifícios. Ouve gritar “Salve-se quem puder! Um elefante furioso!” Todos fogem, mas o discípulo não. Ele pensa: “Por que fugir? O elefante louco também é Narayana”. E junta as mãos para saudar a Deus, com hinos de louvor. O cornaca (condutor de elefante) grita “Fuja! Fuja!”, mas ele não se mexe. Para terminar, o elefante o agarra com a trompa , ergue-o, lança-o ao chão e prossegue sua corrida. O discípulo, ferido, desmaia.

Sabendo da notícia, o mestre e alguns discípulos vão às pressas, transportam-no com dificuldade até o monastério e cuidam de seus ferimentos. Quando volta a si, perguntam-lhe: “Por que você ficou lá quando o elefante passou?” Ele responde: “Nosso mestre nos disse que Deus está por toda parte, no homem, nos animais, por todo lado! Então quando Deus-elefante se aproximou, eu não me afastei”. O mestre lhe disse: “É verdade, meu filho, Deus-elefante se aproximou, mas, meus filho, o cornaca também é Deus. Quando o Deus-cornaca gritou para você fugir, por que você não o fez? Já que Deus está em toda parte, você deveria tê-lo obedecido!” (risada geral).

Nas Escrituras se diz apo-narayana (a água é Deus). Mas existe água pura que é adequada aos sacrifícios, água para lavar as mãos e a boca, água para lavar a louça, e a água na qual só se pode lavar roupa. Para os sacrifícios e para beber, não se usa qualquer água. Da mesma forma Deus está no coração de todos, do santo, do devoto, do impuro, do mau. Mas não se aproxime do impuro ou do mau. Com alguns você ainda pode conversar, com outros nem isso é possível, precisa-se ficar à distância.

UM OUVINTE — Senhor, se alguém está a ponto de praticar o mal, ou até já está praticando, como ficar indiferente?

SR — Quando vivemos com as pessoas, às vezes somos obrigados a nos proteger de sua maldade, e então podemos tomar uma aparência ameaçadora27, mas a pretexto de que um outro pratica o mal, não é permitido fazer-lhe mal em troca.

Alguns pastorzinhos estavam cuidando de suas vacas num pasto onde morava uma serpente muito venenosa. Tinham muito medo dela e estavam sempre atentos. Um dia, um asceta errante quis passar naquela direção. Os pastorzinhos correram para avisá-lo: “Senhor, não vá por ali! Há uma serpente terrível!” O asceta disse: “Não se preocupem, crianças, não tenho medo de nada, conheço os mantras necessários”, e continuou em frente. Com medo, nenhuma das crianças o acompanhou. A serpente levantou a cabeça e arremeteu contra o asceta, mas ele pronunciou um mantra, e logo a serpente prostrou-se a seus pés como uma minhoca. O asceta lhe disse: “Escute, até hoje você praticou o mal, agora vou lhe dar um mantra; repetindo-o, você obterá o amor pelo Senhor, você verá o Senhor e perderá seus maus instintos”. Deu o mantra à serpente, esta se prosternou a seus pés e perguntou-lhe: “Senhor, agora o que devo fazer?” O asceta lhe disse: “Repita seu mantra, não faça mal a ninguém e espere meu retorno”. Depois partiu.

Alguns dias se passaram, e os meninos viram que a serpente não os atacava mais. Tentaram jogar-lhe pedras, e ela não reagiu. Tinha-se tornado mansa como uma minhoca! Um dia um deles ousou aproximar-se e agarrá-la pela cauda; girou e girou a serpente no ar ao redor de sua cabeça e bateu-a no chão. Saiu sangue de sua boca e ela ficou desacordada. Então as crianças pensaram que estava morta e se foram. No meio da noite, a serpente voltou a si e entrou em sua toca com grande dificuldade: estava toda quebrada e quase não podia mexer-se. Muito tempo depois, conseguiu sair para procurar um pouco de alimento, pois estava pele e ossos. O medo a impedia de sair durante o dia; só à noite alimentava-se de folhas, terra e frutas que caíam das árvores. Repetia o mantra e não fazia mal a nenhuma criatura.

Passado um ano, o mestre voltou, e pôs-se à procura da serpente. Os pastores lhe disseram que a serpente havia morrido, mas ele não acreditou, pois o mantra tinha o poder de mantê-la viva até à visão do Senhor. Continuou a chamá-la. Ouvindo a voz de seu mestre, a serpente saiu do buraco e prosternou-se com amor. O asceta lhe perguntou: “Como vai você?”. E a serpente respondeu: “Muito bem, Senhor”. O mestre lhe disse: “Mas eu acho que você não está com boa aparência”. A serpente respondeu: “Conforme sua ordem, não fiz mal a nenhuma criatura, só comi folhas e frutas; então devo ter emagrecido”. Tinha adquirido tanta doçura28 que não queria mal a ninguém, e até esquecera que as crianças quase a haviam matado. O asceta disse “Deve haver uma outra razão. O que aconteceu?” A serpente respondeu: “Estou lembrada! Os meninos me bateram e me fizeram ficar neste estado. Coitados! Não sabiam que eu havia mudado e não mordo mais ninguém!” O asceta disse: “Que idiota! Você não sabe se defender! Eu havia proibido você de morder, mas não de silvar! Por que você não os amedrontou?”

Com as pessoas más às vezes é preciso silvar para lhes dar medo e impedi-las de causar dano, mas sem inocular veneno, sem lhes fazer mal.

Existe todo tipo de seres vivos na criação de Deus: entre os animais há os bons e os maus, cruéis como o tigre; entre as árvores, há algumas cujo fruto é doce como o néctar, outras cujo fruto é um veneno. Da mesma forma, entre os homens existem os bons e os maus, os puros e os impuros, os mundanos e os devotos de Deus.

Há quatro tipos de homens. Os homens entravados, os que desejam a libertação, os que a conseguiram, e os sempre-livres, como Narada29 por exemplo. Os sempre-livres vêm a este mundo para o bem da humanidade, como instrutores. Os entravados são completamente ligados ao mundo, esqueceram Deus e jamais pensam no Senhor. Depois há aqueles que buscam a libertação; entre eles alguns a obtém, outros não. Enfim os libertos, os sadhus, os mahatmas, que não são mais prisioneiros do sexo e do ouro. Perderam a consciência dos negócios do mundo, e seu espírito fez morada para sempre aos pés de lótus do Senhor.

É como quando se joga uma rede numa lagoa: os raros peixes realmente espertos que nenhuma rede jamais pegará, podemos compará-los aos sempre-livres. Mas a rede recolhe muitos peixes; alguns tentam escapar, porém nem todos conseguem. De vez em quando, um peixe grande pula por sobre a rede e cai do outro lado espirrando água, e os pescadores gritam: “Olha lá um grandão que está indo embora!” Mas a maior parte não escapa, sequer tenta. Enfiam o nariz na vasa através da rede e pensam: “Nada a temer, estamos muito bem aqui”, sem saber que os pescadores vão arrastar a rede para a terra e jogá-los num balde. Pode-se compará-los aos entravados.

Eles estão presos pelo sexo e o ouro, de pés e mãos amarrados! Pensam que o sexo e o ouro são a vida sadia e normal, e não se preocupam com nada. Não sabem que a morte vai vir; e mesmo em seu leito de morte, quando sua esposa se queixa “Você vai me deixar, o que vai ser de mim?”, tudo o que eles têm a lhe dizer é para baixar a mecha da candeia a fim de gastar menos óleo! Até em seu leito de morte! Nunca pensam em Deus. Quando têm lazer, usam-no em jogos estúpidos, tagarelice, trabalho inútil; se lhes perguntamos por quê, dizem: “O que você quer, eu não consigo ficar sem fazer nada, então estou consertando a cerca”. Ou então, para matar o tempo, jogam baralho (um momento de silêncio).

 

7  UM OUVINTE — Mas então, senhor, os mundanos não têm saída?

SR — Claro que têm! Visitar os santos de vez em quando, retirar-se em solidão de vez em quando, praticar o discernimento, orar para obter fé e amor. A fé é tudo. Não há nada maior que a fé! (Dirigindo-se a Kedar30) — Você conhece o poder da fé? Os puranas contam que Rama, isto é, Narayana (Deus) em pessoa teve que construir uma ponte para ir ao Ceilão, enquanto Hanuman31, por sua fé no Nome de Rama, saltou por sobre o oceano, sem ter necessidade de ponte! (risos)

Contam também que Vibhisana escreveu o Nome de Rama numa folha e amarrou-a na roupa de alguém, dizendo-lhe: “Não receie nada! Com isso você atravessará o oceano a pé. Mas se perder a fé, você afundará”. Essa pessoa começa a caminhar sobre a água, mas pouco a pouco vai sentindo curiosidade de ver o que há na fralda de sua roupa. Abre-a e vê o Nome de Rama, e pensa: “O quê? Só isso?”, e então afunda.

Aquele que tem fé, mesmo que cometa enormes pecados — até matar uma vaca, um brâmane, uma mulher — o Senhor o libertará desses pecados por causa de sua fé. Basta que ele diga “Não o farei nunca mais”, e nada terá a recear.

Naquele momento o Mestre cantou:

 

Quero morrer pronunciando Teu Nome, Durga32! Durga!

Como poderias Tu rejeitar o miserável que eu sou?

Que eu tenha matado uma vaca, uma criança no ventre de sua mãe,

Um brâmane, uma mulher, que tenha rolado bêbado pelo chão,

Que importa, Tu me conduzirás bem aos pés de Brahma!

 

Vejam esse rapaz (olhando Noren)! Como ele parece comportado aqui! Está sentado como uma criança diante de seu pai, mas quando estiver lá fora brincando será outra coisa! Ele não está amarrado pelas preocupações do mundo, mais um pouco de tempo e perceberá isso, e ninguém poderá impedi-lo de voltar para o Senhor. Ele veio a este mundo para ensinar os outros, os bens desta terra não são nada para ele. O sexo e o ouro não podem cegá-lo.

Nos Vedas fala-se do pássaro homa. Esse pássaro mora nas alturas do céu. Põe seu ovo voando, e o ovo cai. O pássaro voa tão alto que o ovo cai durante dias e dias, e enquanto isso o filhote nasce. O filhote continua a cair, cair, por tanto tempo que seus olhos têm tempo de se abrir e suas asas de crescer. Então ele percebe que vai arrebentar-se no chão e, com todas as suas forças, inicia seu vôo para o céu e vai ao encontro de sua mãe.

Noren levantou-se e saiu.

No quarto haviam ficado Kedar, Prankrishno, M e outros.

SR — Vejam Norendro. Ele sabe fazer tudo: estudar, cantar, tocar instrumentos. Hoje ele teve uma discussão com Kedar, e despedaçou todos os seus argumentos! (Dirigindo-se a M) — Os ingleses têm livros para lhes ensinar a discutir?

M — Sim, senhor, isso se chama lógica.

SR — Explique mais ou menos para mim o que eles dizem.

Lá ficou M bem atrapalhado! Tentou explicar o que era passar do particular ao geral, do geral ao particular, etc33. Um momento depois o Mestre parou claramente de ouvir e a conversa terminou.

 

8  A reunião foi interrompida, os ouvintes saíram para passear aqui e ali pelos jardins. M visitou o panchavati34, depois voltou para o quarto do Mestre. Ao aproximar-se, viu que algo estava acontecendo na pequena varanda ao norte do quarto.

Sri Ramakrishna estava de pé, imóvel; Norendro cantava e três ou quatro discípulos assistiam à cena. M aproximou-se para ouvir o canto e ficou arrebatado — nunca ouvira ninguém, com exceção do próprio Mestre, cantar de maneira tão emocionante como Norendro. De repente, voltou os olhos para o Mestre e ficou estupefato. O Mestre estava absolutamente imóvel, suas pálpebras não piscavam. Aparentemente não respirava também. Alguém cochichou que ele estava em êxtase e que aquilo se chamava samadhi. M nunca vira coisa parecida, sequer sabia o que era. Pensou consigo: “Quando se toma consciência de Deus, perde-se assim toda a consciência externa? Quanta fé e amor ele precisou ter para chegar a isso!” Norendro cantava:

 

Contempla Hari, ó minha alma, pura consciência imaculada,

Maravilha incomparável, imagem feiticeira no coração,

Irradiando mil cores, resplendor que ultrapassa mil luas!

Fazendo o espírito tremer de alegria, como um relâmpago fulgurante...

 

Ouvindo cantar aquele verso, Sri Ramakrishna estremeceu e os pêlos de seu corpo eriçaram-se. Lágrimas de alegria saíram de seus olhos. De vez em quando parecia sorrir para alguém. Como saber que incomparável imagem, mais resplandecente que mil luas, erguera-se diante de seus olhos, que maravilhosa forma do Senhor? Quanta disciplina*, renúncia e esforços haviam sido necessários para chegar a uma visão daquelas? O canto continuava:

 

Oferece-te a seus pés, vê-O estabelecido no lótus do coração,

Contempla Sua imagem bem-amada,

Com a mente tranqüila, com o olhar do amor...

 

De novo aquele mesmo sorriso feiticeiro! A rigidez do corpo, as pupilas fixas. Que visão incomparável deviam estar contemplando, e que felicidade incomparável pareciam testemunhar! Norendro chegava ao fim:

 

Fruto da yoga do amor, quintessência de amor e alegria.

Alcança essa alegria sem fim, a própria essência da alegria,

A quintessência do amor.

 

Levando em seu coração as maravilhosas imagens do êxtase e da alegria proporcionada pelo amor a Deus, M tomou o caminho de volta. De vez em quando, ainda embriagado, reencontrava em seu coração o eco do hino:

 

Alcança essa alegria sem fim... a quintessência do amor...

 

 

QUARTO ENCONTRO

9  O dia seguinte, 6 de março, ainda era feriado, e M voltou aproximadamente às três horas. O Mestre estava em seu quarto, uma esteira cobria o chão, e Norendro, Bhobonath35 e alguns outros estavam sentados ali, todos com dezenove ou vinte36 anos. O Mestre estava sentado na pequena cama de madeira, e falava alegremente com todos aqueles rapazes.

Vendo M entrar no quarto, o Mestre desatou a rir, e virando-se para os rapazes, disse-lhes: “Olhem! Aí está ele de novo!” Como estava rindo, eles começaram a rir também. M avançou e prosternou-se diante do Mestre37 . Até então, inclinara-se diante dele com as mãos juntas, como o fazem as pessoas educadas à inglesa, mas naquele dia aprendeu a prosternar-se como um hindu. Depois tomou assento. O Mestre explicou então a Norendro e aos outros o que o fizera rir: “Ouçam! Um dia, alguém deu uma pílula de ópio a um pavão às quatro horas da tarde, e no dia seguinte às quatro horas em ponto, o pavão voltou para buscar sua pílula”. Todos riram de novo. M pensou: “Ele está certo outra vez!” De fato, a noite inteira e o dia inteiro, M só havia pensado numa coisa: “Quando vou voltar? Não quero ir a nenhum outro lugar, preciso voltar lá”, como se o estivessem puxando por uma corda!

O Mestre fazia brincadeiras com os rapazes como se fosse da idade deles, e ondas de enormes gargalhadas percorriam a assistência. Dir-se-ia um bando de adolescentes numa festa de aldeia. M perguntava-se: “Será que foi realmente ele que eu vi em êxtase ontem, repleto de um extraordinário amor a Deus? Será realmente o mesmo que agora se comporta de maneira tão simples? O mesmo que no primeiro dia me fez reprimendas, perguntou ‘E você, você é instruído?’, falou-me das duas verdades de Deus com e sem forma? Ele que me disse que Deus é a única realidade e todo o resto passa? Que me disse para viver com a atitude da criada?”

O Mestre divertia-se muito, e de vez em quando lançava uma olhada para M. Vendo que este refletia em silêncio, dirigiu-se a Ramlal: “Como está sério! Ele é um pouco mais velho que os outros, então se cala quando todos se divertem”. Naquela época M tinha aproximadamente vinte e sete anos.

A conversa mencionou Hanuman, o perfeito servo de Deus, cuja imagem estava pendurada na parede. O Mestre disse: “Vejam como Hanuman é extraordinário! A riqueza não o interessa, nem a fama, nem a saúde, nada disso — só o amor do Senhor. Quando ele foi pegar a arma mágica que Ravana38 havia ocultado no pilar de cristal, a esposa de Ravana trouxe todo tipo de frutas, pensando que o macaco ficaria tentado e assim ela aproveitaria para retomar a arma. Mas Hanuman não era tão ingênuo, ouçam o que ele responde:

 

Que necessidade tenho eu de tuas frutas?

Obtive uma fruta melhor que todas as outras,

A fruta da libertação, colhida na árvore de Rama,

Essa árvore que concede todos os desejos!

Ao pé dessa árvore tomei refúgio.

A fruta que se deseja é a fruta que se consegue,

E a fruta que acabo de recolher em tua casa

Será para vós uma fruta amarga.

 

O Mestre canta e entra em êxtase: com o corpo rígido novamente, com o olhar fixo, sentado, como na foto que temos dele. Os rapazes que se divertiam ruidosamente  calaram-se e olham compenetrados para ele. Pela segunda vez, M é testemunha daquele estado. Um momento depois, ocorre uma mudança: o corpo se distende, os lábios sorriem, os sentidos retomam suas funções, lágrimas de alegria correm no canto dos olhos, e o Mestre diz “Rama, Rama”. M pensou: “Um momento atrás esse homem admirável divertia-se com os jovens, como se fosse um menino de cinco anos!”

O Mestre havia recobrado os sentidos e comportava-se como uma pessoa comum. Dirigiu-se a Norendro e M: “Gostaria muito de ouvir vocês dois discutirem em inglês”. Eles puseram-se a rir e começaram a falar juntos, mas em bengali. Na presença do Mestre, M perdera definitivamente suas faculdades de discussão, e aliás, discutir o quê? Por mais que o Mestre insistisse, não houve discussão naquele dia.

 

10  Soaram as cinco horas, e os devotos se foram uns após os outros. Ficaram M e Norendro. Este pegou seu pote para água e foi na direção do grande tanque do jardim para refrescar as mãos e o rosto. M passeou aqui e ali entre os templos, depois dirigiu-se também para o tanque. Norendro estava de pé na escada, com o pote de cobre na mão, e Sri Ramakrishna estava perto dele, dizendo-lhe: “Por que você não vem mais vezes? Depois dos primeiros encontros, é preciso passar para as coisas sérias, como quando se arranja um casamento! — M e Norendro estouraram de rir — Quando você vai voltar?” Norendro, como bom discípulo do Brahmosamaj, era apegado à estrita verdade. Respondeu: “Assim que puder”.

Voltaram ao quarto, passando em frente ao bangalô dos proprietários. Perto dali, o Mestre dirigiu-se a M: “Os camponeses que vão comprar um boi na feira sabem distinguir um bom boi de um ruim. Eles põem a mão debaixo do rabo do boi. Se não reage, é porque não vale nada. Se pula e se debate, é um boi bom, pode-se comprá-lo. Norendro é desse tipo. Tem muita energia”. Começou a rir e disse: “Existem pessoas que são moles como a sopa de arroz, que faz bluc, bluc!”

A tarde caía e ele foi tomado pelo pensamento de Deus; deixou M, dizendo: “Vá discutir um pouco com Norendro, depois você me diz o que acha”.

Um momento mais tarde, com efeito, depois do culto, M encontrou Norendro à beira do Ganges. Começaram a conversar. Norendro lhe disse que era membro do Brahmosamaj, que havia começado a universidade, etc.

A noite caíra, e M despediu-se. Mas não conseguia ir embora, e saiu à procura do Mestre. Sentia tanta vontade de ouvi-lo cantar! Percorreu os lugares. Tudo estava às escuras. No templo de Kali brilhavam duas lâmpadas e em frente, no vasto natmandir*, havia também um pouco de luz. O Mestre estava ali, sozinho, caminhando de um lado para o outro. M desejava ouvi-lo, como uma serpente deseja a música do mágico. Aproximou-se e perguntou timidamente: “Ainda vamos cantar hoje?” O Mestre saiu de sua distração e disse: “Não, por hoje chega”. Depois teve uma idéia. Disse: “Escute, eu vou a Calcutá na casa de Boloram39 , é só você ir, a gente vai cantar”. — “Está bem, senhor”. — “Você conhece? Boloram Boshu?” — “Não, senhor. — Boloram Boshu... sua casa em Boshpara? — Está bem, senhor, eu me informarei.”

O Mestre e M caminhavam pela grande sala, um ao lado do outro. De repente Sri Ramakrishna perguntou a M: “O que você acha de mim? Quanto por cento40 de sabedoria eu tenho na sua opinião?” M respondeu: “Não sei o que quer dizer ‘por cento’, mas quanto ao amor, a fé, a sinceridade, a renúncia, ainda não encontrei ninguém como o senhor”. O Mestre sorriu. Após esse diálogo, M prosternou-se diante do Mestre e despediu-se.

Já estava na porta de saída quando lhe veio um pensamento que o fez dar meia volta. Retornou à sala de dança onde, na penumbra, o Mestre continuava caminhando de um lado para o outro — sozinho com seus pensamentos, como na floresta um leão solitário, independente, desapegado. M contemplava em silêncio aquele espetáculo impressionante.

“Você voltou?” — “Voltei: pensei que é uma casa de ricos. O que eu iria fazer lá? Prefiro não ir. Posso voltar para vê-lo aqui?” — “Ah, não! Por quê? Você vai dizer simplesmente que quer me ver e alguém o levará para junto de mim!” M disse: “Então está bem, senhor”, saudou o Mestre e saiu novamente.

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TRÊS LEMBRANÇAS

No início da quinta parte dos “Diálogos” figuram algumas lembranças breves referentes ao mesmo período. A primeira descreve com poucos detalhes a sessão de kirtan na casa de Bolorama, de quem acabamos de ouvir falar — a primeira à qual M assistiu. A brevidade do texto parece indicar que M ainda não tomava notas detalhadas.

 

11  Como o Mestre havia dito “Irei a Calcutá, em casa de Boloram, vá encontrar-se comigo”, M lá foi. Era sábado, 11 de março de 1882, cerca de oito ou nove horas da manhã, no dia da festa do Carro. Rama, Monomohon41, Rakhal42, Nittogopal43 e numerosos outros devotos rodeavam o Mestre. Todos cantaram o nome de Hari até ficarem embriagados, e muitos atingiram estados de exaltação. Nittogopal entrara em êxtase, e seu peito estava vermelho-sangue44. Quando todos se sentaram, M foi prosternar-se diante do Mestre. Viu então que Rakhal estava estendido, sem consciência externa; era a segunda vez que atingia assim o êxtase. O Mestre veio passar-lhe a mão no peito, dizendo “paz, acalme-se”. Rakhal morava então em Calcutá na casa dos pais, e vinha de vez em quando ver o Mestre em Dakshineswar. Naquela época, freqüentava a escola do Sr. Biddashagor45 em Shempukur. Depois, todos os devotos sentaram-se na varanda e compartilharam o prasad46. Boloram permanecia humildemente de pé, como um serviçal. Não se poderia imaginar que ele fosse o dono da casa.

M não falou muito com os outros, pois ainda não conhecia ninguém, exceto Norendro, que encontrara em Dakshineswar.

 

12  Alguns dias mais tarde, M estava sentado perto do Mestre em Dakshineswar, na escada dos templos de Shiva, por volta das quatro ou cinco horas da tarde. O Mestre estava em êxtase.

O Mestre acabava de descansar em seu quarto, estendido no chão. Outrora havia sempre alguém de plantão para zelar por ele47, mas desde a demissão de Hridoy48 encontrava-se numa situação pouco confortável. Com a chegada de M, saíram ambos conversando e sentaram-se nos degraus dos templos de Shiva, em frente ao templo de Radha e Krishna. Subitamente, o olhar do Mestre voltara-se para aquele templo e ele entrara em êxtase.

Estava falando com a Mãe do Universo: “Mãe, todos eles dizem ‘É meu relógio que está com a hora certa’. Cristãos, brahmos, hindus e muçulmanos, cada um acha que a sua religião é a verdadeira religião. Na realidade, Mãe, nenhum desses relógios dá a verdadeira hora. Quem poderia Te conhecer realmente? Mas se alguém Te chama com todo o seu desejo e obtém Tua graça, qualquer um desses caminhos o levará a Ti. Mãe, leva-me para ver como os cristãos Te invocam em suas igrejas! Mas o que vão dizer as pessoas se eu entrar lá? E se criarem caso? E se depois não me deixarem mais entrar no Teu templo? Então Tu me deixarás ver a igreja só da porta.”

 

13  Outra vez, o Mestre estava sentado em seu quarto, sobre a pequena cama, com o rosto sorridente. M acabava de chegar com o Sr. Kalikrishno49. M não lhe dissera onde o levaria: “Conheço um bom comerciante de vinhos, venha comigo; eles têm um tonel grande”. Foi somente ao chegar que ele explicou tudo ao seu amigo, e ambos se prosternaram diante do Mestre50. Riram muito da história, e o Mestre também.

O Mestre lhes disse: “A alegria do louvor, a alegria do êxtase, isso é que é o verdadeiro vinho; o vinho do amor. A meta da vida humana é o amor a Deus. E o caminho da devoção é o melhor de todos. Conhecer Deus pela via da discriminação é muito difícil”. Depois cantou um canto de Ramprasad51 :

 

Quem pode compreender Kali?

   Ela escapa aos olhares dos seis pontos de vista.

A alma próxima do alvo

   Sabe que Kali é idêntica ao Absoluto.

Em tudo o que acontece,

   Revela-se a vontade da Jogadora.

Na matriz de Kali,

   Tomou forma a imensidão do universo.

Só o olhar de Shiva

   Tem o poder de discernir Sua natureza.

O yogui A contempla,

   Entre o lótus da base e o do vértice52.

Entre suas mil pétalas,

   Unem-se os dois cisnes53 , macho e fêmea.

Zombam, diz Prasad,

   De quem deseja atravessar o oceano a nado.

O coração pode conhecer Kali,

   Mas a mente é um anão que deseja agarrar a lua!

 

O Mestre repetiu: “Sim, o objetivo da vida é amar a Deus. Como em Brindabon54 os jovens pastores e as pastoras (as gopis) amavam Krishna. Quando Ele deixou Brindabon para tornar-se rei de Mathura, os pastores vagavam pela floresta chorando, na dor de ficarem separados dEle”. O Mestre ergueu o olhar para o céu e pôs-se a cantar.

 

Vi um jovem pastor — sob os galhos de uma jovem árvore,

Carregando um bezerro recém-nascido, repetindo:

“Onde Tu estás, meu irmão?

Para onde foste, Krishna55?”

Ele só conseguia dizer “Krish”,

De tal modo o pranto sufocava sua voz,

De tal modo seus olhos estavam cheios de lágrimas.

 

Os olhos de M encheram-se de lágrimas ao ouvir o Mestre cantar assim.

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DIÁLOGO 2*

NO BARCO COM KESHAV: 27 de outubro de 1882

 

Este diálogo vem como segundo na tradução de M, e nós o deixamos nessa posição (invertendo a ordem cronológica) em razão de seu encanto excepcional, dado o cenário (o passeio no Ganges) e a profunda amizade que ligava Ramakrishna e Keshav — amizade que espantava seus contemporâneos e pode ainda espantar-nos. Keshav não deixa de valorizar Ramakrishna diante de seus próprios discípulos, e é por isso que algumas parábolas de Ramakrishna alcançam aqui sua forma mais bela. Percebemos também a amizade entre Ramakrishna e Vijay, que reencontraremos em seguida.

 

1  Estamos na sexta-feira, 27 de outubro de 1882, dia de Lakshmi. O Mestre está sentado em seu quarto no templo de Kali, conversando com Bijoy1, Horolal e outros, quando alguém entra avisando a chegada de Keshob num barco2 em frente ao cais. E logo alguns discípulos de Keshob chegam e saúdam o Mestre: “Senhor, viemos convidá-lo para um passeio no rio; Keshob Babu3 está no barco, foi ele quem nos mandou”.

São quatro horas da tarde; o Mestre entra numa canoa para ir a bordo, acompanhado por Bijoy4. Nem bem se acomoda no barco, entra em êxtase.

De pé na ponte, M o via aproximar-se. Por volta das três horas ele fora ao encontro do grupo de Keshob5 em Calcutá, com um enorme desejo de assistir ao seu encontro com o Mestre, de testemunhar sua alegria mútua, e acompanhar sua conversa. Pela sua eloqüência e pureza de caráter, Keshob se tornara o herói da juventude de Bengala, e numerosos eram aqueles que, como o próprio M, amavam-no e admiravam-no de todo seu coração.

 

Keshob havia sido educado à inglesa, conhecia bem o pensamento e a cultura do Ocidente e rejeitava o culto dos deuses e deusas hindus, que chamava de idolatria. Mas por outro lado, coisa admirável, tinha uma grande veneração por Sri Ramakrishna e ia sempre a Dakshineswar para encontrá-lo. Isso parecia um mistério para muitas pessoas (M em particular), que tentavam entender como duas mentes tão diferentes podiam compreender-se. Como Keshob, o Mestre adorava Deus sem forma, mas aceitava também as formas divinas. Reconhecia o Absoluto sem atributos, mas oferecia flores e pasta de sândalo às imagens dos deuses e deusas, cantava, dançava e entrava em êxtase na presença deles. Visto do exterior, não parecia um sannyasin: dormia numa cama, usava dhoti* com orla vermelha, camisa e chinelos. Mas mentalmente era completamente desapegado, sem família nem posses, e era por isso que as pessoas o chamavam paramahamsa. Ao contrário, Keshob, que pregava Deus sem forma, não rejeitava a vida em família, tinha esposa e filhos, dava conferências em inglês, escrevia nos jornais, e era um homem rico que cuidava de seus negócios.

 

Keshob e os brahmos estavam reunidos na ponte do barco para admirar o espetáculo dos templos: no primeiro plano, o cais e a majestosa escada de pedra que descia até o Ganges. No alto da escada, paralelamente ao rio, a fileira dos doze pequenos templos de Shiva, seis de cada lado. Atrás destes, destacando-se no céu azul e luminoso do outono, as torrezinhas brancas do templo da Mãe, e ao norte um pavilhão para música e as árvores grandes do panchavati. Ao sul, o outro pavilhão de música, mais árvores grandes e, entre os dois, ao longo do Ganges, um jardim coberto de flores. O céu azul se refletia no rio, o mundo estava impregnado pela doçura do outono, e interiormente o coração dos brahmos correspondia àquela atmosfera. O céu acima, a beleza dos templos em frente, aos seus pés o Ganges sagrado ao longo do qual, desde milênios, os sábios da Índia meditavam no Senhor — e vindo até eles, em êxtase no barco, aquele homem incomparável que encarnava toda a religião da Índia. Quantas vezes numa vida pode-se assistir a tal espetáculo? Que coração de pedra não ficaria em alvoroço?

 

2  O barco aproximava-se, e os brahmos acorriam para olhar o Mestre em êxtase. Keshob estava muito ansioso por vê-lo em segurança no barco. Fizeram-no subir bem devagar e com muita dificuldade. Ele apoiava-se num devoto e mal podia mexer as pernas. Entraram na cabine, Keshob e os brahmos o saudaram respeitosamente, mas ele não reagiu. No meio da cabine havia uma mesa e algumas cadeiras, e fizeram-no sentar-se em uma delas; Keshob pegou uma, Bijoy também, e os outros brahmos sentaram-se no chão, pelo menos aqueles que conseguiram lugar — muitos não puderam entrar, e comprimiam-se na porta para olhar. O Mestre estava de novo completamente absorto, sem nenhuma consciência externa, e todos os olhos estavam fixos nele.

Keshob achava que havia gente demais no local e que isso era penoso para o Mestre. Também estava descontente por ver Bijoy: este se separara dele quando do casamento de sua filha, juntara-se ao Sadharan Brahmosamaj, e o atacara publicamente várias vezes. Levantou-se e foi abrir a escotilha.

Os brahmos continuavam a olhar o Mestre, que ia saindo pouco a pouco de seu êxtase. Falava sozinho, com uma voz indistinta: “Mãe, por que me trouxeste aqui? Será que eu posso tirá-los de suas barreiras?” Talvez ele visse que os mundanos ficam fechados por barreiras, com as mãos e os pés atados pelas preocupações do mundo; não só não podem sair como também sequer adivinham a luz do lado de fora, e crêem que o objetivo da vida humana é o bem-estar físico, o sexo e o dinheiro.

Enquanto ele recobrava os sentidos pouco a pouco, Nilmadhod Babu de Ghazipur e outro brahmo começaram a falar de Pawhari Baba6. Um brahmo dirigiu-se ao Mestre:

- Senhor, eles foram ver Pawhari Baba em Ghazipur. Ele é assim como o senhor!

O Mestre ainda não conseguia falar. Respondeu com um sorriso.

- Senhor, Pawhari Baba colocou a sua foto na parede do quarto dele.

O Mestre sorriu novamente e mostrou com o dedo seu próprio corpo, dizendo: “Uma capa!”

 

3  Talvez ele quisesse dizer: como a capa que cobre a almofada, o corpo envolve a alma, o perecível envolve o imperecível. Então para que pendurar uma foto do envelope? Para que demonstrar respeito ao que é perecível? É melhor prestar culto ao Senhor, o guia interior do homem, que mora em seu coração*.

O Mestre voltara ao estado normal, e começou a falar.

SR — Dizem que a morada preferida do Senhor é o coração de seu adorador. Ele está por toda parte, mas é ali que gosta de ficar. Como um grande proprietário que pode percorrer todo o seu domínio, mas gosta de ficar numa determinada sala onde recebe as pessoas. Assim, o coração do devoto é a sala onde reside o Senhor.

Essas palavras alegraram os brahmos. O Mestre prosseguiu:

- Aquele que os vedantistas7 chamam Uno, Aquele que os yoguis chamam Alma, é Esse mesmo que os devotos chamam de Senhor. Quando um brâmane celebra o culto, chamam-no sacerdote; quando ele prepara a comida, chamam-no brâmane-cozinheiro. Os vedantistas discriminam sempre: o Absoluto (Brahman) não é nem isso nem aquilo; nem o corpo nem o espírito, nem o mundo. Assim, pouco a pouco, eliminando o essencial, a mente se imobiliza, as construções mentais se desfazem, o êxtase (samadhi) se produz, e então vem o conhecimento do Uno (Brahman). Aquele que conhece Brahman sabe que Ele é a realidade, que o universo é uma ilusão, que os nomes e formas são apenas sonhos. Acontece que a boca não consegue expressar o Uno, e também não convém chamá-Lo de Deus Pessoal. Assim fala o vedantista.

O devoto, ao contrário, não rejeita nada. Para ele o estado de vigília também é uma realidade, ele não diz que o mundo é um sonho, mas que o universo é a glória do Senhor: o céu estrelado, a lua, o sol, as montanhas e o oceano, o homem e os animais. Tudo isso Ele criou. Ele está dentro do coração e também fora do coração. Chegando ao termo, o devoto percebe que o próprio Deus tomou a forma dos vinte e quatro princípios cósmicos8, dos seres vivos e do universo. Mas a alegria do devoto é comer açúcar, e não transformar-se em açúcar (risos). Vocês compreendem seu estado de espírito? Ele diz: “Ó Senhor, Tu és o mestre e eu o servo, Tu és a mãe e eu o filho, Tu és meu pai e minha mãe, Tu és o todo, eu sou a parte”. Mas ele não gosta de pensar “eu sou o Uno, eu sou Ele”.

O yogui também se esforça para alcançar a Alma suprema. Seu objetivo é a união entre a alma individual e a Alma Suprema. Ele procura desligar a mente dos objetos e fixá-la na Alma Suprema. A primeira condição é buscar a solidão, adotar uma postura firme e imóvel, e meditar concentrando a atenção num único ponto.

Mas existe apenas uma única realidade, as diferenças estão só na expressão; o Absoluto do vedantista, a Alma Suprema do yogui e o Senhor do devoto são um só!

 

4  O barco havia tomado a direção de Calcutá, mas aqueles que estavam sentados na cabine junto com o Mestre e o escutavam em silêncio não se deram conta e não disseram nada: uma abelha que sorve o néctar não zumbe.

Pouco a pouco os templos desapareceram ao longe. A água com reflexos azuis, agitada pelas rodas da embarcação, formava grandes ondas de espuma cujo ruído chegava até a cabine. Mas os devotos não ouviam. Haviam sido cativados por aquele homem sorridente, radiante de alegria, que não conhecia nem possuía nada além de Deus. Ele prosseguiu:

- O vedantista que busca o absoluto diz o seguinte: os processos de criação, preservação e destruição, o ser individual, o mundo, tudo isso é o jogo da Energia divina9 . Analisando-a, descobre-se que é apenas um sonho: só o Absoluto (Brahman) é real, todo o resto é irreal, e a própria Energia é irreal, um sonho. Muito bem, mas mesmo que você analise isso mil vezes, é só no êxtase (samadhi) que você escapa da Energia. Logo que você sai dele, o simples pensamento “estou meditando”, “estou analisando” coloca você novamente sob o domínio de sua lei, em seu reino!

Desse modo, não há diferença entre o Uno e sua Energia (Shakti). Se você aceitar um terá que aceitar o outro, como o fogo e seu poder de queimar: se você pensa no fogo, pensa também no poder de queimar. Você não pode conceber esse poder sem fogo, nem um fogo que não queimasse. Se você pensa no sol, pensa em sua luz: daria para imaginar o sol sem seus raios de luz? E o leite? É totalmente branco. A brancura do leite não vem sem o leite, nem o leite sem sua brancura. Da mesma forma, o Absoluto é inseparável de sua Energia, e a Energia inseparável do Absoluto. O Jogo10 do universo é inseparável da Eternidade, e a Eternidade inseparável do Jogo.

É a Mãe11 que é a Jogadora, que realiza a criação, a preservação e a dissolução. Seu Nome é Kali. Ela é Brahman, o Absoluto, e Brahman é Kali. Existe apenas uma Única Realidade. Quando penso nEla como inativa, fora do Seu trabalho de criação, preservação e destruição, então eu A chamo Brahman. Quando Ela realiza toda essa obra, eu A chamo Kali, eu A chamo Energia, Shakti. Um único ser com vários nomes.

É como um reservatório de água com várias escadas. Por uma delas descem os hindus para buscar água, e eles a chamam jol; pela segunda descem os muçulmanos, e eles a chamam pani, e por uma outra os ingleses que a chamam water. Mas é sempre a mesma água. Ora, Ele também pode ser chamado Allah ou God, outros dirão Rama, Hari, Jesus, Durga.

Keshob sorriu e perguntou: “Sob quais formas Kali joga o Seu Jogo? Por favor, explique-nos de novo12 !”

SR (sorrindo) — Ela joga de muitas maneiras! Ela pode ser Kali a Grande, Kali a Eterna, Kali a Terrível, Kali a Salvadora, Kali a Azul (Shyama). Nos Tantras13 se fala de Kali a Poderosa e Kali a Eterna. Quando a criação é dissolvida e não há nem lua, nem sol, nem estrelas, nem planetas, nem terra, nada a não ser uma escuridão profunda, então Kali a Grande, a Mãe sem forma, está ali sozinha — Kali reunida a Kala14 . Chamamos Shyama, “a Azul”, a Mãe cheia de ternura, oferecendo suas dádivas e trazendo coragem e proteção; cultos lhe são oferecidos nas famílias. Em caso de epidemia, fome, seca, inundação, invoca-se Kali a Salvadora. Kali a Terrível encarna a destruição e a ruína, mora nos campos de cremação, em companhia de cadáveres, chacais, demônios femininos aterrorizadores. O sangue escorre de sua boca; ela usa um colar de crânios e um cinto de mãos humanas.

Quando o mundo é aniquilado, por ocasião da grande dissolução, é a Mãe que preserva as sementes da criação. Como uma boa dona-de-casa que conserva em sua cozinha um vidro grande, cheio de pequenas coisas que talvez possam servir uma dia: um osso de lula, pílulas azuis, um saquinho com sementes de abobrinha e moranga (Keshob e os outros riem), da mesma forma a Mãe reúne as sementes da próxima criação. Então a Shakti Primordial tira o universo de seu próprio ser, depois estabelece nele a Sua morada. Nos Vedas se diz urnanabhira, ou seja, a aranha e sua teia. A aranha tece o fio a partir de sua própria substância, depois instala-se no centro de sua teia. Do mesmo modo Deus contém o mundo e fica contido nele.

Kali é realmente negra15 ? Pode parecer negra de longe, mas é só uma aparência. O céu parece azul de longe, mas de perto o ar é incolor. A água do oceano parece azul de longe, mas se a pegarmos na mão veremos que é transparente.

Tendo dito isso, o Mestre ficou como que embriagado, e cantou um hino à Mãe.

 

Por que chamá-La Negra, Aquela que ilumina o coração...

 

5  SR (a Keshob) — É Ela que nos acorrenta, e é Ela também que nos liberta! Ela é a Feiticeira (Maya) que prende o mundano com os laços do sexo e do dinheiro, mas é a Sua graça que traz a libertação. Ela é “Tara, Aquela que destrói as correntes do mundo”.

Tendo dito isso, pôs-se a cantar um canto de Ramprasad16, com sua voz incomparável:

 

O mundo é a praça do mercado, onde Shyama solta pipas.

O vento que as levanta é a esperança, a corda é a magia da Mãe,

A carcaça é feita de ossos, uma maravilha de armação,

E o tecido que se desenrola é o corpo de um homem vivo.

Na corda o vidro agudo, são todas as preocupações do mundo.

Entre cem mil pipas, uma ou duas rompem sua linha,

E a Mãe alegra-se, ri batendo palmas!

A graça soprou sobre a minha, diz Prasad. Ela levanta vôo.

O vento do sul a levará para a outra margem do oceano.

 

Ela brinca, e o mundo é Seu brinquedo! É Ela que concede os desejos; Ela distribui a alegria, a feiticeira!  E Ela dá a libertação a um homem em milhares.

UM BRAHMO — Senhor, para libertar-nos todos bastaria que Ela o quisesse. Então por que nos mantém atados ao mundo?

SR — É assim. Ela quer que todos brinquem juntos. É como quando as crianças brincam: enquanto estão tocando a mão da “avó”, ninguém pode pegá-las e elas podem descansar. Mas se todas se refugiassem junto da avó, não haveria mais brincadeira. Então a avó as obriga a deixá-la, para que corram. A brincadeira é seu prazer, e é assim que ela ri, batendo palmas, e só deixa escapar um ou dois participantes! (Todos riem).

Ela olha a alma piscando um olho e lhe diz: “Vá dar uma voltinha no mundo!” Não é culpa da alma! Quando chega o momento, a Mãe fica com pena e chama-a de volta, liberta-a da cegueira do mundo e deixa-a tomar refúgio a Seus pés de lótus.

Novamente o Mestre cantou uma canção de Ramprasad, que descreve uma alma prisioneira fazendo censuras à Mãe:

 

Ó Mãe, o que me desola

É que apesar de meus olhos abertos,

E embora eu seja Teu filho,

Sou roubado em minha casa.

Queria repetir Teu Nome,

E o tempo passa inutilmente.

Agora eu Te compreendi!

Queres tomar sem nada oferecer!

Vou devolver-Te o que dás,

Responderei se me chamares,

É culpa Tua e não minha!

Honra e vergonha, amargo e doce

Beleza e feiúra, tudo vem de Ti!

Prasad diz: são presentes.

Piscando os olhos Tu dás,

E giras a roda do mundo.

 

O homem esquece tudo por influência de Sua Magia17 .Vocês ouviram Ramprasad? Ela pisca e faz girar a roda.

UM BRAHMO — Senhor, é preciso renunciar a tudo para conhecer Deus?

SR — Claro que não! Por quê? Você está muito bem do jeito que está! Você tem o externo e o interno, o açúcar e o melado*. Você conhece o jogo do nax? É preciso chegar a dezessete pontos. Eu ultrapassei o total, estou queimado e me fizeram sair do jogo! Vocês são mais espertos e têm dez, cinco ou seis, então vocês podem continuar, vocês não estão queimados. O jogo precisa continuar (risos).

Afirmo-lhes que não há mal algum em viver em família, com a condição de manter a mente voltada para Deus — senão não dá. Fazer o seu trabalho com uma mão, segurar a mão do Senhor com a outra e, quando o trabalho está terminado, estender-lhe as duas mãos.

Tudo está na mente. As algemas estão na mente, a liberdade na mente. A mente toma a cor da tinta na qual é mergulhada. Como o tecido na cuba do tintureiro. Quando ele põe tinta vermelha, o tecido sai vermelho, tinta azul ele sai azul, tinta verde ele sai verde. Quem aprende inglês logo começa a misturar palavras inglesas no seu bengali, foot-fat-it-meat! (risos). Põe botinas e assobia ao caminhar. A cada instante um pandit cita versos em sânscrito. Se sacudimos um pandit, caem versos em sânscrito. Se você anda com vagabundos, pega o modo de falar deles — e se visita os devotos (bhaktas), vai ficando impregnado pela idéia de Deus e tudo o que a acompanha.

A mente pode tomar diversas atitudes. Um homem tem esposa e filhos. Ama sua esposa como esposa e seus filhos como filhos. Uma só mente, duas maneiras diferentes de amar.

 

6  Escravidão e libertação vêm ambas pela mente. Sou livre! Quer esteja no mundo ou na solidão das florestas, quem poderia me prender? Sou filho de Deus, filho do Rei dos reis, ninguém me acorrentará. Dizem que se um homem for picado por uma serpente e pensar com força “não existe veneno”, então o veneno não agirá. Da mesma forma, se alguém pensar com fé “sou livre, nada me prende”, será libertado.

Uma vez alguém me deu um livro cristão e eu lhe pedi para ler um pouco para mim. Pecado e só pecado! (Dirigindo-se a Keshob) — Entre vocês no Brahmosamaj é igual. Um indivíduo que repete sem parar “sou um pecador, um pecador” acaba mesmo tornando-se um pecador.

Tenham fé no Nome do Senhor: “Pronunciei Seu Nome, o pecado desapareceu, onde foi parar meu pecado?” Krishnokishor era cem por cento hindu, um brâmane de alta casta. Uma vez ele estava em Brindabon18, saiu a passeio e  sentiu sede. Perto de um poço estava um homem, que lhe perguntou: “Você quer tirar água para mim? Qual é sua casta?” O homem respondeu: “O senhor não pode beber pela minha mão, sou da casta dos curtidores”. Krishnokishor respondeu-lhe: “Diga Shiva. Muito bem, agora dê-me água”.

Pronunciar o nome do Senhor purifica o corpo e o espírito. Para que falar de pecado e inferno? Pense “O que fiz de mal não farei mais” e tenha fé em Seu Nome.

O Mestre foi invadido pela emoção e cantou o louvor do Nome:

 

Quero morrer pronunciando Teu Nome, Durga! Durga!...

 

Nunca pedi para a Mãe outra coisa que não fosse amor. Costumava oferecer flores a Seus pés de lótus, dizendo:

 

Mãe, para Ti a virtude, para Ti o pecado, retoma-os, dá-me o amor puro. Mãe, para Ti a pureza19, para Ti a impureza, retoma-as, dá-me o amor puro. Mãe, para Ti o bem, para Ti o mal, retoma-os, dá-me o amor puro.

 

Ouçam este canto de Ramprasad:

 

Vai para junto de Kali, ó minha alma,

A árvore que satisfaz os desejos.

Nela encontramos os quatro frutos20 .

Dos dois companheiros de tua vida,

Abandona a Ação, pega o Desprendimento.

Poderás perguntar o caminho

Ao teu filho Discernimento.

Toma contigo o Puro e o Impuro;

Quando esses rivais se harmonizarem,

A câmara divina se abrirá

Para que contemples Shyama, a Mãe.

Nascido do Egoísmo e da Ignorância,

Expulsa para longe teus dois pais

Se eles te levarem para os abismos.

Segura fortemente no pilar da Paciência.

Amarra ao poste do Sacrifício

O Justo e o Injusto, esses dois bodes,

E se se mostrarem indóceis,

Golpeia-os com a espada do Conhecimento.

Os filhos de tua ex-esposa21 ,

Grita-lhes de longe para que vão embora,

E se teimarem em te seguir,

Afoga-os no saco da Sabedoria.

Se fizeres isso, diz Prasad,

Poderás responder à morte.

Minha mente, meu filho, meu mestre,

Serás o que meu coração deseja.

 

Encontrar Deus no mundo, por que não? Vocês já ouviram falar do rei Janaka22. Quando Ramprasad chamou este mundo um “cenário de ilusão”, responderam-lhe23 que uma vez obtido o fruto do amor,

 

Esse mundo é um palácio de alegria:

Bebo, como e divirto-me.

Jonok foi homem sem igual,

Quem ousa censurá-lo?

Ele aproveitou dos dois lados24

Bebendo o leite a copos fartos.

 

Mas não podemos tornar-nos um rei Janaka de repente! Ele teve que praticar muitas austeridades em solidão. Mesmo se ficarmos no mundo, a solidão é indispensável de vez em quando — deixar o trabalho durante três dias, sair sozinho e chorar diante de Deus é uma coisa boa. Mesmo que haja a oportunidade de um único dia de solidão, aproveitem. As pessoas derramam baldes de lágrimas por seus filhos. É preciso chorar por Deus também. De vez em quando vocês devem ir sozinhos rezar para Deus. No mundo, no meio do turbilhão das preocupações, é muito difícil no início tornar a mente estável. Como uma árvore plantada à beira do caminho: quando ainda é jovem, é preciso protegê-la com uma cerca contra as cabras e as vacas. Depois que o tronco engrossa tira-se a cerca e pode-se até amarrar um elefante nele.

É como um doente que delira, com um pote d’água e saborosos picles de tamarindo em seu quarto. Se quisermos que ele sare, será preciso retirá-los, apesar de sua sede. O doente é o mundano, o pote d’água são os prazeres do mundo, e os picles, que de se pensar dão água na boca, são a companhia das mulheres. Ele precisa de um bom tratamento médico, longe de tudo isso.

É necessário atingir o discernimento e o desapego antes de entrar no mundo. No oceano do mundo vivem crocodilos — o prazer, a cólera, etc. — mas dizem que os crocodilos não atacam aquele que esfregou cúrcuma no corpo. Muito bem, cúrcuma é o discernimento e a renúncia: só Deus é real, eterno, todo o resto é irreal, passageiro. É preciso compreender isso e amar a Deus. As pastoras25 tinham imenso desejo de ver Krishna. Ouçam o que Radha canta:

 

No bosque a flauta de Krishna canta.

Ele me espera com certeza, de pé na trilha.

Como poderia eu ficar aqui?

Amigas, digam-me, vão vir também?

Para vocês Seu Nome não é mais que um nome,

Para mim é o tormento de minha alma,

O som de sua flauta entra em seus ouvidos,

Para mim ele soa até o fundo do coração.

A flauta de Krishna me chama: “Radha, vem!

Sem ti a floresta não tem encanto”.

 

Enquanto o Mestre cantava, seus olhos encheram-se de lágrimas, e ele disse a Keshob e aos brahmos: “Quer acreditem ou não em Radha e Krishna, é preciso que acreditem nessa atração! Façam um esforço para ter esse intenso desejo de Deus. Se conseguirem, verão Deus”.

 

7  A maré baixa se fazia sentir. O vapor avançava rapidamente e encontrava-se agora à altura de Calcutá. Mandaram dizer ao capitão para ultrapassar a ponte e continuar em direção ao jardim botânico. A maioria dos pressentes não seria capaz de dizer quanto tempo havia durado o passeio, nem onde estava o barco, de tal forma estavam ocupados em ouvir Sri Ramakrishna.

Keshob mandara preparar e servir pipoca de arroz e castanha de coco; cada um pegou um pouco na fralda da roupa e começou a comer. Isso divertiu a todos. Durante aquela pausa o Mestre notou que Keshob e Vijoy evitavam olhar-se. Era tão cheio de benevolência para com todos que se dirigiu a eles como a crianças que estão emburradas uma com a outra.

SR (a Keshob) — Hei! Bijoy está aqui! A briga de vocês parece a guerra entre Shiva e Rama (risos): Shiva era o guru de Rama e eles logo se reconciliaram, mas entre os espectros que seguiam Shiva e os macacos que seguiam Rama, as brigas nunca pararam (risada geral). Até em família pode haver brigas. Rama teve que entrar em guerra com seus próprios filhos, Lava e Kusha! Ou ainda, uma mãe e sua nora podem ambas observar o jejum da terça-feira, sem precisar fazer suas devoções juntas; uma irá aqui e outra ali. Você fundou uma igreja, e Bijoy acha que precisa de uma também (risos). Bom, cada uma tem sua utilidade. Lembrem-se: quando o próprio Senhor jogava seu jogo houve os desmancha-prazeres Jatila e Kutila26 . E por quê? Porque sem Jatila e Kutila o jogo fica sem graça (risos). Sem elas não haveria uma verdadeira diversão!

Ramanuja era partidário da não-dualidade moderada27, seu guru da não-dualidade absoluta, e eram discussões teológicas sem fim. Mas eles conservaram seus laços de mestre para discípulo, enquanto seus próprios alunos brigavam.

 

8  A atmosfera havia-se desanuviado. O Mestre dirigiu-se novamente a Keshob:

- As coisas andam mal porque você aceita qualquer um como discípulo, sem examinar sua natureza. As pessoas são parecidas por fora, mas por dentro são diferentes: nestas domina a paz (sattva), naquelas a força (rajas), e noutras a obscuridade (tamas). É como os bolos recheados: todos parecidos por fora, mas ao comê-los pode-se encontrar creme, coco, ou só patê de lentilhas (risada geral)!

Você sabe como eu vivo? Eu me divirto e deixo minha Mãe fazer tudo. Há três palavras que me espetam como espinhos: guru, pai e chefe28. O verdadeiro guru é Deus29, é Ele que dá a instrução. Minha atitude é a de uma criança. Existem milhares de gurus, todos querem ser guru — mas quem quer ser discípulo?

Ensinar religião é muito difícil. Não se deveria fazê-lo sem ter recebido ordem de Deus em pessoa. Narada, Shukadeva, Shankara30 receberam tal ordem. Mas sem mandato de Deus, fala-se e não sobra nada. Você conhece as tagarelices de Calcutá. Enquanto há fogo debaixo da chaleira ela chia, mas pára assim que a lenha acaba. As pessoas de Calcutá são como um camponês que cava um poço. Ele diz que está procurando água, mas quando encontra pedras grandes vai cavar mais longe; ali ele encontra areia, pára e recomeça novamente do zero. É assim que eles são.

Mas não deve ser uma ordem imaginária: estou lhe dizendo que podemos realmente vê-Lo e falar com Ele, e receber a ordem de ensinar — e então que poder terão nossas palavras! Elas removerão as montanhas. Mas conferências, para quê? As pessoas ouvem, saem e esquecem tudo; o resultado é nulo.

Existe em algum lugar31 uma lagoa chamada Haldarpukur. Alguém se acostumara a fazer suas necessidades à noite na ribanceira, e os que vinham banhar-se pela manhã ficavam enojados. Gritavam como podiam, mas no dia seguinte era a mesma coisa (risos). Então eles se dirigiram à administração e veio um guarda de uniforme que colocou uma placa “Proibido depositar lixo”, e os aborrecimentos cessaram.

Para ensinar é preciso usar o uniforme de Deus. Senão as pessoas zombam. A autoridade não vem de nós mesmos, mas de outrem. Um cego conduzindo um cego o faz tropeçar (risos). Faz-se mais mal do que bem. Só aquele que alcançou Deus recebe o olhar interior que distingue o bem do mal, adivinha do que os seres humanos padecem. Então pode curá-los.

Sem uma ordem de Deus, é orgulho dizer “vou ensinar”. O orgulho vem da ignorância. O ignorante diz: “Sou eu que estou agindo”. É Deus que age, Deus que faz tudo, eu não faço nada. Se compreendermos isso alcançaremos a libertação. Ao pensar “eu trabalho, eu ajo”, perde-se a paz e encontra-se o sofrimento.

 

9  Todos vocês falam em ajudar o mundo. O mundo é algo enorme! Quem são vocês para ajudá-lo? Pratiquem sua religião, vejam Deus, assim terão Sua força para ajudar o mundo, assim poderão fazer o bem. Senão, não terão êxito.

UM BRAHMO — Então, enquanto não se viu Deus deve-se ficar inativo?

SR — Por que inativo? Pensar em Deus, cantar Sua glória, trabalhar com desapego, há muito que fazer!

O BRAHMO — Mas e a família, o dinheiro?

SR — Claro, isso também, mas só o necessário para sustentar a família. E orar a Deus em solidão: “Por favor, permite que eu faça tudo isso de maneira desinteressada! Por favor, diminui minhas obrigações, pois quanto mais fico ocupado, menos penso em Ti. Fico imaginando que trabalho sem apego, mas na verdade sinto prazer e trabalho para mim. Faço muitos donativos para organizações de caridade, mas é para que falem bem de mim”.

Shombhu Mollik32 falava sem parar em fundar hospitais, dispensários, escolas, abrir estradas, cavar reservatórios de água. Eu lhe disse: “Não saia à procura dessas coisas, faça o bem que encontrar para fazer no seu caminho, e isso sem buscar satisfação pessoal. Não é bom ficar aumentando suas responsabilidades, você vai acabar esquecendo Deus. Um dia um homem foi ao Kalighat33, e passou todo o tempo à porta distribuindo esmolas sem sequer entrar para ver a Mãe (risos)! Faça o contrário: primeiro abra caminho com os cotovelos até a imagem de Kali, e ao sair distribua tudo o que você quiser, muito, se tiver vontade. É para encontrar Deus que você age”.

Eu disse a Shombu: “Imagine que você esteja diante de Deus. Será que você vai lhe dizer Senhor, dá-me tanto e tantos hospitais e tantos dispensários”? (risos). Um devoto nunca diz isso, ele diz: “Senhor, dá-me um lugar a Teus pés de lótus, permite-me ficar em Tua presença, dá-me um amor puro por Ti”.

O caminho da ação desapegada (karma yoga) é muito difícil. Muito difícil também, nesta Era de Ferro34, cumprir os rituais prescritos pelas Escrituras. As pessoas nessa Era passam seu tempo em busca de alimento e não podem mais cumprir todas aquelas cerimônias. É como a febre: antes que os remédios tenham tempo de agir, o doente já está morto. Não se pode mais esperar tanto, agora é dado o Antifebre do Dr Gupta. Em nossa Era de Ferro (kaliyuga), o caminho do amor é o melhor: repetir o nome de Deus e orar. É o que convém ao nosso tempo. (Dirigindo-se aos brahmos) — Vocês são bhaktas, repetem o nome de Deus, rezam para a Mãe; em verdade são abençoados, sua atitude é a melhor! Vocês não afirmam que o universo é um sonho como os vedantistas, vocês são devotos. Pensam que Deus é Pessoal. Muito bem! Se O chamarem com verdadeiro desejo, certamente O verão.

 

10  O barco voltara ao cais, e cada qual se preparou para descer. Na saída da cabine, a lua cheia de outubro brilhava pura no céu e refletia-se no Ganges, dando à cidade um resplendor mágico. Trouxeram um fiacre* para o Mestre, e M instalou-se com um ou dois discípulos. Nondolal, o sobrinho de Keshob, subiu também para acompanhar o Mestre um pouquinho. Quando todos já estavam sentados, deram pela falta de Keshob: “Onde está ele? Onde está Keshob? E puseram-se a olhar por todos os lados. Ele chegou sozinho, sorridente, perguntando: “Vocês vão todos com ele?” Depois prosternou-se diante do Mestre e tomou a poeira de seus pés35. O Mestre disse-lhe adeus com muita afeição.

O carro pôs-se a caminho por uma larga avenida do bairro inglês. A lua cheia subia no céu, iluminando casas esplêndidas que pareciam congeladas pelo frio, imaculadas ao luar. Dois bicos de gás brilhavam em cada porta, e guirlandas de lâmpadas ao longo das janelas. De vez em quando ouvia-se música, harmônio ou piano, ou uma voz de mulher cantando em inglês. O Mestre ria de prazer. Depois disse: “Estou com sede. Como vamos fazer?” Nondolal mandou parar o veículo em frente ao India Club, subiu para buscar um copo de água e voltou. O Mestre perguntou sorrindo: “O copo está limpo?” Nondolal respondeu que sim, e o Mestre bebeu36. Estava alegre como uma criança e inclinava-se o quanto podia para ver melhor as pessoas, os veículos, os cavalos, as luzes. Em Kolutola, Nondolal desceu e o carro seguiu pela Shimulya Street para chegar à casa de Shurendronath Mittro, que o Mestre chamava carinhosamente de Shuresh37. Era um discípulo fervoroso do Mestre38, mas não estava em casa; fora ver sua nova casa de campo39. As pessoas da família convidaram o Mestre a sentar-se numa sala do andar térreo. Quem ia pagar o fiacre até Dakshineswar? Se Shurendro estivesse lá cuidaria disso, mas como fazer? O Mestre disse aos discípulos: “Então vão pedir para as senhoras! Elas sabem muito bem que os maridos costumam nos visitar”, e todos riram.

Norendro morava no bairro e o Mestre mandou buscá-lo. Abriram um salão no primeiro andar e estenderam uma esteira para sentar-se. Duas ou três pessoas puseram a cabeça na porta para olhar. Na parede havia um quadro pintado a óleo segundo as instruções de Shurendro, que representava o Mestre mostrando a Keshob a unidade de todas as religiões: hindus, muçulmanos, cristãos, budistas, e as diferentes seitas da Índia: vaishnavas, shaivas, shaktas40.

O Mestre sentou-se sorrindo e já estava começando uma conversa quando chegou Norendro, o que lhe deu uma alegria sem igual. Ele disse: “Você precisava ver que passeio de barco nós fizemos com Keshob! Bijoy estava lá e todo mundo”. Depois indicou M: “Pergunte para ele41 o que eu disse a Keshob e Bijoy, e como a sogra e a nora fazem suas devoções da terça-feira, e Jatila e Kutila que são necessárias para o jogo não ficar sem graça, tudo o que foi dito”. (Virando-se para M) — “Não é?” M respondeu: “Sim, senhor”.

A noite avançava e Shurendro ainda não voltara. Era preciso retornar a Dakshineswar, pois já eram nove e meia. A rua ainda brilhava ao luar, e o Mestre subiu no fiacre, enquanto Norendro e M o saudavam. Depois cada um foi para sua casa em Calcutá.

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DIÁLOGO 3*

VISITA AO PANDIT VIDYASAGAR: 5 DE AGOSTO DE 1882

 

Este diálogo é o primeiro da terceira série, mas M o incluiu em sua própria tradução inglesa, numa versão aliás levemente diferente. Tem um pouco menos de encanto que o passeio de barco, mas nós o colocamos logo após1 em razão do seu interesse excepcional. Vidyasagar2 é um homem justamente célebre: um dos fundadores do primeiro Brahmosamaj, do qual se separa em 1859, um dos criadores da prosa bengali, educador, mestre da cultura sânscrita, reformador social, filantropo de caridade universal. Contrariamente aos brahmos modernistas que rodeiam Keshav, Vidyasagar observa as formas exteriores do hinduísmo, mas interiormente “perdeu a fé” em grau maior do que eles3. M dirige uma de suas escolas, admira-o profundamente e parece próximo dele, apesar da diferença de idade. Ele espera portanto partilhar com Vidyasagar sua recente descoberta de Ramakrishna. Para Ramakrishna é a oportunidade de comparar-se com um dos grandes intelectuais de seu tempo, e que é mais que um intelectual.

O encontro não é coroado por uma ligação entre ambos. Vidyasagar deixa Ramakrishna falar, mas não dá ensejo à discussão, mantendo uma reserva respeitosa e irônica ao mesmo tempo. Nunca retribuirá a visita de Ramakrishna. No Diálogo 20, M explica ao doutor Sarkar: “No momento da despedida, cerca de nove horas da noite, Vidyasagar acompanhou o Mestre todo o trajeto, da biblioteca até o carro, carregando ele mesmo a lanterna, e com as mão juntas ficou olhando-o afastar-se. Naquele dia demonstrou-lhe muito respeito. Mas falando com ele mais tarde, vi que não gostava muito de êxtases e coisas desse gênero.”

Talvez, como Shivanath, tenha preferido ficar à distância do turbilhão que significava a convivência com Ramakrishna.

 

1  Sri Ramakrishna está a caminho de Calcutá num veículo de aluguel, em companhia de Bhobonath, Hazra e M. Sua meta é a residência do pandit Isshor Chondro Biddashagor em Badurbagan, ao sul da cidade.

A aldeia natal do Mestre, Kamarpukur, não fica longe de Birsingh, cidade natal de Biddashagor, e desde sua infância o Mestre pôde ouvir falar da caridade deste. Mais tarde, em Dakshineswar, ainda ouviu elogios à sua caridade e sabedoria de pandit. Assim, quando soube que M ensinava numa das escolas de Biddashagor, disse-lhe: “Tenho muita vontade de conhecê-lo. Você poderia me levar para vê-lo?” M falou com Biddashagor, e este aceitou com alegria, propondo encontrá-lo um sábado à tarde. Perguntou-lhe: “Que tipo de paramahamsa4 ele é? Usa guerua5?” M respondeu: “Não, senhor, é um homem realmente surpreendente. Usa dhoti com orla vermelha, camisa e chinelos de verniz, tem um quarto com cama6 no templo de Rashmoni. Dorme num colchão com mosquiteiro. Não usa nenhuma marca religiosa7 externa. No entanto não conhece outra coisa que não seja Deus e pensa nEle dia e noite”.

O carro afastava-se de Dakshineswar. Depois da ponte atravessou Shembajar e entrou na Amherst Street. Os passageiros disseram: “Agora estamos nos aproximando de Badurbagan”. O Mestre tagarelava alegremente como uma criança. De repente, no início da Amherst Street, entrou num estado extático, como se estivesse possuído por Deus. Justamente, o carro estava passando perto da residência de Ram Mohon Ray8 e M, que não havia notado a mudança de atitude do Mestre, disse-lhe para olhar rápido. O Mestre respondeu irritado que aquilo não lhe interessava. Depois perdeu completamente a consciência externa.

Finalmente, o carro parou em frente à casa. Era um sobrado em estilo inglês, rodeado por um jardim com árvores floridas e um muro. Entrava-se pelo oeste, atravessava-se uma sala e subia-se por uma escada ao primeiro andar, onde morava Biddashagor. Ali havia uma sala ao norte, um vestíbulo no meio e dois cômodos ao sul, um dos quais era o dormitório. Por toda parte prateleiras com livros, alguns deles muito preciosos, com belas encadernações. Na extremidade do vestíbulo, de frente para o oeste, uma mesa de trabalho e uma cadeira, e vários assentos para visitantes. Sobre a mesa, todo o material para escrever: papel, canetas, tinteiro, mata-borrão; numerosas cartas, livros de contabilidade encadernados, alguns livros em processo de leitura. A uns poucos metros, o quarto com a cama.

De que tipo eram as cartas9 que cobriam a mesa daquela maneira? Uma viúva lhe pedia para tomar seu filho menor sob sua tutela. Alguém lhe escrevia: “Como o senhor foi para Khormatar, não recebemos o dinheiro a tempo e estamos em dificuldade”. Um aluno pobre escrevia-lhe: “O senhor admitiu-me gratuitamente em sua escola, mas não tenho como comprar meus livros”, ou então: ”Não tenho como alimentar minha família. O senhor poderia me dar trabalho?” Um dos professores de suas escolas informava-o que sua irmã acabava de perder seu marido, que ele tinha assim mais uma família sob sua responsabilidade e pedia-lhe um aumento. Alguém escrevia-lhe da Inglaterra: “Estou aqui em grande dificuldade; o senhor, que é amigo do pobre, poderia mandar-me um pouco de dinheiro para me tirar dessa situação?” Ou enfim: “Rogamos ao senhor que venha em tal data arbitrar nossa querela”.

Todos desceram do carro e M os conduziu em direção à casa. Passavam entre as árvores floridas quando o Mestre, como uma criança, tocou a gola de sua camisa e disse: “Está desabotoada. Não é falta de educação?” Ele estava usando uma camisa comprida, um dhoti orlado de vermelho com a extremidade passada sobre o ombro e chinelos de verniz. M respondeu: “Não se preocupe. Nada será considerado incorreto no senhor. Não precisa abotoá-la”. Como uma criança que obteve a explicação solicitada, o Mestre imediatamente deixou de inquietar-se.

 

2  Subiram a escada e entraram no quarto ao norte, onde os esperava Biddashagor, sentado ao fundo, atrás de uma mesa comprida envernizada. À direita desta achava-se um banco de espaldar inclinado. Entre a mesa e a entrada, e também à esquerda, havia cadeiras. Biddashagor estava conversando com alguns amigos. Quando o Mestre entrou, levantou-se respeitosamente. O Mestre avançou até o lado direito da mesa e ficou de pé, apoiando a mão esquerda sobre a mesa, entre esta e o banco, olhando Biddashagor e sorrindo, sempre em êxtase.

Biddashagor tinha cerca de dezesseis anos a mais que Sri Ramakrishna, ou seja, aproximadamente sessenta e quatro anos. Também estava usando dhoti, chinelos, uma camisa de algodão fiada à mão, e sua cabeça era raspada ao redor à moda das pessoas de Orissa. Quando falava, viam-se muito os seus dentes, que eram artificiais. Tinha a cabeça muito grande, testa alta. Parecia um pouco como um anão. Trazia ao ombro o cordão sagrado dos brâmanes.

Era dotado de grandes virtudes. Em primeiro lugar, o amor pelo conhecimento. Uma vez, conversando com M, tinha-se posto a chorar de fato, dizendo: “Quando eu era jovem, tinha uma vontade imensa de estudar, mas depois de adulto nunca tive tempo!” Em segundo lugar, a compaixão para com todos os seres: achando injusto privar os bezerros do leite da mãe, proibiu-se de tomar leite durante anos, até o momento em que uma doença grave o obrigou a ingerir leite novamente. Nunca subia num veículo puxado por cavalos, por compaixão para com seu sofrimento não expresso10. Um dia, encontrou na rua um carregador prostrado pela cólera, com o cesto ao seu lado no chão; tomou-o em seus braços e levou-o para casa, onde cuidou dele. Era muito independente: em decorrência de uma discordância com as autoridades do Sanskrit College de Calcutá, demitiu-se de seu cargo de diretor. Não fazia diferença entre as pessoas: gostava muito de um dos professores de sua escola; quando este casou sua filha, chegou com simplicidade ao casamento, levando a roupa da cerimônia embaixo do braço11. Tinha um grande amor por sua mãe e cumpria sempre sua palavra; como sua mãe lhe dissera que ele lhe daria muito desgosto se não assistisse ao casamento de seu irmão, prometeu-lhe ir. Saiu a pé de Calcutá, mas ao chegar ao rio Damodar não encontrou barco; atravessou a nado, chegou ainda molhado em Birsingh para o casamento, e disse simplesmente à mãe: “Aqui estou”.

O Mestre continuava de pé, em êxtase. A fim de trazer sua mente de volta ao estado normal, dizia de vez em quando: “Eu queria tomar água12”. Enquanto isso, as crianças da casa e alguns parentes haviam entrado e ficaram ali para vê-lo. Sempre meio absorto, sentou-se no banco, onde já se encontrava um rapaz de dezessete anos aproximadamente, que viera para pedir uma bolsa. Quando o Mestre estava em êxtase, sabia o que havia nas pessoas. Afastou-se um pouco e disse: “Mãe, esse rapaz é terrivelmente apegado! Está envolto em Tua ignorância, é um filho da ignorância”. Com certeza aquele jovem não tinha nenhum anseio pela verdade, e sua mente estava preocupada pela necessidade de dinheiro e pela sabedoria deste mundo.

Biddashagor mandou alguém buscar água e perguntou a M: “Ele não gostaria também de comer alguma coisa?” M respondeu: “Sim, por favor”. Biddashagor apressou-se a buscar alguns doces13 no interior da casa e trouxe-os dizendo: “São todos feitos em nossa casa”. Ofereceu-os ao Mestre, depois a Hazra e Bhobonath. Aproximando-se de M, disse: “Nada de cerimônias com esse aqui, ele é de casa”. Falando de um jovem devoto, o Mestre disse: “Esse rapaz está em presença do Senhor. Sua natureza é boa, existe algo nele. É como o rio Falgu, por fora só se vê areia, mas se cavamos um pouco encontramos a água por baixo14.

Depois de ter comido as guloseimas, o Mestre dirigiu-se a Biddashagor sorrindo. Pouco a pouco a sala se enchera de espectadores, sentados e de pé.

SR — Muito bem, aqui estamos à beira do oceano (sagar)! Até agora, só tínhamos visto canais, lagoas, no máximo rios; mas desta vez é o oceano!

B — Assim o senhor poderá levar água salgada (risos)!

SR — Ah, não! Por que salgada? Chamam você de oceano de sabedoria (vidya-sagar), não oceano de ignorância. Seria melhor dizer oceano de leite15!

Biddashagor disse: “É bondade sua dizer isso!” Depois ficou em silêncio. Então o Mestre pôs-se a falar.

SR — O que você faz procede de sattva, ou melhor, de rajas e sattva juntas. A caridade procede do modo sattva, a ação caridosa do modo rajas, é verdade, mas por razões que vêm de sattva, e que são irrepreensíveis. Foi por compaixão que Shukadeva e outros permaneceram entre os homens, para ensinar-lhes os caminhos de Deus. Você lhes dá instrução e alimento por caridade, está bem. Aquele que alcança a ação desapegada alcança Deus ao mesmo tempo, mas aqueles que agem para adquirir fama ou mérito, não se pode dizer16 que sua ação seja desinteressada. Quanto a você, acho que está cozido no ponto17!

B — O que o senhor quer dizer com isso?

SR (rindo) — As batatas que cozinham bem ficam tenras por dentro, como você, que tem tanta compaixão! (Todos riem).

B (rindo) — Mas quanto mais cozinhamos os grãos de kolai, mais eles endurecem (risos).

SR — Mas você não é assim! Os pandits comuns são como frutas meio maduras. São meio a meio. Podem voar muito alto, mas como os abutres, ficam de olho nos montes de imundícies. Desse modo, o pandit é pandit pelas palavras, mas pelo coração está apegado ao sexo e ao dinheiro, como o abutre às imundícies e às carniças. O apego pertence ao mundo da ignorância. A compaixão, o amor, a renúncia são os ornamentos do conhecimento.

Biddashagor ouvia sem dizer uma palavra. Todos estavam com os olhos fixos no rosto resplandecente do Mestre e bebiam suas palavras.

 

3  Biddashagor era realmente um grande pandit. Quando estudava no Sanskrit College, era o melhor entre todos os alunos; passou em primeiro lugar no exame, ganhou uma medalha de ouro e uma bolsa, e se impôs pouco a pouco até terminar como diretor do estabelecimento. Tornou-se mestre em gramática e poesia sânscritas. Pela força de sua perseverança, aprendeu sozinho o inglês. Mas nunca dava ensinamentos religiosos. Havia lido todos os tratados clássicos da filosofia hindu18; um dia em que M lhe perguntou o que pensava a respeito, respondeu: “Na minha opinião, eles não conseguiram expressar com clareza o que compreenderam”. Observava as regras externas da religião, usava o cordão dos brâmanes, e começava suas cartas em bengali invocando o nome de Deus pela fórmula tradicional, embora há muito tempo não acreditasse mais nela.

M ouviu de sua própria boca o que ele pensava do relacionamento entre o homem e Deus. Biddashagor disse: “Não se pode conhecê-Lo. Então, qual é o nosso dever? Comportarmo-nos cada um de tal modo que esta terra se torne um paraíso. É preciso devotar-se ao próximo e ao bem do mundo”.

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Tendo falado de conhecimento e ignorância, o Mestre passou para o conhecimento do Uno, Brahman. Biddashagor era um grande pandit e lera os tratados das seis escolas clássicas; havia tirado a conclusão de que não se pode afirmar nada com certeza a respeito de Deus.

SR — O Absoluto está além do conhecimento e da ignorância, além da maya. Neste mundo, existem duas formas de maya, a luminosa e a escura. Existe de um lado o conhecimento e o amor por Deus, do outro o apego ao sexo e ao dinheiro. Existe o real e o irreal. Existe o bem e o mal, o justo e o injusto. Mas Brahman é impoluto. O bem e o mal, o real e o irreal, isso faz parte do mundo relativo, isso se aplica aos indivíduos separados (jiva), mas não se aplica ao Uno.

À luz de uma lâmpada, pode-se ler as Escrituras, ou então fazer falsificações, mas isso não afeta a lâmpada. O sol dá sua luz aos bons e também aos maus19. Se perguntarmos de onde vêm o sofrimento, o pecado, a guerra, tudo isso faz parte do mundo dos indivíduos separados, mas não afeta Brahman. O corpo da serpente contém veneno, sua mordida pode matar, mas a serpente ela mesma não se envenena.

A boca não pode dizer o que é Brahman. Todas as coisas neste mundo foram sujadas pela língua, como os restos de uma refeição. As Escrituras — Vedas, Puranas e Tantras — os seis sistemas de filosofia, tudo isso passou pela boca, tornou-se impuro. Exceto uma coisa, que é Brahman. Ninguém até agora  conseguiu explicar o que é Brahman.

B — (dirigindo-se a seus amigos) — Ouviram? Que bela idéia! Hoje aprendi algo novo: só Brahman nunca foi sujado pela língua!

SR — Um homem tinha dois filhos. Para que adquirissem o conhecimento de Brahman, mandou-os a um mestre, junto do qual passaram alguns anos. Quando voltaram, prosternaram-se diante do pai, que, desejando saber o que haviam aprendido, perguntou ao mais velho: “Meu filho, você terminou seus estudos, explique-me a natureza de Brahman”. O mais velho fez uma exposição com citações das Escrituras. O pai não disse nada. Fez a mesma pergunta ao mais novo, que baixou a cabeça e ficou em silêncio. Então o pai lhe disse com satisfação: “Meu filho, você compreendeu alguma coisa: a linguagem não pode explicar o que é Brahman”.

As pessoas pensam: “Pronto, entendi”. Uma formiga passou perto de uma montanha de açúcar. Com um grão encheu a barriga, pegou outro na boca e voltou para casa pensando: “Voltarei para buscar o resto”. As pessoas de mente estreita pensam assim. Não sabem que Brahman está além da linguagem. Mesmo aqueles que são considerados os maiores, como Shukadeva, por exemplo, no fundo não são mais que grandes formigas. O que é que eles conseguem carregar? Oito ou dez grãos de açúcar no máximo.

Sabem com o que se compara o que os Vedas e os Puranas dizem? Com alguém que volta do mar e precisa contar o que viu. Abre uma boca enorme: “Puxa vida! É imenso! Que quantidade de água! Que ondas!” É a mesma coisa em relação a Brahman. Diz-se nos Vedas que Sua natureza é alegria — Ser, Conhecimento e Alegria (Satchidananda). Shukadeva e os outros ficaram na praia, avistaram o oceano de Brahman; no máximo, roçaram-No com a mão, pensam alguns. Não entraram na água. Quem entra não volta mais.

Somente no êxtase (samadhi) pode-se conhecê-Lo, compreender o que Ele é, e nesse estado cessa toda discussão, só existe silêncio. Não está ao alcance do homem dizer o que Ele é em realidade. Uma boneca de sal quis sondar o oceano (risos), dizer a profundidade da água. Mas não conseguiu: assim que entrou na água, derreteu. Então, quem poderá falar de Brahman?

Alguém perguntou: “Assim, uma pessoa que experimentou o êxtase e conheceu Brahman não fala nunca mais?”

SR — (dirigindo-se a Biddashagor) — Shankara20 conservou o “eu de luz” a fim de ensinar os seres humanos. Depois de ter visto Brahman, a pessoa fica em silêncio. Enquanto a visão não aconteceu, o raciocínio continua. Quando se aquece a manteiga clarificada, ela faz barulho enquanto persiste algum resquício de água, depois o ruído cessa. Se pusermos uma panqueca para fritar, ouviremos de novo estralar até que ela esteja cozida. Assim, aquele que experimentou o êxtase volta para ensinar aos homens e recobra a fala. Quando uma abelha voa, ouvimos seu zumbido. Se ela pousa numa flor e começa a beber o doce néctar, não se ouve mais nada. Quando ela voa, inebriada, zumbe novamente. Uma garrafa faz “bloc, bloc” (risos) quando a mergulhamos na lagoa. Logo que fica cheia o ruído pára, depois recomeça quando se despeja a água noutro recipiente (risos).

 

4  O conhecimento de Brahman nos vem dos sábios de outrora21. A menor sombra de apego basta para impedi-lo. Como tiveram que trabalhar! Deixar o monastério de madrugada, passar o dia todo sozinhos em meditação e voltar ao cair da noite para alimentar-se de raízes e frutas. Então, pouco a pouco a mente libertava-se dos objetos do olhar, da audição, do tato, e tomava consciência de Brahman. Mas em nossa Era de Ferro (kaliyuga), a vida é consumida na busca de alimento. O homem não consegue mais libertar-se da idéia de que é este corpo. Não lhe convém mais dizer “Eu sou Aquilo”. Ocupar-se de todo tipo de negócios e afirmar “Eu sou Brahman” não é uma atitude séria. Aquele que não pode renunciar a seus negócios, que não consegue livrar-se do “eu”, então que adote o “eu do servidor”, o “eu do adorador”. É uma boa atitude. Seguindo o caminho da devoção, chega-se ao mesmo ponto.

Dizendo “Ele não é nem isso nem aquilo”, o vedantista  (jñani) rejeita tudo o que é exterior e consegue conhecer Brahman. Da mesma forma como se sobe ao telhado por uma escada, deixando atrás de si um degrau após o outro. Mas o vijñani22 conhece Brahman mais de perto, e percebe algo mais: o telhado é feito dos mesmos materiais que a escada — tijolos e argamassa. Aquele que se alcança pela negação — “isso não, aquilo não”, e que se chama Brahman, tornou-se Ele próprio os seres vivos e o universo. O vijñani vê que é sempre Ele, quer esteja despojado de qualquer atributo ou revestido de atributos.

Não se pode permanecer no telhado, é preciso descer. Aquele que se encontrou em presença de Brahman no êxtase (samadhi) percebe ao descer que Este tomou a forma dos seres vivos e do mundo. Na escala do-ré-mi-fá-sol-lá-si o si é alto demais para se manter por muito tempo. Uma tal pessoa reencontra seu “eu”, mas sabendo que Brahman é esse eu, é o mundo, os seres vivos, tudo. Esse conhecimento se chama vijñana.

O conhecimento é um caminho que leva a Ele, o conhecimento e o amor juntos levam a Ele, e o amor sozinho leva a Ele23. A jñana yoga e a bhakti yoga são ambas verdadeiras: chega-se a Ele por uma ou pela outra. Mas enquanto Deus nos deixa nosso “eu”, o caminho do amor é o mais fácil.

O vijñaniBrahman imóvel, inativo, estável como o monte Sumeru, os três modos — sattva, rajas e tamas  emanando dEle. Mas Ele mesmo permanece impoluto. O vijñani vê também que aquele que é Brahman é também o Senhor Deus. Aquele que está além dos três modos é também o Senhor resplandecente em suas seis glórias. Os seres vivos e o mundo, a inteligência, o amor, a renúncia, o conhecimento são as suas glórias. O Mestre sorriu. — Um homem rico que não tem nada a mostrar não é mais um homem rico! Vão falar que ele deve ter vendido tudo! (risadas). Deus tem que exibir suas seis glórias, senão  ninguém dará mais atenção para Ele (risada geral).

Olhe como esse mundo é extraordinário! Contém todo tipo de coisas: a lua, o sol, as estrelas, todas as variedades de animais e homens, grandes e pequenos, bons e maus, fortes e fracos.

B — O senhor acha que Ele dá muito a alguns e pouco a outros24?

SR — Ele é o Espírito que interpenetra tudo, presente em todos os seres vivos, até a formiga. Mas estes manifestam mais ou menos poder (shakti). Senão, por que um homem enfrenta dez inimigos e outro foge de um único? Aliás, você mesmo, por que as pessoas falam de você? Será que cresceram chifres em você? (risadas). Você é famoso por sua generosidade, por sua ciência, e é por isso que as pessoas vem vê-lo. Não? Você não concorda?

Biddashagor sorriu ligeiramente.

O conhecimento livresco não serve para nada. Quando se trata de alcançar e conhecer Deus, pode-se jogar os livros no fogo. Um certo sadhu tinha um livro e alguém lhe perguntou o que era. Ele o mostrou: página após página, nada mais que “OM Rama, OM Rama” — nada mais. E você sabe qual é a essência do Guita? Você repete dez vezes “Guitaguitaguita” e você encontra “taguitaguitagui25. Esse é de fato o ensinamento do Guita, “Ó homem, renuncia a tudo e esforça-te para alcançar o Senhor!” Quer você viva  em   família, quer seja sadhu, sua mente deverá renunciar a todos os seus apegos.

Durante sua peregrinação para o sul, Chaitanya assistiu a uma leitura do Guita. Entre os ouvintes, sentado no fundo, um homem chorava. As lágrimas corriam sobre seu rosto. Chaitanya lhe perguntou: “Você está compreendendo bem a leitura?” O homem respondeu: “Não, Thakur26, não compreendo nada”. “Então, por que está chorando?” perguntou-lhe Chaitanya. E ele respondeu: “Estou vendo o carro de Arjuna e ao lado dele o Divino Senhor e Arjuna conversando juntos. Ver isso me faz chorar”.

 

5  Por que o vijñani adota a atitude da devoção? Porque na realidade o “eu” não desaparece. No êxtase sim, mas depois volta. Nas pessoas comuns o ego não desaparece. Não adianta você cortar um pipal*; logo no dia seguinte ele solta um broto novo (risos).

Mesmo depois da visão de Brahman o eu volta não se sabe de onde. Se você sonhou com um tigre, o coração continua a bater quando você acorda. O “eu” dos seres é a causa de seus sofrimentos. A vaca muge moh, moh27, quer dizer, “meu, meu”; por isso sua vida é tão dura: puxar o arado, suportar o sol e a chuva, e no final o esfolador. De sua pele fazem sapatos e tambores, sobre os quais ainda batem (risadas). Paz, nem pensar! Para terminar, de suas tripas fazem cordas, que montam num arco para cardar o algodão. O arco não diz mais “meu”, mas suavemente tumm, tumm, isto é, “tu, tu”, e é o fim do sofrimento. “Tu, Tu, Senhor, és o Mestre e eu o servidor, Tu és a mãe e eu sou Teu filho”.

Rama perguntou uma vez a Hanuman: “O que pensas de mim?” Ele respondeu: “Ó Rama! Quando tenho a impressão de ser “eu”, vejo-Te como o todo e eu como a parte, Tu como o Senhor e eu como o servidor. Mas quando capto a realidade, então vejo que Tu és eu e que eu sou Tu”.

A atitude do servidor é boa: já que o “eu” não pode ser eliminado, então que esse atrevido fique como serviçal.

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“Eu e meu”, esses dois vêm da ignorância. “Minha casa, meu dinheiro, minha inteligência, minha situação”, todos esses modos de pensar vêm da ignorância. O conhecimento diz: “Ó meu Deus, Tu és o mestre e tudo isto é Teu: casa, esposa, filhos, amigos, tudo isto é Teu”.

É preciso lembrar-se sempre da morte. Não levamos nada conosco. Viemos a este mundo para trabalhar, como alguém que mora na periferia e vem todos os dias trabalhar em Calcutá. O intendente de um grande proprietário mostra o jardim aos visitantes e diz “Aqui é o nosso jardim, e aqui o nosso lago”, mas se comete um erro é posto para fora sem sequer ter tempo de pegar sua mala, e tem que mandar alguém buscá-la com o porteiro (risos).

Duas coisas fazem o Senhor sorrir. Primeiro o médico que diz a uma mãe: “Não se preocupe, senhora, vou curar seu filho”. O Senhor ri e pensa: “E se Eu quiser matar, vai salvá-lo?” O médico pensa que está agindo, esqueceu que tudo está nas mãos de Deus. Depois, dois irmãos que esticam um barbante e dividem um terreno dizendo: “É seu até aqui e depois é meu”. O Senhor ri e pensa: “Este imenso universo Me pertence e ele acha que aquele pedaço é dele!” Não se pode conhecê-Lo pelo raciocínio. É preciso tornar-se Seu servidor, tomar refúgio nEle e orar.

O Mestre olhou Biddashagor sorrindo e lhe disse: “E então, o que você acha de tudo isso?” Biddashagor sorriu ligeiramente e disse: “Um dia, quando estivermos sozinhos, eu lhe direi” (risos). O Mestre repetiu: “Não se pode conhecê-Lo pelo raciocínio”. Depois, tomado pela emoção, pôs-se a cantar28:

 

Quem pode compreender Kali? Os seis pontos de vista se esgotam.

A alma aproximando-se do cume sente-A como o Absoluto.

Tudo o que advém é Sua obra, Ela age segundo seu desejo,

Em Sua matriz se formou este universo cheio de maravilhas.

Só o olhar perspicaz de Shiva é capaz de captá-La.

Os yoguis buscam no fundo de seu ser a Sua presença

Entre a base e o cume da floresta dos lótus,

Onde se unem os dois cisnes, macho e fêmea.

Atravessar o mar a nado, ó Prasad, que ridículo!

O coração vê mais claro que a mente, esse anão que quer agarrar a lua.

 

Você ouviu? “A matriz de Kali contém o universo imenso”, e também “Os seis pontos de vista não podem vê-La”. A ciência não basta! O amor é necessário, e também a fé. Você sabe qual é o poder da fé? Alguém queria atravessar o oceano entre o Ceilão e a Índia. Vibhishana29 lhe disse: “Prenda isso com cuidado na barra de sua roupa e poderá caminhar sobre a água. Mas não procure saber o que é! Se você abrir, afundará”. O homem começou a caminhar sobre a água, tudo ia bem, tamanha é a força da fé. No meio do caminho, ele pensou: “Ora essa, vamos ver o que Vibhishana colocou aqui que faz andar sobre a água”. Ele olha e encontra uma folha com o nome de Rama escrito. Então pensa: “Ah! É só isso!” E afunda imediatamente. Sempre se diz que Hanuman deu um salto até o Ceilão invocando o nome de Rama, mas que o próprio Rama precisou de uma ponte. Aquele que tem fé, mesmo que seja pecador, até mesmo um grande pecador, não tem nada a temer.

O Mestre começou a cantar30:

 

Se eu morrer pronunciando Teu Nome, Durga! Durga!

Não poderás abandonar o miserável que eu sou.

Quer eu tenha matado uma vaca, uma criança no ventre de sua mãe,

Um brâmane, uma mulher, quer eu role bêbado pelo chão,

Que importa, Tu me levarás bem aos pés de Brahma!

 

6  A fé e o amor. Pelo amor pode-se encontrá-Lo sem dificuldade. Pode-se descobri-Lo no amor extático.

O Mestre cantou outro canto de Ramprasad:

 

Como procurar Deus, ó minha alma, trancada em loucura no escuro?

Ele é o mestre do amor, sem amor quem pode encontrá-Lo?

Concentra-te, apanha a lua antes do dia,

Pois na aurora ele desaparece no fundo da morada31.

Ele foge dos olhares das seis escolas, dissimula-se na Escritura32.

Mas é ávido de amor, sua alegria brilha no fundo do coração.

Para Ele, o Supremo Yogui, caminham os yoguis a cada era,

O amor nascente o faz vir, como o ferro vem ao ímã.

Prasad diz: eu O descobri sob a forma de minha Mãe.

Não entrego o segredo diante de todas essas pessoas, na praça pública.

Cabe a ti procurar, ó minha mente, eu já falei bastante.

 

Enquanto cantava, o Mestre foi pouco a pouco absorvido pelo êxtase. Com as mãos juntas, o busto ereto, perfeitamente imóvel, os olhos fixos, sentado no banco com as pernas pendendo, o rosto voltado para o oeste. Todos os olhos olhavam avidamente aquele estado extraordinário. Biddashagor também olhava em silêncio.

O Mestre voltou à consciência normal, com uma longa expiração. Depois sorriu e recomeçou a falar, dizendo: “Isso é importante: o amor, amar a Deus. Aquele que é Brahman, Ramprasad chama como sua Mãe”. Repetiu os dois últimos versos e acrescentou: “Ele diz à sua mente para pensar bem e compreender o segredo com meia palavra: Aquele que os Vedas chamaram Brahman, Esse mesmo eu chamo de minha Mãe. Aquele que é sem atributos é o mesmo que se reveste de atributos. Aquele que é o Uno é também a Energia. Quando o concebemos como inativo nós o chamamos Brahman, e quando O concebemos como criador, protetor e destruidor nós o chamamos de Energia Primordial, ou seja, Kali. O Absoluto e Sua Energia são um só, como o fogo33 e seu poder de queimar. Quando se pensa no fogo pensa-se em seu poder de queimar, quando se pensa no poder de queimar pensa-se no fogo. Quem quer um tem que aceitar o outro”.

Podemos dirigir-nos a Ele chamando-O de Mãe. Sentimos um grande amor por nossa mãe, não é? Podemos alcançar Deus só pelo amor. A fé, a fidelidade, o amor, o êxtase. Ouça mais esse canto:

 

O amor extático é a aurora

Anunciando a chegada de Deus.

Confiança! Imerge teu espírito

No lago de néctar dos pés de Kali,

E esquece os rituais, oferendas e sacrifícios.

 

A mente deve ligar-se a Ele, amá-Lo fortemente. O lago de néctar é o lago de imortalidade. O homem não se afoga quando mergulha nele. Torna-se imortal. As pessoas pensam que ficamos louco por pensar em Deus sem parar. Não é verdade: trata-se do lago de néctar, do oceano de imortalidade. Quem cai nele torna-se imortal, diz o Veda.

Os ritos, as oferendas e sacrifícios não são nada. Depois que o amor chega, todas essas coisas deixam de ter utilidade. Enquanto o vento não sopra, precisamos de um leque, mas se o vento do sul sopra por si mesmo, podemos deixar de lado o leque. De que serviria?

Todas as obras que você faz são boas. Se você puder realizá-las com desapego, renunciando à idéia “sou eu que estou agindo”, será perfeito. Agindo assim, a devoção e o amor chegam pouco a pouco. Agindo assim, acabamos chegando a Deus.

Mas quando vierem a devoção e o amor, sua atividade diminuirá pouco a pouco. Numa família, quando a nora está grávida sua sogra lhe dá cada vez menos trabalho; aos dez meses (sic)34 não lhe dá mais absolutamente nenhum trabalho, por receio de prejudicar a criança ou o parto (risos).

O trabalho que você realiza faz bem a você mesmo. Pela ação desapegada, a mente purifica-se, e você vai obter o amor de Deus. Quando o amor chegar você alcançará Deus. Não está ao alcance de um homem ajudar o mundo. Só Ele pode fazê-lo, Ele que fez o sol e a lua, Ele que colocou nos pais o amor por seus filhos, a compaixão no coração dos poderosos, o amor no coração dos devotos e dos sadhus. Quem age de modo desinteressado faz o bem para si próprio.

Você tem ouro em si mesmo, mas ainda não tomou consciência disso. Esse ouro está recoberto por um pouco de terra. Quando você o descobrir, suas atividades vão diminuir. Quando a criança nasce, a nora vai e vem carregando-a no colo, e sua sogra não lhe dá mais trabalho (risos).

Você precisa avançar. Um lenhador foi cortar lenha na floresta. Encontrou um asceta que lhe disse: “Vá mais longe!” Ele avançou pela floresta e descobriu árvores de sândalo. Alguns dias depois, pensou: “Ele não me disse para parar nas árvores de sândalo, disse-me para ir mais longe”. Então, avançou mais e descobriu uma mina de prata. Recomeçou alguns dias depois e encontrou uma mina de ouro, depois diamantes, e também rubis, e tornou-se um homem muito rico.

A ação desapegada o levará ao amor por Deus e pouco a pouco, com a ajuda de Sua graça, você O conhecerá. Ele deixa que O vejamos. Podemos falar com Ele, assim como estou falando com você.

 

7  Todos permaneceram em silêncio, impressionados, como se a própria deusa da sabedoria tivesse descido na língua do Mestre para dirigir-se a toda a humanidade através de Biddashagor.

Era noite; eram quase nove horas. O Mestre preparou-se para despedir-se. Acrescentou: “Tudo o que eu disse para o senhor35 é inútil, claro. O senhor o sabe há muito tempo! Só não tem uma consciência clara a respeito (risos). Varuna tem tantos tesouros em seus cofres que ele próprio não os conhece”.

B (sorrindo) — Bondade sua dizer isso!

SR (sorrindo) — Muitos babus36 não conhecem os nomes de seus serviçais, nem as riquezas de sua casa.

Essa conversa alegrou a todos. Houve um breve momento de silêncio, depois o Mestre dirigiu-se novamente a Biddashagor.

SR — Um dia o senhor deveria ir conhecer o jardim. Estou falando do jardim de Rashmoni. Verá, é um lugar encantador.

B — Claro que irei! O senhor mesmo veio aqui, e eu não lhe pagaria a visita?

SR — Ah não! Não para me ver! É impossível!

B — Por que o senhor está dizendo isso? Não compreendo.

SR — Nós somos barcos de pescadores (risos), passamos tanto pelos rios quanto pelos canais ou as lagoas. Mas o senhor é um navio grande, correria o risco de naufragar vindo à nossa casa (todos riem).

Biddashagor sorriu e não respondeu. O Mestre riu e disse: “É verdade, nesse momento o senhor passaria, talvez”.

B — Procuraremos aproveitar a monção* (risos).

M pensou: “É a chuva de uma nova amizade, nesta estação ninguém se preocupa com o protocolo”.

O Mestre levantou-se, Biddashagor e seus amigos também. Mandaram alguém buscar um carro.

Por que o Mestre ficou de pé por um momento, imóvel? Estava repetindo mantras37 e enquanto isso entrou em êxtase. Talvez ao deixar aquela casa estivesse rezando para a Mãe, com grande benevolência, para o bem-estar espiritual de Biddashagor.

O Mestre e os devotos desceram a escada; um deles o levava pela mão. Biddashagor ia à frente com uma lanterna. Era a quinzena escura: a lua não brilhava. Para atravessar o jardim sombrio até a grade da entrada havia apenas a luz da lanterna.

Chegando à rua, um belo espetáculo os deteve. Um homem os esperava: quarenta anos aproximadamente, barbudo, tez clara, vestido como um bengali mas usando um turbante branco à maneira dos sikhs*. Logo que avistou o Mestre, lançou-se ao chão de turbante e tudo e ficou prosternado diante dele. O Mestre o levantou e disse: “Boloram38, você veio! Tão tarde!” Boloram disse sorrindo: “Estou aqui há muito tempo, fiquei esperando pelo senhor” — “Mas por que você não entrou?” — “Todos estavam ouvindo o senhor. Não iam gostar” (dizendo isso, Boloram sorria).

O Mestre e os devotos subiram no carro. Biddashagor perguntou em voz baixa a M: “Precisa pagar a corrida?” M respondeu: “Não, senhor. Já está pago39”. Biddashagor e seus amigos saudaram o Mestre.

O carro pôs-se em movimento e partiu rumo ao norte, na direção de Dakshineswar. Enquanto permanecia à vista, todos ficaram de pé, seguindo-o com o olhar. Talvez se perguntassem quem era aquele santo, repleto de amor a Deus, que visitava assim os homens, proclamando que o amor a Deus é a meta da existência humana.

 

8  A história das relações entre Ramakrishna e Vidyasagar pára aqui, já que a visita nunca será retribuída. No entanto, uns vinte dias depois, Ramakrishna fala com M como se o encontro tivesse sido um sucesso.

 

(Caminhando com M na varanda de Dakshineswar) o Mestre disse sorrindo: “Eu precisaria rever Biddashagor uma ou duas vezes. Para fazer um quadro, começa-se com um esboço desenhado e depois pintado. Para fazer a estátua de uma divindade, começa-se com um quadro de madeira e palha, que se recobre com argila, depois um revestimento, e depois se pinta: procede-se por etapas. Isshor Biddashagor está pronto, mas ainda não dá para ver. Ele pratica todo esse bem mas não sabe que existe ouro dentro de si. Deus está nele.  Quando o descobrir, seu trabalho externo cessará, ele ficará tomado pelo desejo de Deus e começará a rezar”.

 

Depois desse pedido, M deve ter lembrado a Vidyasagar sua promessa de vir a Dakshineswar, e foi talvez então que Vidyasagar expressou sua reticência diante dos êxtases de Ramakrishna, o que foi lembrado no início desse Diálogo. O agnosticismo de Vidyasagar era do conhecimento de Ramakrishna, como o mostra o trecho a seguir, do mês de dezembro do mesmo ano.

 

Alguém lhe perguntou por que Deus havia criado um mundo onde se sofre tanto. Sri Ramakrishna disse:

- Biddashagor disse uma vez com paixão: “Para que serve invocar Deus? No início das expedições de Gengis-Khan, este saqueou uma cidade e fez muitos prisioneiros. Reuniram quase cem mil. Seus generais lhe disseram: “Senhor, quem vai alimentá-los? Levá-los conosco é perigoso, soltá-los é perigoso também. O que devemos fazer?” Gengis-Khan disse: “Vocês têm razão. O que fazer? Matem-nos!” Tchak! Tchak! Decapitaram todos. Deus não viu aquela carnificina? O que Ele fez para impedi-la? Então, quer Ele exista ou não, eu não preciso dEle. Ele não tem interesse por mim”.

Não se pode compreender as ações de Deus, a razão pela qual faz as coisas. Ele é responsável pela criação, a preservação e a destruição. Podemos nós compreender por que Ele destrói? Eu digo assim: “Mãe, eu não preciso entender. Dá-me a devoção pelos Teus pés de lótus”. O objetivo da vida humana é o de chegar ao amor. A Mãe sabe tudo. Eu entrei no pomar para comer mangas. Contar as árvores, os galhos, os milhares de folhas, isso não me diz respeito; eu como as mangas, não tenho necessidade de instalar-me para fazer contas.

 

________________

 

DIÁLOGO 4*

UM DIA EM DAKSHINESWAR: 16 DE OUTUBRO DE 1882

 

Este diálogo, o primeiro do segundo volume, faz parte da tradução inglesa de M. Cronologicamente, situa-se entre o Diálogo 3 (Vidyasagar) e o Diálogo 2 (passeio de barco com Keshav). É interessante por vários motivos. Encerra algumas lembranças da juventude de Ramakrishna, referentes ao seu estado de loucura divina; reflete a atmosfera descontraída dos dias de semana em Dakshineswar; coloca em cena Narendra (o futuro Vivekananda), que ainda é um jovem brahmo, de voz magnífica, mas bastante moralizador (sua grande transformação só virá em 1885-86, após a morte de seu pai e as terríveis provações da ingratidão e da pobreza). Finalmente, o diálogo nos faz conhecer melhor o próprio M.

 

1  É um dia de grande felicidade para Sri Ramakrishna, pois Norendro veio passar o dia em Dakshineswar. Alguns discípulos íntimos estão aqui também. Ao chegar, Norendro banhou-se no Ganges e comeu prasad1. Estamos numa segunda-feira, e o Durga Puja2 começará na quinta-feira.

Os presentes são Rakhal, Ramlal, Hazra, Norendro com um ou dois rapazes do Brahmosamaj. M também está presente hoje.

Norendro almoçou junto do Mestre. Depois, Sri Ramakrishna mandou estender uma esteira para que os devotos, e Norendro especialmente, pudessem fazer a sesta. Colocaram também um colchão de penas e almofadas. O Mestre sentou-se no chão perto de Norendro, como uma criança. Fala com todos, cheio de alegria, mas é para Norendro que volta seu rosto sorridente. Descreve-lhes sua própria condição e suas experiências.

SR — Naquele estado3, meu desejo era de ouvir falar de Deus e só de Deus. Eu ia por toda parte onde se lia4 o Bhagavata, o Adhyatma Ramayana5 ou o Mahabharata. Fui a Aryadaha ver Krishnokishor para ouvir o Adhyatma.

Que fé6 tinha Krishnokishor! Uma vez, em Brindabon, sentiu sede. Caminhando para o poço, vê ali um homem de pé e lhe pede água. O homem lhe diz: “Sou de baixa casta, o senhor é um brâmane. Como poderia eu dar-lhe água?” Krishnokishor responde: “Diga Shiva, Shiva. Assim que tiver pronunciado Shiva você estará puro”. A seguir o homem tirou água do poço para ele. Um brâmane tão estrito em questão de pureza beber aquela água! Que fé!

Um sadhu instalara-se às margens do Ganges em Aryadaha, e queríamos ir vê-lo. No templo, falei sobre isso com Holodhari7: “Krishnokishor e eu vamos visitar um sadhu, você vem conosco?” Holodhari respondeu: “Para que incomodar-se? Um corpo humano não é nada mais que uma gaiola de ossos”. Ele lia muito a Vedanta e o Guita, não é, e por isso é que chamava o sadhu de gaiola de ossos. Contei isso a Krishnokishor. Ficou furioso: “Como ele ousa dizer isso? O corpo de um homem que medita em Deus, que pensa em Rama sem cessar e renunciou a tudo por Ele não é uma gaiola de ossos. Ele não sabe que o corpo de um adorador é feito de Espírito”. Que cólera! Quando foi colher flores no templo, encontrou Holodhari e virou a cabeça para o outro lado. Não queria falar com ele.

Uma vez me disse: “Como você pôde tirar seu cordão sagrado?” Ora, quando aquele estado chegou para mim, tudo foi levado como que pelo ciclone8 do mês de Ashvin. Todas as marcas externas foram varridas. Eu não prestava atenção em mais nada. Como conservar o cordão sagrado quando nem minha roupa parava mais em mim? Eu lhe disse: “Se você também ficar louco, vai compreender”. E isso aconteceu para ele! Ele também ficou louco! Não falava com ninguém mais, fechava-se em seu quarto e ficava repetindo OM, OM. Todos pensaram que sua cabeça estava esquentando e chamaram Ram Kobiraj9 de Natagor para cuidar dele. Krishnokishor lhe disse: “Cure-me da doença se você quiser, mas, por favor, não me cure desse OM” (risos).

Uma vez quando fui vê-lo, achei que ele parecia preocupado. Perguntei-lhe: “O que há de errado?” Ele disse: “Veio o cobrador de impostos. É isso que está me aborrecendo. Querem dinheiro, senão vão confiscar tudo”. Eu lhe disse: “E daí? O que você tem com isso? Deixe que levem seus potes e seus pratos. Você, eles não podem vender. Você não é o Espaço Infinito?” (Para Norendro, rindo) — Krishnokishor lia o Adhyatma, não é, e repetia “Eu sou o Espaço”. Eu o provocava de vez em quando chamando-o de Espaço, e naquele momento eu o peguei de jeito. Disse-lhe rindo: “Espaço Ilimitado, o cobrador de impostos não poderá prender você!”

Quando eu estava louco, dizia a verdade a cada um, qualquer coisa, sem deferência para com ninguém. Não tinha nenhum receio das pessoas ricas e importantes. Uma vez, Jotindro10 veio à casa de Jodu Mollik11 e eu me encontrava lá. Disse-lhe: “Qual é nosso dever nesta vida? Pensar em Deus, é claro”. Jotindro respondeu: “Nós somos mundanos. Não podemos ter pretensões à libertação. Até o rei Yudishthira12 teve que passar pelo inferno”. Fiquei muito bravo: “Que tipo de homem você é? De toda a vida de Yudishthira você só lembra que ele esteve no inferno, esquecendo que ele era verdadeiro, paciente, sempre pronto para perdoar, cheio de sabedoria, renúncia e amor a Deus! Você nem sequer pensa em tudo isso!” Eu teria dito muito mais, mas Hridê me fechou a boca. Um pouco depois Jotindro disse que tinha afazeres e foi embora.

Muito tempo depois, fui à casa de Shurendro Thakur com o Capitão13. Eu lhe disse: “Não vou chamar você de rajá ou algo no gênero, seria mentir14”. Conversamos, e pude ver que era alguém de natureza rajásica, sempre em atividade, que convivia com os saheb ingleses. Ele mandou alguém avisar Jotindro que estávamos lá, mas Jotindro respondeu que estava com dor de garganta.

Naquele estado de loucura, vi um dia Joy Mukherji nas escadas do Ganges em Boranogor. Ele estava repetindo o Nome do Senhor, mas distraidamente. Fui até ele e dei-lhe um par de bofetadas. Um dia Rashmoni15 veio aos templos e entrou no santuário de Kali na hora do culto. Pediu-me para cantar. Cantei um ou dois cantos e vi que ela se distraíra e estava arrumando as flores. Eu a esbofeteei imediatamente. No meio do tumulto, ela ficou ali, com as mãos juntas. Eu dizia a Holodhari: “Irmão, que temperamento o meu agora!” De tanto suplicar a Mãe, isso passou.

Nesse estado, não se suporta falar de outra coisa que não seja Deus. Quando ouvia as pessoas discutindo seus negócios, eu começava a chorar. Em Benares, durante a grande peregrinação com Mothur Babu, morávamos na casa de Raja Babu. Eu estava na sala com Mothur Babu e Raja Babu, e eles começaram a contar seus negócios um para o outro, todo o dinheiro que haviam perdido, etc. E eu me ponho a chorar: “Mãe, onde Tu me levaste? Nós estávamos tão bem no templo de Rashmoni! Vamos em peregrinação e temos que ouvir falar em “sexo e dinheiro”! Lá eu não era obrigado a ouvir conversas mundanas”.

Os devotos do Mestre, e Norendro em especial, descansaram um pouco. Ele próprio foi repousar na cama pequena.

 

2  À tarde, Norendro cantou. Todos estavam presentes: Rakhal, Latu, M, Priyo, o amigo brahmo de Norendro, e Hazra. Norendro cantou o kirtan, acompanhando-se ao tamborim16.

 

Contempla Hari, ó minha alma, pura Consciência imaculada,

Maravilha incomparável, imagem feiticeira no coração,

Irradiando mil cores, com um brilho que ultrapassa mil luas!

Fazendo a alma tremer de alegria, como um relâmpago resplandecente.

Oferece-te a Seus pés, olha-O residindo no lótus do coração,

Contempla Sua imagem bem-amada,

Com a mente aquietada, com o olhar do amor,

Fruto da yoga do amor, quintessência de amor e alegria.

Atinge essa alegria sem fim, a própria essência da alegria,

A quintessência do amor.

 

Depois cantou mais:

 

Um dia, no oceano de beleza mergulharei,

E verei a forma infinita, meu Senhor.

Estupefato, trêmulo, refugiar-me-ei a Teus pés,

Aos pés do rei dos reis, paz e bondade sem mistura.

Trocarei minha alma pelo belo fruto da vida,

O paraíso já nesta terra. Quem mais me ofereceria isto?

Do meio do mal olho para Ti, Senhor.

Como se corre ao avistar uma luz na noite,

Tua visão me arrancará das trevas do pecado.

Como se ergue no firmamento a lua crescente,

Fazendo os pássaros dançar de alegria, assim minha alma

Espera ver subir no firmamento do coração

Tua forma bendita de alegria e imortalidade.

Eterna estrela polar, esperança ardente da fé,

Amigo dos humildes, responde ao apelo de minha alma!

Então dia e noite mergulharei em Teu amor!

Esquecendo-me a mim mesmo, tomarei lugar a Teus pés.

 

E mais este canto:

 

Com o rosto radiante de alegria, repete o doce Nome de Deus17

Que Ele transborde de teu coração como o oceano de néctar,

Bebe dEle sem cessar, e faz com que os outrso O bebam.

Cantar esse Nome faz reviver os corações ressequidos,

Derrama o perfume do amor, consome as miragens do mundo.

Ele é o mantra supremo, não o esqueças,

O grito de guerra que destrói os laços do mal.

Glória a Deus, vitória, repete esse Nome!

Nos perigos, volta-te para o Pai misericordioso.

Que tua felicidade seja buscar a alegria de Deus,

E unir-te a Ele com o laço do amor.

 

Norendro, o Mestre e os outros retomaram em coro os mesmos cantos18, e ao final o Mestre e Norendro com o tamborim cantaram juntos, em um estado de grande exaltação. O Mestre tomou Norendro em seus braços, dizendo: “Que alegria me deste hoje!”

O amor transbordava do coração do Mestre. Já eram oito horas, e no entanto ele andava rapidamente de um lado para o outro, percorrendo de ponta a ponta a comprida varanda ao norte de seu quarto, num estado extático. De vez em quando o ouvíamos falar com a Mãe. De repente ele falou como um louco: “O que Tu podes fazer comigo?” Quereria ele dizer que aquele que se apóia na Mãe está fora do alcance de maya? Quem sabe?

Norendro, M e Priyo iam passar a noite ali, e o Mestre estava no auge da alegria com a idéia de que Norendro ia ficar. Era Shrishrima que preparava a refeição da noite, no nahabat19: chapatis, lentilhas, etc. Mandaram avisá-la que aqueles discípulos ficariam. De vez em quando havia também fiéis que passavam a noite, e todo mês Shurendro dava algum dinheiro para cobrir a despesa.

Veio o jantar e todos se instalaram para comer na varanda sul. Perto da porta leste, Norendro e M conversavam.

N — Como é a sua opinião sobre os adolescentes de hoje?

M — Boa, mas eles não têm mais nenhuma instrução religiosa.

N — Pelo que eu mesmo vi, parece-me que estão à deriva. Fumam, falam de frivolidades, usam roupas elegantes, faltam às aulas, etc. Conheço alguns que até freqüentam lugares não recomendáveis.

M — Entre meus alunos não notei nada desse gênero.

N — Acho que você não os vê tão de perto como eu. Vi alguns tratando com intimidade elementos pouco recomendáveis. Não sei como puderam conhecê-los.

M — Incrível.

N — Sei de muitos que estão se desencaminhando. Seria bom que os educadores e as famílias cuidassem desses jovens.

O Mestre saiu de seu quarto e veio para perto deles. Sorrindo, perguntou: “E aí, do que vocês estavam falando?” Norendro respondeu: “Da situação das escolas. Os rapazes que se desencaminham”. O Mestre já não estava mais sorrindo. Voltou-se para M: “Esse tipo de conversa não vale nada. Vocês deveriam falar só de Deus entre si. Você é mais velho que eles (Norendro devia ter dezenove anos, e M vinte e sete), não fica bem da sua parte deixá-los falar assim”. M sentiu-se embaraçado, e os outros se calaram.

_________________

 

O Mestre de pé, todo sorridente, ocupou-se de Norendro e dos outros discípulos que estavam comendo. Sua felicidade era grande naquele dia! Depois os discípulos repousaram um pouco no quarto do Mestre, sentados no chão. O Mestre conversava com eles, era uma verdadeira festa. Depois disse a Norendro: “Por favor, cante para nós A lua cheia do amor20”. Norendro começou a cantar, enquanto os outros o acompanhavam com os tambores e os címbalos.

 

A lua cheia do amor sobe no firmamento do espírito.

O oceano de felicidade transborda, rolam ondas de alegria,

                Glória a Ti, Mestre de toda compaixão21!

Ao redor da lua reluzem as constelações

A vasta multidão dos santos, acorrendo de todos os lados,

O Senhor, amigo dos santos, joga com eles Seu jogo maravilhoso.

                Glória a Ti, glória a Ti, Mestre de toda compaixão!

Hoje abrem-se amplamente as portas do paraíso,

A nova luz22 brilha, a brisa da primavera sopra,

Cheia de doçura, trazendo o perfume do amor,

                Glória a Ti, glória a Ti, Mestre de toda compaixão!

No oceano de êxtase desabrocha o lótus da fé,

No centro dessa flor está a imagem da Mãe,

As abelhas impacientes aglomeram-se bebendo o néctar.

Vê Seu rosto de felicidade, enfeitiçando todo o universo.

Os sadhus, esquecendo tudo, a Seus pés dançam e cantam.

Eu morro de desejo de vê-La, Sua visão refrescará minha alma!

Premdas diz: — Irmãos, eu lhes suplico, cantem “vitória à Mãe”.

 

Durante o kirtan, Sri Ramakrishna dançou, e os discípulos dançaram também ao seu redor. Ao fim do kirtan, ele foi caminhar na varanda ao norte. O Senhor Hazra estava sentado23. M veio sentar-se perto dele e começaram a conversar. O Mestre perguntou a um discípulo: “Você por acaso tem sonhos ou coisas do gênero?”

DISCÍPULO — Sim, tive um sonho extraordinário. O mundo inteiro estava coberto de água, uma extensão de água sem limites. Alguns barcos flutuavam. De repente, aconteceu algo como um maremoto. Eu e alguns outros estávamos subindo num navio quando vimos um brâmane que caminhava sobre aquele oceano. Perguntei-lhe: “Como o senhor faz?” Ele respondeu sorrindo: “É fácil, há uma ponte logo abaixo da superfície”. Perguntei: “Onde o senhor está indo?” Ele disse: “A Bhobanipur, a cidade da Mãe”. Eu lhe disse: “Espere um pouco, vou com o senhor”.

SR — Ouvir isso me dá arrepios!

DISCÍPULO — O brâmane disse: “Agora estou com pressa, você precisa de tempo para descer. Eu vou indo, veja por onde passo e alcance-me”.

SR — Fico todo arrepiado! Você precisa receber um mantra rápido.

Eram onze horas. Norendro e os outros fizeram sua cama para dormir no chão do quarto.

Ao despertar, os discípulos viram que já era de manhã. Sri Ramakrishna caminhava pelo quarto repetindo os Nomes de Deus, nu como uma criancinha. Ora ia saudar o Ganges, ora voltava para inclinar-se diante das imagens santas na parede, cantando os Nomes com voz doce. Ele dizia: Veda, Purana, Tantra, Guita, Gayatri24, depois Bhagavata-Bhakta-Bhagavan25. Repetiu o nome do Guita várias vezes para fazê-lo dizer taguitaguitagui26. Depois: “Tu és o Absoluto (Brahman) e Tu és Sua Energia (Shakti), Tu és o uno e o múltiplo, Tu és o Eterno e Tu és o Jogo, e Tu mesmo és o Universo27”.

Nos templos de Kali e Radha-Krishna começava o culto do alvorecer. Podiam-se ouvir conchas e sinetas. No jardim, colhiam flores para o serviço do Senhor. Dos pavilhões de música chegavam em ondas as ragas da manhã. Norendro e os outros, feitas suas abluções, reuniram-se junto ao Mestre, que permanecia de pé, sorrindo, na varanda norte.

N — Acabo de ver alguns sadhus no panchavati28. São da ordem de Nanak.

SR — É, chegaram ontem. (Dirigindo-se a Norendro) — Sentem-se todos ali no colchão, quero vê-los!

Os discípulos sentaram-se como lhes pedia. O Mestre olhou-os com alegria transbordante, depois começou a conversar com eles. Norendro fez perguntas sobre as disciplinas espirituais (sadhana).

Sr — O amor a Deus é o essencial. Discernimento e renúncia vêm espontaneamente depois.

N — Nos Tantras fala-se de exercícios espirituais praticados em companhia de mulheres29.

SR — Esse caminho não é bom. É muito difícil e a queda é quase inevitável. Em relação à Mãe, podemos adotar três comportamentos: a atitude viril30, a da serva, a do filho31. Minha atitude é a do filho. A atitude da serva é boa também. A viril é muito difícil. A do filho é a mais pura.

Os sadhus da seita de Nanak entraram e saudaram o Mestre dizendo Namo Narayanayah* . O Mestre os fez sentar. Ele estava dizendo:

SR — A Deus nada é impossível. Ninguém jamais pôde descrever Sua natureza, e Ele pode fazer tudo. Uma vez, havia dois yoguis que praticavam sua disciplina espiritual (sadhana) juntos. Passou por ali o grande sábio Narada. Um deles o conhecia e disse-lhe: “Você estava perto de Narayana, então o que Ele estava fazendo?” Narada respondeu: “Estava fazendo passar e repassar elefantes e camelos pelo buraco de uma agulha”. O primeiro sadhu disse: “Não me espanta: para Ele tudo é possível!” Mas o outro disse: “Não é verdade! Você nunca esteve junto de Deus32!”

Já eram quase nove horas, o Mestre estava sentado em seu quarto . Monomohon33 chegou com sua família, vindo de Konnogor. Prosternou-se diante do Mestre e disse: “Eu os estou levando para Calcutá”. O Mestre perguntou sobre sua saúde, e disse: “Você os está levando a Calcutá hoje, um dia nefasto34? Nunca se sabe, meu caro.” Sorriu e falou de outra coisa.

Norendro e seus amigos voltaram de seu banho no Ganges. O Mestre disse a Norendro, com um pouco de impaciência: “Agora vá meditar debaixo do baniano* (“figueira” não fica melhor, com uma nota dizendo que se trata do baniano?). Você quer um tapete de meditação?” Foram na direção do panchavati. Um pouco depois das dez e meia, o Mestre foi também, acompanhado por M.

SR — (aos brahmos) — Quando vocês meditam, é necessário mergulhar. O tesouro está no fundo da água, não se pode encontrá-lo ficando na superfície.

Começou a cantar com sua voz doce:

 

Mergulha, minha alma, pronunciando o nome de Kali

Nas ondas insondáveis do oceano do coração.

Se não encontrares nada em um ou dois mergulhos

Não penses que as profundezas estão vazias.

Prende tua respiração, reúne tuas forças, desce

Até a raiz da Kundalini.

No seio do oceano de conhecimento, minha mente,

Encontrarás a pérola da paz;

Armada de devoção, colhe-a, que Shiva te guie.

Protege-te pela cúrcuma do discernimento

Dos seis crocodilos35 que procuram devorar.

Quantas gemas sob esta água, diz Ramprasad.

Ousa saltar nela, o tesouro te recompensará!

 

Norendro e seus amigos desceram do terrapleno que rodeava a árvore e ficaram de pé perto do Mestre. Conversando, caminharam em direção a seu quarto. O Mestre dizia: quando mergulhamos, podemos encontrar crocodilos, mas eles não atacam a pessoa que esfregou cúrcuma no corpo. Do mesmo modo, nas “ondas insondáveis do oceano do coração” moram os seis crocodilos da luxúria, etc., mas o discernimento e a renúncia são a cúrcuma que os afasta.

De que serve fazer conferências sobre a religião quando faltam discernimento e renúncia? Deus é verdadeiro e todo o resto passa, Ele é a realidade e todo o resto é irreal, isso é o que se chama discernimento. Primeiro instale Deus no templo de seu coração, e depois discuta e faça conferências quanto quiser. Para que ficar o tempo todo com Brahman, Brahman na boca, sem discernimento nem renúncia? É como fazer soar a concha sem celebrar o culto.

Numa aldeia morava um rapaz chamado Padmalochan36, que todos chamavam Podo. Havia ali um templo em ruínas, desprovido de imagem divina. As árvores cresciam entre suas pedras. O interior abrigava morcegos. O chão estava coberto de pó e excrementos de morcegos. Ninguém vinha mais ali. Um dia, pouco antes do crepúsculo, os aldeões ouviram soar as conchas. Do lado do templo chegavam profundos “bhô, bhô”. Todos pensaram: “Alguém deve ter recolocado uma imagem do Senhor, e o arati37 vai ser celebrado”. Todos, crianças, velhos, homens e mulheres, correram para o templo para o darshan do Senhor e o arati. Um deles aproximou-se devagarinho e olhou para dentro. Padmalochan estava só e fazia soar a concha, “bhô, bhô”. Não havia nenhuma imagem, o templo não havia sido varrido, os excrementos de morcego continuavam pelo chão. Então aquele homem gritou:

 

Para que fazer soar as conchas, Podo?

Nenhum deus mora no teu templo,

Nada mais que onze morcegos!

 

Se você quer instalar Deus no templo de seu coração, se quer obter o conhecimento do Senhor, não basta fazer “bhô, bhô” numa concha. Primeiro é necessário purificar a mente. O Senhor se instala numa mente pura. Mas não vem morar entre os excrementos dos morcegos. Os onze morcegos são os onze sentidos, cinco para a percepção, cinco para a ação, e a mente. E uma vez que o Senhor esteja instalado no coração, dê conferências à vontade.

Mergulhe primeiro, traga o tesouro do fundo do mar, depois ocupe-se do resto.

Mas ninguém quer mergulhar. Sem disciplina, sem discernimento, sem renúncia, mal se começa a aprender e já se está ensinando.

Ensinar não é uma tarefa pequena. Depois da visão do Senhor, e por Sua ordem expressa, pode-se ensinar aos homens.

________________

 

O Mestre falava assim de pé, voltado para o oeste, na varanda norte de seu quarto. Moni38 estava de pé ao seu lado. Como o Mestre sempre repetia que não se encontra o Senhor sem discernimento nem renúncia, Moni estava perturbado e perguntava-se: “E eu, como vou fazer?” Educado à inglesa, estava com 28 anos e era casado. Não sabia como renunciar ao sexo e ao dinheiro.

MONI (a SR) — Se uma esposa diz ao seu marido “Você não me dá mais atenção, vou me matar”, o que ele deve fazer?

SR (gravemente) — É preciso abandonar uma mulher que coloca obstáculo no caminho de Deus. Que ela se suicide, ou que aconteça o que tiver de acontecer! Uma esposa que se ponha de atravessado no caminho para Deus encarna a obscuridade.

Profundamente impressionado, Moni apoiou as costas na parede e pôs-se a pensar. Norendro e os outros permaneceram silenciosos um instante.

O Mestre falou com eles um pouco, depois, de repente, aproximou-se de Moni e disse-lhe baixinho: “Mas aquele que tem uma devoção profunda para com Deus não tem nada a temer de ninguém, nem do rei, nem dos maus, nem de sua esposa. Se ele perseverar no seu amor, sua esposa também se aproximará de Deus. Se ele próprio progredir e se Deus assim o quiser, sua esposa avançará também39”.

Essas palavras apagaram o fogo que queimava Moni. Ele estava pensando: “Ora, que ela se mate! O que eu posso fazer?”

MONI (a SR) — Esse mundo é realmente aterrorizante!

SR (a Moni e Norendro) — Por isso é que Chaitanya dizia: “Ó Nityananda, meu irmão, os mundanos nunca terão sucesso”. (dirigindo-se a Moni, mais baixo) — Sem um amor puro por Deus, é verdade que não se consegue nada. Mas aquele que permanece no mundo depois de ter conhecido a Deus não tem nada a temer. Precisa de vez em quando ir praticar uma disciplina em solidão, adquirir a verdadeira devoção, e então o mundo não é mais aterrorizante. Entre os discípulos de Chaitanya havia chefes de família, mas de mundano só tinham o nome. Viviam no mundo sem apego.

Chegara a hora das oferendas ao Senhor, e a música se fez ouvir no nahabat. Depois Norendro e os outros fiéis comeram o prasad na companhia do Mestre.

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Numa carta muito bonita de 189640, Vivekananda (Noren) escreve:

“Aos vinte anos eu era o fanático menos capaz de simpatia e tolerância; não teria caminhado pela calçada de Calcutá onde ficam os teatros. Aos trinta e três anos, posso viver sob o mesmo teto com prostitutas sem jamais ter a idéia de lhes dirigir uma palavra de censura. Será que estou degenerando, ou será que estou me expandindo nesse amor universal que é o próprio Senhor?”

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DIÁLOGO 5*

VISITA AO BRAHMOSAMAJ EM SINTHI: 28 DE OUTUBRO DE 1882

 

Este diálogo ocorreu no dia seguinte ao passeio de barco (Diálogo 2) numa atmosfera bem diferente: fervor cheio de alegria da multidão, mas reserva da parte de Shivanath, o chefe dessa ramificação do Brahmosamaj, que não veremos outra vez. Os grandes temas do ensinamento de Ramakrishna são apresentados aqui de maneira muito coerente e harmoniosa.

 

1  O paramahamsa vai à festa do Brahmosamaj em Sinthi. Estamos no sábado, 28 de outubro de 1882.

Uma grande assembléia está prevista para hoje. Os brahmos1 organizam duas festas por ano, e convidaram Sri Ramakrishna, que saiu então do templo de Kali num fiacre com alguns discípulos, entre três e quatro horas, para ir à magnífica residência de Benimadhob Pal, onde acontece a festa. Sri Ramakrishna tem grande afeição pelo Brahmosamaj, e os brahmos lhe retribuem com muito carinho e respeito. Na véspera ele tivera a alegria de descer o Ganges de barco, de Dakshineswar até Calcutá, com Keshob Chondro Shen e seus discípulos.

Sinthi é uma cidadezinha a alguns quilômetros ao norte de Calcutá. Eu disse que aquela casa de campo era magnífica — era um lugar muito retirado, propício ao recolhimento e à oração. O dono do lugar organizava uma grande festa religiosa ali duas vezes por ano, na primavera e no outono, e convidava numerosos devotos de Calcutá e das cidadezinhas vizinhas de Sinthi. Por isso Shibnath2 e numerosos outros devotos encontravam-se ali. Muitos já haviam participado do serviço religioso da manhã, mas haveria um outro à noite, e eles permaneciam ali, sobretudo porque fora anunciada a visita de Sri Ramakrishna à tarde. Todos haviam ouvido falar dele, e esperavam ver seu rosto radiante de alegria, deixar-se cativar pelo seu ensinamento, ouvi-lo cantar e vê-lo dançar na embriaguez de Deus.

Por isso, à tarde o jardim estava cheio de gente. Alguns estavam sentados à sombra dos caramanchões, ou passeavam em pequenos grupos pelos gramados ou à beira dos espelhos d’água. Outros esperavam a chegada de Sri Ramakrishna no próprio local da reunião, para terem certeza de encontrar um lugar. À porta do jardim instalara-se um vendedor de bétel* e bebidas. Tinha-se a impressão de estar nos arredores de um templo antes de uma noite de festa. O céu azul do outono resplandecia. Desde a manhã, um vento de alegria soprava no parque. Entre as árvores e as trepadeiras do jardim, os animais, as flores, os pássaros pareciam cantar juntos a harmonia daquele dia iluminado pelo Senhor.

Quando o carro que trazia o pamahamsa entrou no parque e parou em frente à casa, todos se levantaram respeitosamente para recebê-lo. Ele desceu. As pessoas o rodeavam de todos os lados. No centro do edifício principal erguia-se o altar, e aquele lugar estava superlotado. No edifício em frente, lotado também, haviam preparado um assento para o Mestre. Nas duas salas, de ambos os lados, mais gente, espremendo-se nas portas para olhar. A escada que corria ao longo da fachada também estava coberta de espectadores. Não longe da escada, algumas árvores e caramanchões com bancos, e ali também encontravam-se espectadores dispersos, ávidos por avistar o santo. No jardim, um grande número de árvores frutíferas ou ornamentais, balançando suavemente ao vento, como se quisessem também saudar o Mestre.

O pamahamsa sentou-se no local que lhe fora preparado. Sorria, e todos os olhares estavam fixos em seu rosto radiante. Poder-se-ia comparar aquilo ao momento em que a cortina do teatro se abre: as pessoas que se agitavam, rindo, mascando bétel ou fumando, esticando as pernas, sozinhas ou acompanhadas, param de repente e os olhares se voltam para o palco. Ou então, dir-se-iam zangões que, esvoaçando ruidosamente entre as flores, descobrem um lótus e precipitam-se em direção a ele, abandonando as flores comuns.

 

2  O Mestre procurou com o olhar o Sr. Shibnath, e exclamou alegremente: “Ah! Ali está Shibnath! Vocês todos aqui são devotos de Deus, que alegria estarmos juntos! Nós somos como fumantes de haxixe, que ficam felizes ao encontrar-se entre fumantes e abraçam-se todos!” Shibnath e os outros puseram-se a rir.

Quando as pessoas vêm me ver e não têm a mente voltada para Deus, eu lhes digo: “Vocês ficariam melhor lá fora ao ar livre”, ou então: “Os prédios de Rashmoni3 são muito bonitos, vão conhecê-los”. Mas às vezes os devotos trazem pessoas que parecem aborrecer-se tanto! Estão com a cabeça cheia de negócios e perdem a paciência. Os devotos gostariam de falar de Deus comigo e os outros não param sentados. Eu os vejo remexendo os pés, cochichando: “Fis-fis-fis! Ainda vai demorar muito? A gente já vai indo!” Respondem-lhes: “Não se levante! Só mais um pouquinho”. Então ficam zangados: “Bom, fique o quanto quiser, vamos esperar você no barco” (risada geral).

Os mundanos não ouvem quando alguém lhes diz para esquecer seus negócios e mergulhar na contemplação aos pés de lótus do Senhor. Os dois irmãos Gour e Nitai4 deliberaram sobre como atrair os mundanos e fizeram uma canção:

 

Quem o Nome repetir,

Sopa de peixes ganhará,

Uma beldade o abraçará.

Diga Hari! Diga Hari! Diga Hari!

 

Para conseguir tudo aquilo, as pessoas repetiam o Nome de Hari, e quando começavam a degustar o sabor, percebiam que era verdade: a sopa de peixes são as lágrimas que escorrem por amor a Deus, e a jovem beldade é a terra, que nos abraça quando o êxtase nos faz rolar na poeira.

Nitai queria de qualquer maneira fazer as pessoas cantarem o Nome do Senhor. Já Chaitanya dizia que o Nome é terrivelmente poderoso. Não se vê o seu fruto imediatamente, mas ele vem a seu tempo. Como uma semente esquecida no debrum de uma janela. Muito tempo depois a casa desmorona, a semente encontra a terra, germina, a árvore cresce e dá frutos.

Por toda parte encontram-se os três modos: sattva (luminoso), rajas (ativo) e tamas (obscuro). Nós os encontramos também na devoção (bhakti). Como se apresenta um chefe de família em quem predomine sattva? Talvez sua casa não seja bem cuidada, aqui e ali as paredes precisam de reparos e encontramos excrementos de pombos. Isso não o perturba, e o lodo no pátio também não. Seus móveis são velhos, e ele não faz nada para impressionar as pessoas. Talvez tenha uma roupa só; é calmo e polido, benevolente, sem rodeios, e não faz mal a ninguém.

Um mundano sob a influência de rajas usa um relógio com uma corrente grossa, e dois ou três anéis na mão. Exibe uma mobília esplêndida. Na sala de visitas ele pendura os retratos da rainha, do príncipe de Gales e algumas outras celebridades. Sua casa é reluzente, caiada, sem uma mancha. Ele sempre muda de roupa e seus criados usam uniforme. Em sua casa tudo é abundante.

Já aquele em quem tamas se manifesta é dominado pela preguiça, a luxúria, a cólera, o orgulho, etc.

Os três modos se encontram também entre os devotos. Aquele que tem predominância de sattva pratica a meditação em segredo, sob o mosquiteiro, por exemplo. As pessoas da casa acham que ele se levanta um pouco tarde, porque tem um sono difícil. Come o necessário para acalmar a fome, sem muita exigência. Nele não há ostentação, e nunca iria mentir ou bajular as pessoas para conseguir dinheiro delas.

O devoto rajásico usa na testa um ponto vermelho ou outras marcas de seita. Deixa à mostra o seu rosário de rudrakshas*, no qual são visíveis algumas contas de ouro (risos). Coloca uma roupa de seda para celebrar o puja.

O devoto tamásico tem uma fé ardente. Ele assalta Deus, como um bandido que quer apoderar-se de riquezas e grita “Bate! Mata! Amarra!”

 

3  Levantando os olhos para o céu, o Mestre pôs-se a cantar, com uma voz cheia de emoção,

 

Por que iria eu como peregrino ao longo do Ganges,

Para Kashi ou Kanchi, para Gaya ou Prabhas?

Digo Kali, Kali, Kali. Quando morrer,

Com esse Nome se exalará meu último alento.

Chamar Kali nos três nós do dia

Substitui todos os ritos e sacrifícios.

Oferendas e votos ficaram bem lá para trás,

Jamais poderão me alcançar.

Uma única coisa atrai minha mente, diz Madan,

Os pés benditos da Mãe misericordiosa.

Quem pode cantar a glória do Nome de Kali?

Só Mahadev5 com suas cinco bocas.

 

Como se estivesse queimando em fogo, cantou ainda6:

 

Quero morrer pronunciando Teu Nome, Durga! Durga!...

 

É preciso ter energia: “Como? Se eu pronunciei Seu Nome, o que pode restar do meu pecado? Sou seu filho, o herdeiro de Sua glória!” É voltando para Deus a violência de tamas que se pode alcançá-Lo: Ele aceita a nossa violência. Ele não é um estranho, mas sim nosso parente próximo. Às vezes a violência pode ser usada para o bem. Vejam os médicos. São de três tipos. O médico que vem, toma o pulso, dá sua receita e se vai dizendo “Até logo, tome direito seus remédios”, eu o chamo de mau médico. Para ele tanto faz se o doente se cura ou não. É um pouco melhor quando tenta convencer: “Como sarar se você não toma seus remédios? Olhe, fui eu mesmo que preparei para você essas pílulas bonitinhas”. Mas o verdadeiro bom médico forçará seu doente a tomar o remédio, até mesmo colocando-lhe o joelho no peito, se necessário. Isso é tamas usada para o bem, não se pode censurá-lo.

O mesmo ocorre com os mestres que transmitem ensinamentos espirituais. Os de qualidade inferior dão a instrução e não pedem mais notícias do discípulo. Há aqueles que para o bem do discípulo lhe dão repetidas explicações, tentam fazê-lo compreender o essencial, demonstram-lhe interesse e afeição — são os mestres de qualidade média. E enfim os mestres de qualidade superior, que procuram garantir por todos os meios, pela força se preciso, que o discípulo ouça bem, compreenda e ponha em prática.

 

4  Um dos brahmos perguntou: “Deus tem forma ou é sem forma7?”

SR — Não se pode colocá-Lo num saco! Ele é um e outro ao mesmo tempo: toma forma para o amor de Seu adorador e é sem forma para o vedantista (jñani), isto é, para aquele que considera o universo como um sonho. Mas o bhakta considera que ele próprio e o universo são distintos, e Deus Se manifesta a ele como uma pessoa. O vedantista passa o seu tempo discriminando: “Isso não, isso não”. Pouco a pouco, percebe: “Eu sou uma ilusão, o mundo é uma ilusão, um sonho”. E assim toma consciência do Absoluto. O que Ele é, a língua não pode expressar. Como explicar isso? Imagine Deus8 como o oceano, um oceano sem margens. O amor de Deus seria como o frio, que congelasse a água em alguns lugares. Uma vez congelada, a água pode ter uma forma. Assim, Deus se mostra ao devoto como uma pessoa, tomando às vezes uma forma. Mas o sol do conhecimento se levanta, o gelo derrete de novo, e não se pode mais dizer que Deus seja Pessoal; não se consegue mais encontrar forma e a linguagem não pode mais descrevê-Lo. Quem vai dizê-lo? Aquele que o sabe não está mais presente! Nem sequer encontra mais seu próprio ego.

Se você descascar bem o ego, não vai sobrar nada. Como uma cebola: primeiro uma casca vermelha, depois uma casca branca e espessa, depois vem camada após camada e no centro — nada. E aquele que partiu à procura de seu próprio eu e não encontrou nada, o que é que se torna? A forma do Absoluto que se manifestou à sua consciência, quem poderia descrevê-la? Uma boneca de sal foi sondar o oceano. Assim que entrou na água foi dissolvida e tudo se tornou Um. Quem sobrou para trazer notícias?

Qual é a característica do perfeito conhecimento? Aquele que o obtém não fala mais. Então o eu da boneca de sal está dissolvido no oceano de Deus (Satchidananda), e não resta mais nem sombra de uma diferença. Enquanto não acabam de discriminar, as pessoas discutem ruidosamente. Depois vem o silêncio. Uma garrafa na água da lagoa faz bolhas enquanto resta ar dentro dela, depois é a mesma água dentro e fora, não se ouve mais nada. O ruído indica que a garrafa ainda não está cheia. Outrora havia um ditado: Os navios que alcançam as “águas negras” do oceano não voltam jamais.

Com o eu no chão, acaba-se a amolação (risos). Mas não adianta você discriminar mil vezes, ainda vai encontrá-lo presente. É por isso que, para as pessoas como você e eu, o melhor é manter a idéia de que “eu sou o adorador”. É uma boa atitude.

Para o devoto, Deus (Brahman) se reveste de atributos — de atributos, quer dizer de uma personalidade, de uma forma que Ele permite que se veja. Sob esse aspecto Ele ouve suas preces, e quando você reza dirige-se a Ele sob esse aspecto. Vocês não são vedantistas, buscadores de conhecimento (jñanis), mas devotos (bhaktas). O essencial não é que vocês acreditem ou não em Suas formas, mas que O concebam como uma Pessoa que ouve as preces, realiza a obra da criação, preservação e destruição, e que é Toda-Poderosa.

É fácil chegar a Deus seguindo o caminho da devoção.

 

5  Um brahmo fez a seguinte pergunta: — Senhor, pode-se ver Deus? E se podemos, por que não O vemos?

SR — Claro, sem a menor sombra de dúvida, podemos vê-Lo. Como Deus com forma e como Deus sem forma. Como fazê-los entender isso?

Brahmo — Como se consegue vê-Lo?

SR — Você é capaz de chorar de saudade de Deus? As pessoas choram por seus filhos, por sua esposa, pelo dinheiro — baldes de lágrimas. Mas quem chora por Deus? Enquanto o bebê brinca com a chupeta na boca, sua mãe vai e vem na casa, cozinha e limpa. De repente, ele joga a chupeta e começa a gritar; então sua mãe tira a panela do fogo, corre e pega-o no colo.

Um Brahmo — Senhor, por que tantas opiniões sobre a natureza de Deus? Uns dizem que Ele tem forma, outros que é sem forma, e os que falam de Suas formas O descrevem todos de maneiras diferentes. Por que todas essas complicações?

SR — As pessoas vêem o aspecto de Deus pelo qual se sentem atraídas. Na realidade não há contradição. Aquele que alcança Deus, não importa de que modo, Deus o faz compreender tudo. Mas não se pode realmente explicar a  quem não O viu. Ouça uma história. Um homem entrou num bosque para satisfazer uma necessidade e viu um animal numa árvore. Ao sair, disse a alguém: “Vi numa árvore um bichinho vermelho, bonito”. O outro responde: “Eu vi também. Mas por que vermelho? Era verde”. Outros o tinham visto amarelo ou branco, ou cinza. Discutiram e depois entraram no bosque para se entender. Ao pé da árvore, encontraram um homem que lhes explicou: “Eu vivo aqui e conheço bem esse animal. Podem acreditar em mim: é um camaleão, ora vermelho, ora verde, ora amarelo ou azul, qualquer cor! Mas em certos momentos vejo também que não tem cor nenhuma”. Ora Ele tem atributos, ora é sem atributos.

Ou melhor: só aquele que vive na presença contínua de Deus pode ter uma idéia de sua natureza. Conhece Seus aspectos múltiplos, com formas e sem forma. Aqueles que O viram uma única vez conhecem-nO sob um único aspecto e ficam discutindo. Vivendo ao pé da árvore, aprende-se que o camaleão tem muitas cores, e às vezes nenhuma cor. Os outros discutem, brigam e sofrem. Kabir9 dizia: “Deus sem forma é meu Pai, Deus com forma é minha Mãe”.

Ele se mostra ao seu adorador sob a forma preferida por este — tamanha é Sua bondade para com Seus devotos! Diz-se nos Puranas que Ele tomou a forma de Rama por amor a Hanuman, o devoto heróico.

Aquele que discrimina segundo a Vedanta manda às favas todas as formas: a conclusão da Vedanta é que o Uno é a única realidade; o mundo, os nomes e as formas são irreais. Enquanto resta ego suficiente para pensar “Eu sou o adorador”, continua sendo possível também considerar Deus como uma Pessoa e contemplar Suas formas. Mas do ponto de vista da discriminação, o “eu” do adorador e a própria adoração desaparecem.

Vocês sabem por que se representam Kali e Krishna por meio de imagens em tamanho pequeno? Por causa da distância. O sol nos parece pequeno por causa da distância, mas visto de perto ele é tão grande que ultrapassa nossa imaginação. E por que são representados em negro10? Da mesma forma como a água de um lago nos parece verde, azul ou negra de longe, mas na concha da mão vemos que é incolor. De longe o céu é azul, embora o ar não tenha cor.

Por isso eu lhe respondo: segundo a Vedanta, o Uno é sem qualidades e é impossível descrever o que Ele é em si. Mas se você mesmo é real, então o mundo é real também, as múltiplas formas de Deus são reais, e temos o direito de considerá-Lo como Pessoal.

Seu caminho é o caminho da devoção, e aliás é ótimo — é um caminho fácil. Pode-se conhecer o Deus Infinito? E aliás para quê? Se eu obtive este precioso nascimento humano, foi para buscar os Pés de Lótus do Senhor. Já que um cântaro de água basta para acalmar minha sede, para que medir o lago? Meia garrafa de vinho basta para me embriagar, para que contar os tonéis na adega? Não temos necessidade de conhecer o Infinito.

 

6  As etapas no caminho do conhecimento (jñana) são descritas nos Vedas. É um caminho muito difícil. Uma sombra de apego pelas coisas do mundo, pelo sexo ou o dinheiro, basta para impedir o conhecimento. Não é um caminho para nossa Era.

Os Vedas descrevem a ascensão da mente em sete etapas11. Na vida comum, a mente reside nos três níveis inferiores (o sexo, o ânus e o umbigo) e nunca olha para o alto, só se preocupa com sexo e dinheiro. O quarto plano situa-se no nível do coração e é ali que a consciência desperta pela primeira vez: então vemos luz de todos os lados, ficamos estupefatos e exclamamos: “O que é isso? O que é isso?” E a mente não quer mais descer aos níveis inferiores, para o mundo. O quinto plano está situado na garganta. Aquele cuja mente alcança esse nível livra-se de sua ignorância e não suporta mais ouvir falar de outra coisa que não seja Deus. Se alguém aborda outro assunto, ele se levanta e sai. O sexto plano encontra-se no nível da testa. Quando a mente o atinge, a visão de Deus se torna permanente. Ainda resta contudo um pouco de consciência do eu. Sentimos a presença incomparável de Deus, estamos embriagados por Ela, gostaríamos de tocá-Lo e abraçá-Lo, mas não podemos: é como uma lanterna cuja chama vemos através do vidro, que nos impede de tocá-la. Enfim, o último plano acha-se no alto da cabeça: quando a mente chega ali produz-se o êxtase (samadhi) e o conhecimento do Absoluto (Brahman) com toda clareza. Mas nesse estágio o corpo não resiste mais do que alguns dias. Fica totalmente inconsciente. Não se consegue alimentá-lo: se tentam colocar leite em sua boca, o leite escorre para fora. A morte chega vinte e um dias depois. Tal é a condição do buscador do Absoluto (Brahmajñani). Mas vocês são bhaktas (devotos)! É tão bom quanto, e mais fácil.

Uma vez alguém me perguntou: “O senhor poderia me fazer conhecer esse tal samadhi?” (risos).

Após o samadhi, todas as ações se afastam: atividades do mundo e práticas religiosas. No início as atividades fazem grande tumulto. À medida que se avança para Deus seu estrépito diminui. Mesmo os louvores acabam cessando. (Dirigindo-se a Shibnath) — É como quando você vem presidir a assembléia: primeiro as pessoas esperam você e falam de você. Depois, quando você chega e sobe ao púlpito, elas sentem a alegria de vê-lo em pessoa e se calam para ouvir12. Dizem: “Ah! É Shibnath Babu!” E por causa de você as conversas param.

Depois de ter passado por esse estado, eu quis fazer a oferenda ritual (tarpanam) de água do Ganges aos ancestrais. Impossível! A água que eu pegava nas minhas mãos escorria entre os dedos. Comecei a chorar e chamei Holodhari13: “Irmão! Venha ver o que está acontecendo comigo!” Holodhari disse: “Nas Escrituras isso se chama galitahasta14”. De fato, torna-se impossível realizar esses rituais depois de ter visto Deus15.

No início do kirtan, todos cantam meu Nitai dança como um elefante louco. Depois a emoção se torna intensa e eles só conseguem dizer elefante, elefante, depois fante, fante, e enfim são tomados pelo êxtase, o objetivo do kirtan é atingido e tudo silencia. Quando se oferece um festim aos brâmanes, no início há uma grande alarido quando todo mundo chega. Diminui um pouco quando cada um está sentado à frente de seu prato, mas de todo lado se ouve: “Tragam luchis, mais luchis”. Depois comem os legumes e três quartos do barulho desaparecem. Na sobremesa, não se ouve quase que mais nada, só gente engolindo, “sup, sup” (risos). Depois, de barriga cheia, eles dormem e chega o silêncio.

Portanto, eu lhes digo: no começo, há a agitação das obras, depois nós nos aproximamos de Deus e a ação se acalma; no final ela cessa e vem o êxtase. Quando a nora está grávida, sua sogra lhe dá cada vez menos trabalho na casa, e quando a criança nasce a mãe só cuida do bebê. Ela fica passeando com ele no colo; a sogra e as cunhadas se encarregam de tudo.

Em geral, o corpo não continua a viver depois do samadhi. Os que conservam seu corpo ficam aqui para ensinar, como Narada e os outros, ou então são avatares do próprio Deus, como Chaitanya16. Uma vez cavado o poço, damos fim na pá e no cesto para terra, mas alguns os guardam, pensando: “Isso poderá servir para outros”. Da mesma forma as grandes almas não têm o sentimento egoísta “obtive o conhecimento, ponto final”; elas se compadecem do sofrimento dos outros. Vocês sabem como é um egoísta: se você lhe disser para urinar ali, ele pensa que você está querendo tirar vantagem e vai a outro lugar (risos), e se o mandar comprar para você um pirulito de três centavos, ele vai dar uma lambidinha para garantir sua recompensa (risos).

Nem todos os homens recebem a mesma força (shakti). Um recipiente comum não contém o suficiente para ousar ensinar. Um pedaço de madeira consegue flutuar sozinho, mas se um pássaro pousar em cima, ele afunda. Narada e os outros são majestosos troncos de árvores. Não só flutuam eles próprios, como também podem carregar homens, vacas, até elefantes.

 

7  (Dirigindo-se a Shibnath) — Diga-me, por que falam tanto da glória de Deus? Eu havia feito essa pergunta a Keshob Shen. Uma vez, todos tinham ido me visitar lá (no templo), e eu lhe disse: “Quero ouvir um de seus sermões”. Eles sentaram-se na escada grande frente ao Ganges e Keshob começou a pregar. Falou tão bem que entrei em êxtase. Em seguida, eu lhe disse: “Por que você insiste tanto: meu Deus, criaste todas essas belas flores, criaste o céu, o oceano, etc.? Descrever tanto assim a glória de Deus prova que você mesmo ama a glória”. Quando roubaram as jóias do templo de Krishna, Sejobabu17 foi ao templo e disse ao Senhor: “Que vergonha para Ti! Nem mesmo foste capaz de proteger Tuas próprias jóias”. Eu lhe disse: “Você é esperto mesmo! O que poderá faltar para Aquele que tem Lakshimi18 como esposa e serva? Para você aquelas jóias têm valor, mas para Deus é como barro. Vergonha é você falar tamanhas besteiras! O que é que você pode dar a Deus para aumentar Sua glória?” Quando amamos alguém, será que lhe perguntamos de onde é sua família? Quantas casas, jardins, empregados e dinheiro possui? Quando vejo Norendro, esqueço tudo: onde é sua casa, o que faz o seu pai, quantos irmãos ele tem... Nunca lhe perguntei nada disso. É preciso mergulhar na doçura de Deus. Sua criação é infinita, Sua glória é infinita, não cabe a nós descrevê-la.

Começou a cantar com sua voz encantadora:

 

Mergulha, mergulha, ó minha mente, no oceano de beleza,

O tesouro de amor está lá, se descermos até o fundo.

Busca, busca em teu coração: Brindabon19 lá está escondido.

Acende, acende em ti a chama do fogo sem declínio.

Quem conduzirá teu barco, remando em terra firme?

Escuta, escuta, diz Kubir, segura bem os pés de teu guru!

 

É verdade que, uma vez alcançado o conhecimento de Deus, o devoto deseja contemplar Seu Jogo. Vejam, quando Rama entrou na capital dos rakshasas20 depois de ter matado Ravana, a velha mãe deste, Nikasha, fugiu correndo. Lakshmana21 disse: “Não a compreendo, Rama. Ela é tão velha, perdeu tantos filhos e ainda tem apego à vida!” Rama mandou que fossem buscá-la, com a garantia de que não lhe fariam nenhum mal e interrogou-a. Ela respondeu: “Rama, foi por estar viva que pude ver Teu Jogo até agora, e gostaria muito de ver a continuação!” (risos).

O Mestre voltou-se para Shibnath: — Eu estava com tanta vontade de ver você! Que outro prazer existe para mim além de encontrar puros adoradores de Deus? É como se já tivéssemos sido todos velhos amigos numa existência anterior!

Um Brahmo perguntou: “Então o senhor acredita na reencarnação?”

SR — Bom, sempre ouvi dizer que é assim22. Será que nós podemos compreender as obras de Deus com nossa pequena inteligência? Existe gente demais afirmando isso para que eu possa duvidar. No momento da morte de Bhishma23, enquanto ele jazia em seu leito de flechas, os Pandavas permaneciam de pé ao seu lado com Sri Krishna, e viram que ele estava chorando. Então Arjuna24 disse a Krishna: “Vê que coisa extraordinária: até Bhishma, o grande herói, mestre de si, veraz, cheio de sabedoria, até ele chora diante da morte!” Bhishma respondeu: “Krishna, Tu bem sabes que não é a morte que me faz chorar. Estou vendo que os tormentos dos Pandavas não têm fim, embora Deus em Pessoa tenha vindo conduzir seu carro25. Choro por não conseguir compreender os caminhos de Deus!”

Eram quase oito e meia, e o serviço religioso começou. A lua subiu no céu e inundou com sua luz pura as árvores e as trepadeiras do jardim. Terminadas as preces, veio o kirtan. O Mestre dançou, embriagado pela alegria de Deus, e os brahmos dançaram ao redor dele em círculos, ao som dos tamborins e dos címbalos. Todos estavam fora de si mesmos, como se tivessem estado em presença do Senhor. Repetiam com voz forte o Nome de Hari, que chegava em ondas até as aldeias mais próximas. Estavam todos cheios de gratidão para com Benimadhob, que lhes havia proporcionado tamanha alegria26.

Ao fim do kirtan, o Mestre se prosternou no chão, saudando a Mãe do Universo e repetindo “Saudações ao Senhor, à Escritura, ao adorador27! Saudações aos pés do jñani! Saudações aos pés do bhakta! Saudações aos adoradores do Deus sem forma e do Deus com forma! Saudações aos adoradores de outrora! Saudações aos modernos adoradores do Brahmosamaj!

A seguir serviram a todos um delicioso jantar.

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Segue-se um trecho do diálogo III.4 (julho de 1883), retomando a discussão com um brahmo sobre a reencarnação (ver a nota 22), e que mostra explicitamente a atitude de Ramakrishna para com alguém que quer  saber e discute.

 

8  ... Moni (isto é, M) havia recebido uma educação inglesa, por isso não acreditava nas marcas (samskaras) das existências anteriores. Mas alguns dias antes o Mestre lhe dissera que a grande devoção que lhe dedicava Odhor28 explicava-se pelos méritos de suas existências anteriores, e Moni concordara. Depois havia refletido no caminho de volta e não conseguira aceitar inteiramente aquela crença. Por isso, hoje decidira voltar ao assunto com o Mestre. Este lhe perguntou:

SR — E então, o que você acha do Odhor?

Moni — Acho que ele é muito simpático.

SR — Odhor também tem simpatia por você.

Moni ficou em silêncio um momento, depois trouxe à baila a questão da reencarnação.

Moni — Tenho dúvidas sobre a reencarnação e as tendências herdadas das vidas anteriores. Será que isso pode me prejudicar no caminho da devoção?

SR — No Universo de Deus absolutamente tudo é possível: é nisso que você deve acreditar. Não se deixe pensar: “O que eu penso é a verdade, o que os outros pensam é falso”. Mais tarde Deus se encarregará Ele mesmo de lhe ensinar a verdade. O homem pode compreender a obra de Deus? Seu Universo infinito? Por isso não me preocupo em compreender tudo. Apoiei-me na idéia de que tudo é possível em Sua criação e afastei tudo isso para só pensar nEle. Um dia alguém perguntou a data a Hanuman. Hanuman respondeu: “Eu não me preocupo com a lua e as estrelas. A única coisa em que penso é Rama”.

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DIÁLOGO 6*

ENTREVISTA COM VIJAY GOSWAMI: 14 DE DEZEMBRO DE 1882

 

Este diálogo apresenta (com muita simpatia) um outro personagem importante do Sadharan Brahmosamaj, Vijay Krishna Goswami. Shivanath Shastri e ele parecem ter dividido entre si a personalidade de Keshav, a ação social para o primeiro e a mística para o segundo. O diálogo, que ocorre diante de um pequeno número de ouvintes, é, mais do que os outros, uma “instrução espiritual” destinada a uma pessoa determinada. O ensinamento de Ramakrishna é colhido aqui por ouvidos atentos, e de fato Vijay abandonará o Brahmosamaj em 1886, para voltar ao hinduísmo ortodoxo.

 

1  Bijoykrishno Gosshami1 visita o Mestre no templo de Dakshineswar, com três ou quatro devotos do Brahmosamaj. Estamos na quinta-feira, 14 de dezembro de 1882. Eles chegaram de barco com Boloram2, o fervoroso discípulo do Mestre. Este último acabava de descansar um pouco. Os que desejavam ter com ele uma conversa um pouco íntima preferiam vir em dia de semana, para evitar a multidão dos domingos.

O Mestre estava sentado na cama. Bijoy, Boloram, M e alguns outros estavam de frente para ele, voltados para o oeste, sentados uns sobre uma esteira, outros no chão mesmo. A porta estava aberta diante deles, deixando entrever a varanda em semicírculo, depois as árvores floridas, o embarcadouro e o Ganges com suas baixas águas invernais, calmas e puras. As águas que purificam de todo pecado pareciam roçar alegremente nos muros dos templos do Senhor.

Como era inverno, todos estavam agasalhados. Bijoy estava doente, com fortes dores de barriga, e trazia consigo um frasco de remédio para tomar na hora certa. Ele recebia um salário como pregador do Sadharan Brahmosamaj3 e falava no púlpito por ocasião dos ofícios, mas discordava do Brahmosamaj em diversos pontos, sem poder expressar-se abertamente. É que Bijoy pertencia à santa linhagem de Advaita Goswami — um vedantista que adorava o Absoluto sem forma, mas que também havia atingido a perfeição do amor, graças ao ensinamento de Chaitanya4, e que podia dançar na embriaguez de Deus com tanto fervor que suas roupas caíam sem que ele percebesse. Esses dois aspectos encontravam-se em Bijoy. O Brahmosamaj oferecia-lhe Deus sem forma, mas não satisfazia sua sede de devoção, herdada de seu grande ancestral. A semente do amor de Deus esperava o momento favorável para germinar, e por isso, diante do Mestre e do turbilhão de embriaguez divina que o transportava, Bijoy ficava como uma naja que se ergue, com o capelo estendido, observando o encantador. Quando o Mestre ensinava, ele ouvia avidamente, e quando o Mestre dançava, com a graça de uma criança, Bijoy animava-se a dançar também5.

O primeiro assunto abordado foi o suicídio de Vishnu, um adolescente da vizinhança, que recentemente cortara a garganta com uma navalha.

SR (a Bijoy, M e outros) — Disseram-me que esse menino havia abandonado seu corpo. Isso me magoou. Ele vinha aqui, ia à escola, mas sempre me dizia: “Não gosto desta vida”. Tinha vivido por muito tempo com parentes no oeste, e lá passava dias inteiros em contemplação, nos campos, nas florestas e nas montanhas. Dizia-me: “Quantas formas divinas eu vi!” Creio que era seu último nascimento. Ele tinha progredido muito em seus nascimentos anteriores e só lhe restava uma pequena dívida a pagar — na minha opinião, agora já está resolvido.

Precisamos acreditar nas marcas das vidas anteriores. Ouvi contar6 que um homem havia ido a uma floresta profunda para invocar a Deusa sob sua forma terrível, por meio de rituais com o uso de um cadáver7. Ele teve muitas visões monstruosas e, para terminar, um tigre o levou. Um outro homem havia subido em uma árvore por medo do tigre. Vendo o corpo e os preparativos da cerimônia, desceu, purificou a boca, sentou-se sobre o cadáver e pôs-se a repetir o Nome da Mãe. Logo em seguida Ela manifestou-se e disse-lhe: “Estou contente contigo e quero dar-te um presente. O que desejas?” Ele caiu aos pés da Deusa dizendo: “Mãe, permite-me uma pergunta. Eu não Te compreendo! Esse homem teve um grande trabalho para preparar tudo isso, submeteu-se a disciplinas durante muito tempo e não tiveste piedade dele — e a mim, que não conheço as Escrituras, não tenho rituais, nem disciplina, nem conhecimento, nem devoção, a mim concedes tamanha graça!” A Deusa sorriu e disse-lhe: “Meu filho, não tens lembrança de tuas vidas anteriores. Vida após vida Me ofereceste teus sacrifícios. Foi para ti que tudo isso foi reunido, e obtiveste o privilégio de ver-Me. Agora, pede-Me o que quiseres”.

Um dos ouvintes disse: “Vishnu se suicidou, tenho receio por ele”.

SR — É verdade, o suicídio é um grande pecado. O suicídio faz voltar muitas vezes a esta terra, para existências dolorosas. Mas se alguém renuncia a seu corpo após alcançar a visão de Deus, isso não se chama suicídio. Ele não cometeu pecado. Ocorre que a pessoa abandona assim o seu corpo quando adquiriu o conhecimento. Depois que a estátua de ouro foi moldada no molde de argila, pouco importa conservar ou quebrar a fôrma.

Há muito tempo, vinha aqui um rapaz de Boranogor. Tinha uns vinte anos e chamava-se Gopal Shen. Cada vez que vinha entrava em êxtase, de tal modo que Hridoy8 precisava ampará-lo (segurá-lo?) para que ele não caísse e quebrasse um braço ou uma perna. Uma vez, ao tocar-me os pés para despedir-se, esse rapaz me disse de repente: “Não poderei mais voltar. Vou partir”. Alguns dias mais tarde, fiquei sabendo que havia deixado seu corpo.

 

2  Dizem que há quatro tipos de homens9: os acorrentados, os buscadores, os libertos e os sempre-livres. O mundo pode ser comparado a uma rede, os homens aos peixes, e Deus, que por Sua Magia (maya) fez o mundo, ao pescador. Quando o Pescador lança Sua rede, sempre há alguns peixes que tentam rompê-la e fugir: são os buscadores. Mas nem todos os que tentam conseguem. De vez em quando um peixe salta com grande ruído e as pessoas gritam: “Oh! Lá se vai um grandão que fugiu!” Também há alguns peixes tão espertos que nunca entram na rede. São os sempre-livres, como Narada e os outros. Mas em sua maioria os peixes são apanhados. Não sabem que morrerão quando a rede for puxada. Afundam na vasa como flechas, arrastam a rede consigo, escondem-se e não se mexem mais. São os acorrentados. Não só não fazem nada para sair dessa situação, como também sentem-se muito bem ali, presos ao mundo, isto é, ao sexo e ao dinheiro. Estão mergulhados num oceano de imundícies, mas isso lhes agrada. Para os libertos e os que buscam, o mundo parece um poço escuro. Por isso alguns, após obterem o Conhecimento ou a visão de Deus, preferem deixar a vida. Mas essa maneira de abandonar o corpo é deveras excepcional.

Os acorrentados, os mundanos, não pensam. Tantas dores, traições, perigos, e eles não se dão conta! Os camelos gostam de pastar espinhos e continuam a comê-los embora o sangue esteja escorrendo de sua boca. Essas pessoas passam por tantas desgraças e algum tempo depois já esqueceram tudo. Um homem que perdeu a esposa, ou foi abandonado por ela, arruma outra. Uma mulher cujo filho morreu fica louca de dor. Passa um pouco de tempo e lá está ela trançando seus cabelos e colocando suas jóias outra vez. Uma família se arruinou para casar uma filha e continua a ter filhos ano após ano. Um indivíduo perdeu tudo num processo e volta ao tribunal. Outros não têm com que alimentar, abrigar e instruir seus filhos, mas não param de procriar.

Às vezes uma serpente apanha uma toupeira muito gorda e não a consegue engolir nem cuspir de volta. Alguns compreendem que a vida do mundo não tem substância, como os abrunhos* , que só têm casca e caroço. Mas não conseguem deixá-la e voltar sua mente para Deus. Vi um parente de Keshob Shen, com mais de cinqüenta anos de idade, que passava o tempo jogando baralho. Como se já não tivesse chegado para ele o momento de cantar o Nome de Deus!

Uma característica dos acorrentados é que eles não suportam ser retirados do mundo e colocados num lugar melhor. Morrem de tédio. Como os vermes que vivem nos excrementos: é ali que se sentem à vontade e ficam gordos e fortes. Se os retirarmos de lá para colocá-los no prato de arroz, morrerão.

Por um momento reinou o silêncio.

 

3  BIJOY — Então, como esses acorrentados podem alcançar a libertação?

SR — Se, pela graça de Deus, forem tomados por uma renúncia ardente, perderão o apego ao sexo e ao dinheiro. O que chamamos renúncia ardente? “Vamos tentar cantar o Nome do Senhor e veremos o que acontece” é a renúncia morna. Um homem tomado pela renúncia ardente sente pelo Senhor a mesma saudade que uma mãe pelo filho de suas entranhas. Excetuando-se o Senhor, nada o atrai. O mundo lhe parece um poço profundo no qual tivesse caído, seus parentes serpentes mortais10 dos quais precisa se proteger, e então afasta-se deles. Não diz: “Primeiro vou acertar minhas questões de família11, depois pensarei em Deus”. Ele tem muita força interior.

Vejam com o que se parece a renúncia ardente. Houve uma seca em algum lugar e os camponeses tiveram que trazer água de longe, cavando canais. Um certo camponês tinha força de vontade. Fez voto de cavar sem parar até que a água corresse em seu canal. Chegada a hora do banho, a esposa lhe mandou a filha deles com óleo e esta lhe disse: “Papai, está na hora, venha passar óleo e lavar-se”. Ele respondeu: “Vá embora, tenho muito que fazer”. À tarde, continuava a cavar e não voltara para tomar banho. Sua esposa veio ela mesma buscá-lo: “Você ainda está trabalhando? Seu arroz já está todo grudado, por que você sempre exagera? Venha comer, você acaba amanhã”. Ele correu para ela com a enxada erguida, gritando: “Você não tem miolos? Não está chovendo, nada cresce. Quer que as crianças morram de fome? Fiz voto de que a água chegaria aqui hoje mesmo, e danem-se o banho e o almoço!” Seu estado era tal que a mulher fugiu. Ele trabalhou o dia inteiro até ficar quebrado pelo cansaço. À noite o canal estava ligado ao rio e ele sentou-se finalmente, olhando a água que corria com doce murmúrio. Sua alma encheu-se de alegria e paz. Voltou para casa e chamou sua esposa: “Prepare meu óleo e meu fumo”. Tomou banho, comeu, depois foi para a cama tranqüilamente e começou a roncar. Essa é a imagem da renúncia fervorosa.

Um outro camponês encontrava-se na mesma situação. Quando sua esposa veio lhe dizer “Você já trabalhou muito, agora venha descansar, não deve exagerar”, ele respondeu pousando a enxada: “Como tu quiser, vamos embora” (risos12). Esse camponês é a imagem da renúncia morna: nunca terminou seu canal. E aqueles que não têm a coragem do primeiro camponês tampouco alcançam o Senhor.

 

4  SR (à Bijoy) — Você antes vinha sempre. Por que não vem mais?

BIJOY — Gostaria muito de vir, mas não estou livre. Aceitei trabalhar para o Brahmosamaj.

SR — É pela “mulher e o ouro13” que os seres perdem sua liberdade, e é por causa da “mulher” que necessitam do “ouro”. Daí toda essa escravidão. Isso impede você de viver como gostaria.

Outrora os sacerdotes do templo de Govindaji em Jaipur eram solteiros e muito orgulhosos. O rajá mandou convocá-los e eles responderam ao mensageiro: “Que o rei venha pessoalmente”. Então o rei arranjou esposas para eles. Não precisou mais de mensageiro! Eles vinham espontaneamente: “Majestade, viemos para a bênção; Majestade, aqui está o alimento consagrado, queira aceitá-lo”. Havia sempre uma razão que os impelia a ir ao palácio: a casa a construir, os rituais a realizar para seus filhos: o primeiro arroz, a cerimônia de aprendizagem do alfabeto...

Você certamente conhece a história dos mil e duzentos monges e das mil e trezentas monjas14. Virabhadra, o filho de Nityananda Goswami15, tinha mil e trezentos discípulos, ascetas de cabeça raspada. Quando se aproximaram da perfeição, Virabhadra ficou com medo: “Eles estão alcançando a perfeição. Tudo o que disserem às pessoas vai se realizar. Por toda parte onde forem, aqueles que os ofenderem serão aniquilados, e eles semearão o terror”. Refletiu e depois disse-lhes: “Venham visitar-me hoje, depois de sua meditação à margem do Ganges”. Ora, aqueles ascetas eram capazes de tal concentração que a maré subia e submergia-os, depois a água baixava, sem que eles sequer percebessem. Entre os mil e trezentos discípulos, cem adivinharam os pensamentos do mestre. Para evitar desobedecê-lo, afastaram-se. Os outros mil e duzentos foram ter com Virabhadra e este lhes disse: “Aqui estão mil e trezentas monjas para servi-los. Vocês as desposarão”. Eles responderam: “Está bem, Mestre. Mas cem de nós foram embora, não sabemos para onde”. Cada um dos mil e duzentos recebeu portanto uma esposa para servi-lo, sua força se foi e eles perderam o fruto de suas austeridades. Tiveram mulheres e perderam sua liberdade.  (Dirigindo-se a Bijoy) — Você sabe por experiência o que é trabalhar para os outros. Veja todas essas pessoas que fizeram estudos em inglês, passaram por tantos exames e se deixam pisar o dia inteiro pelas botas do patrão! Tudo isso por causa da “mulher”. Com ela abriram loja no mercado do mundo e depois é tarde demais para desistir e fazer as malas. É por isso que há tanta humilhação neste mundo, e tanta amargura.

Se um homem for tomado pela renúncia fervorosa e alcançar Deus, então perderá o apego ao sexo. Mesmo se vier a constituir família, sua dependência da “mulher” terá desaparecido e ele não terá mais nada a recear. Imagine um ímã grande e um ímã pequeno: para o qual vai orientar-se a agulha? Deus é o ímã grande e “a mulher” o pequeno. O que ela pode fazer?

UM OUVINTE — Mas então deveríamos detestar as mulheres?

SR — Aquele que viu Deus considera as mulheres com outro olhar. Para ele, todas elas são manifestações da Mãe do Universo e ele adora a Mãe em cada uma delas. (Dirigindo-se a Vijoy) — Venha me ver de vez em quando, isso me dará tanto prazer!

 

5  BIJOY — Tenho meu trabalho no Brahmosamaj. Por isso não posso vir como gostaria. Voltarei na primeira oportunidade.

SR — Cuidado, seu ofício de pregador é difícil. Sem uma ordem expressa de Deus, não devemos guiar as pessoas. Se alguém dispensa um ensinamento sem ter recebido a ordem de Deus, as pessoas não o escutam. Falta-lhe autoridade. Existe em algum lugar16 uma lagoa chamada Haldarpukur. Algumas pessoas faziam suas necessidades à beira dessa lagoa à noite. Todos os que vinham banhar-se gritavam e amaldiçoavam, mas no dia seguinte era a mesma coisa. Então veio um guarda de uniforme com uma placa “Proibido depositar detritos sob pena de ação judicial” e tudo cessou. Quem recebeu o mandato de Deus pode ensinar em qualquer lugar e tornar-se um mestre. Com a ordem de Deus ele recebe força para cumprir a missão difícil de guia espiritual.

Uma vez, um sitiante ousou atacar um grande fazendeiro na justiça. Todo mundo compreendeu que ele tinha atrás de si alguém poderoso, talvez outro grande proprietário. O homem é uma criatura insignificante e não pode guiar os outros sem ter por trás de si a força de Deus.

BIJOY — Senhor, o ensinamento e as práticas do Brahmosamaj não bastam para salvar as pessoas?

SR — Não é possível para um homem libertar um outro das cadeias do universo (samsara). Só Aquele que lançou o encantamento (maya) pode também desfazê-lo. Nenhum outro guru além do próprio Deus (Satchidananda) pode nos salvar. Aquele que não tem a experiência de Deus, não recebeu dEle o mandato para ensinar, não recebeu Sua força, não é capaz de desatar as correntes dos outros.

Um dia, eu estava indo do panchavati para os tamarindos, no lugar onde as pessoas fazem suas necessidades. De repente, ouvi uma rã gritando. Pensei que uma cobra devia tê-la apanhado. Quando voltei, um bom tempo depois, ela continuava gritando. Então olhei para as moitas: era uma cobra d’água que a apanhara e não podia nem engoli-la nem lançá-la fora. Seu sofrimento não tinha fim. Pensei comigo: “Se uma serpente venenosa a tivesse apanhado, tudo teria terminado em três quacs, mas agora a rã e a cobra estão ambas sofrendo”. Com um guru verdadeiro, o ego do discípulo só dura o tempo de três quacs. Mas se o próprio instrutor não está maduro, mestre e discípulo sofrem ambos17. O ego do discípulo resiste, os laços não são cortados. Aquele que tem a infelicidade de cair nas mãos de um guru imaturo não alcança a liberdade.

 

6  BIJOY — Senhor, por que somos ligados dessa maneira? Por que não conseguimos ver Deus?

SR — O “eu” dos seres vivos é uma ilusão (maya). Esse sentimento do eu é como uma tela. Com o eu no chão, acaba-se a amolação! Se pela graça de Deus conseguirmos compreender que não “sou eu que ajo”, então todo receio desaparece e nos tornamos um liberto-vivo (jivanmukta). O eu é como uma nuvem, e até mesmo uma pequena nuvem pode ocultar o sol. Mas assim que a nuvem se desloca o sol reaparece. Se pela graça do guru a consciência do eu desaparece, então Deus se revela.

Rama, sua esposa Sita e seu irmão Lakshmana caminham numa trilha na floresta. Rama, isto é, o próprio Deus, vai à frente. Embora esteja a dois passos apenas, Lakshmana não pode vê-Lo, pois entre os dois se encontra Sita, que representa maya. Olhe, por exemplo: basta este lenço para que você não veja meu rosto, embora estejamos tão perto um do outro. Da mesma forma, Deus está muito próximo de cada um de nós, mas o véu de maya não nos permite vê-Lo. Cada ser é da mesma natureza que Satchidananda18, mas esta maya, ou seja, o eu, encobre-a com um disfarce19, e os seres esquecem sua verdadeira natureza.

Os homens se transformam segundo seus disfarces. Um fulano coloca um dhoti com orla preta e com isso passa a cantarolar canções populares20, joga cartas e usa bengala para sair. Beltrano é um tipo mirrado, mas como calçou botinas salta os degraus como um inglês ao subir a escada e assobia na rua. Outro comprou uma caneta e logo sai rabiscando qualquer pedaço de papel.

Mas o mais formidável dos disfarces é o dinheiro. O dinheiro muda um homem de tal modo que não conseguimos mais reconhecê-lo! Outrora, um brâmane vinha aqui de vez em quando e parecia muito modesto. Tempo depois, fomos a Konnogor com Hridoy e, descendo do barco, encontramos aquele brâmane sentado à beira do Ganges, talvez para tomar ar. Ao ver-nos, disse: “Ora, veja! O sacerdote! Como vai?” Só pelo som de sua voz eu disse ao Hridoy: “Você ouviu como ele fala? Esse homem tem dinheiro!” Hridoy caiu na gargalhada.

Um dia, uma rã encontrou uma rúpia e levou-a para sua toca. Um elefante veio a passar e pôs o pé em cima. A rã saiu e ameaçou o elefante com o dedo: “Você vai passando assim em cima da minha toca? Você acha que tudo lhe é permitido?” Esse é o orgulho que vem do dinheiro.

Quando o Conhecimento chega, o ego desaparece — mas o Conhecimento só vem com o êxtase (samadhi) e é tremendamente difícil.

Diz-se no Veda21 que o êxtase (samadhi) ocorre quando a mente alcança o sétimo plano, e só então o “eu” é destruído. Em geral, onde permanece a mente? Nos três primeiros planos: o sexo, o ânus e o umbigo. Nesses três níveis, a mente só se relaciona com o mundo: o sexo e o dinheiro. A pessoa percebe a luz divina quando a mente se estabelece no nível do coração. Então vê luz por todos os lados e exclama: “O que é isso? O que é isso?” Depois, a garganta: nesse plano, só se consegue falar ou ouvir falar de Deus. O nível seguinte situa-se entre as sobrancelhas: quando a mente chega ali, tem a visão de Satchidananda, gostaria de tocá-Lo e abraçá-Lo e acha que vai conseguir, mas não é possível. É como uma chama encerrada numa lanterna: pode-se vê-la mas não tocá-la. No sétimo nível, ocorre o êxtase. E quando a mente sobe até esse ponto o ego desaparece.

BIJOY — O que sente a pessoa quando consegue isso e obtém o Conhecimento do Absoluto?

SR — A língua não é capaz de dizer o que acontece quando a mente sobe ao sétimo estágio. Um barco que entra nas “águas negras22” do oceano não volta. Não se tem mais notícia do barco, não se poderá saber como é o oceano. Uma boneca de sal entrou no mar para sondá-lo, mas derreteu-se nele. Quem será capaz de nos falar sobre sua profundidade? Aquele que a conhece desapareceu ele próprio. No sétimo nível as construções mentais se desfazem e ocorre o êxtase (samadhi). A língua não é capaz de dizer o que a pessoa sente.

O eu que se apega ao mundo, ao sexo e ao dinheiro é um eu nocivo: ele é a causa da distinção entre a alma individual (jiva) e a alma universal (Atman). Cortar a água com um graveto dá a impressão de que a água está dividida em duas, mas na realidade a água é una e parece dividida por causa do graveto. Quando você o tira tudo fica uno outra vez.

E o “eu criminoso”? Aquele que diz: “Todo mundo me conhece, tenho tanto dinheiro, sou o mais rico”. Se ele apanha um ladrão em flagrante, primeiro arranca-lhe as dez rúpias roubadas, depois o espanca. Como se ainda não bastasse, chama a polícia e faz com que seja preso. O “eu criminoso” diz: “Que insolência! Me roubar dez rúpias! Vou lhe ensinar com quem está tratando!”

BIJOY — Já que o apego ao mundo subsiste enquanto existe o eu, enquanto não se atingiu o Conhecimento, então é preciso escolher o caminho do Conhecimento (Brahmajñana), que leva ao samadhi. Ele parece melhor do que o caminho do amor, que deixa persistir o ego.

SR — É verdade, alguns podem chegar ao Conhecimento e livrar-se assim do “eu”, mas é muito raro. Você pode discriminar mil vezes, o “eu” sempre vai dar um jeitinho para reaparecer. Como um pipal23: você o corta hoje e amanhã de manhã um novo broto vai estar saindo da terra. Então, já que esse malandro não quer mesmo se retirar, vamos deixá-lo ficar como serviçal: “Ó meu Deus, Tu és o Senhor e eu Teu escravo”; “Sou Teu servidor, sou Teu adorador”. Esse tipo de ego é inofensivo. Todos os doces dão acidez no estômago, exceto o açúcar-cande, que é inofensivo.

O caminho do Conhecimento é terrivelmente difícil. Enquanto a consciência do corpo subsiste, o Conhecimento não vem. E em nossa Era de Ferro (kaliyuga) as pessoas passam a vida alimentando o corpo: não conseguem livrar-se da consciência corpórea, da consciência do “eu” separado. Por isso a devoção (bhakti) é o caminho para esta Era. É um caminho fácil. Uma saudade sincera, cantar o Nome do Senhor, orar, tudo isso permite alcançá-Lo, sem dúvida alguma.

O “eu do servidor”, o “eu do adorador”, o “eu do filho” são como uma linha que se traça com um caniço na superfície da água. Ela a divide ao meio, mas só por um instante.

 

7  BIJOY — O senhor disse que devemos renunciar ao “eu criminoso”. Não há nada de errado com o “eu servidor”?

SR — Não, o orgulho do “eu servidor”, isto é, aquele que sentimos ao dizer “eu sou o servidor de Deus, eu sou seu adorador”, não faz mal algum. Ao contrário, ele nos faz encontrar Deus.

BIJOY — Muito bem, mas o “eu servidor” não está sujeito às paixões, luxúria, cólera, etc.?

SR — Quando se atinge realmente esse estado, então a luxúria e a cólera só persistem na aparência. Após a experiência de Deus, só resta o “eu do servidor, do adorador” e nos tornamos incapazes de fazer mal a outrem. Como uma espada tocada pela pedra filosofal: ela conserva sua forma de espada, mas, como foi transformada em ouro, não fere mais ninguém.

Quando as folhas do coqueiro secam, caem, deixando uma cicatriz no tronco. Isso mostra que existiu uma folha ali. Do mesmo modo, após a experiência de Deus só resta a cicatriz do orgulho e das outras paixões. A pessoa se torna como uma criança. A criança não fica de forma permanente em nenhum dos três modos: sattva, rajas, tamas. Ela não é realmente apegada às coisas. Aceitará trocar sua roupa que vale cinco rúpias por uma boneca de alguns centavos, mesmo que um momento antes ela tenha dito a você: “Não, não vou dar minha roupa! Foi um presente do meu papai!” Também não vê diferença entre as pessoas: baixa ou alta, casta elevada ou não, para ela tudo é igual. Se sua mãe lhe disser que o carpinteiro é seu irmão, sentará com ele para comer no mesmo prato. Não tem noção do puro e do impuro e mesmo ao fazer suas necessidades não sabe ainda limpar-se apropriadamente!

Em alguns o “eu do servidor, do adorador” persiste até mesmo após o samadhi. “Eu sou o servidor, Tu és o Mestre”, “Tu és o Senhor e eu Teu adorador”, essa atitude caracteriza os devotos. Ela não desaparece, mesmo depois que Deus foi alcançado. Praticar essa atitude leva à experiência de Deus: isso se chama yoga da devoção (bhakti yoga).

O caminho do amor também conduz ao Absoluto (Brahman): o Senhor é Todo-Poderoso e se Ele quiser dará também esse conhecimento. Mas em geral os devotos de Deus não o desejam. “Eu sou o servidor e Tu o Mestre”, “Tu és a Mãe e eu sou Teu filho”: é a atitude que preferem.

BIJOY — E o caminho da discriminação dos vedantistas leva ao mesmo ponto?

SR — Sim, o caminho da discriminação também leva a Deus. É a yoga do conhecimento (jñana yoga), mas é um caminho muito duro. Eu lhe falei do sétimo plano e é lá que eles tentam chegar — se conseguem, acontece o samadhi. “O Absoluto é a única realidade, o universo é uma ilusão”; se a pessoa realmente se convence dessa idéia, as formações mentais se dissolvem e o samadhi vem. Mas em nossa Era de Ferro (kaliyuga), em que a vida se consome na busca de alimento para o corpo, como crer realmente que “só o Uno é real, o universo é irreal”? Para acreditar nisso é preciso livrar-se da consciência corpórea. “Eu não sou o corpo, eu não sou as construções mentais, não sou os elementos do cosmos, estou além do conforto e da dor, não sou afetado pela doença, o desgosto, a velhice e a morte”. Pensar isso seriamente em nosso tempo é difícil! É preciso perseguir vigorosamente a consciência do indivíduo e seu corpo por toda parte onde se ocultar, e ela é como o pipal. Você acha que o cortou na raiz, mas ao voltar no dia seguinte encontra um broto verde. A consciência do corpo voltou! Por isso a yoga da devoção é o necessário em nossa Era. É fácil e eficaz.

E depois, “Gosto de comer açúcar, mas não quero me tornar açúcar”. Não tenho vontade de dizer “Eu sou o Uno”; o que me agrada é dizer “Tu és meu Deus e eu sou Teu servidor”. É agradável navegar entre a quinta e a sexta estação, mas subir da sexta para a sétima por muito tempo, isso eu não quero. Gosto de cantar Sua glória: é a minha alegria. A atitude do servidor é excelente. Veja: dizemos que as ondas fazem parte do Ganges, não que o Ganges faz parte das ondas. Dizer “Eu sou Ele”, essa atitude não é boa. Não temos o direito de adotá-la enquanto conservamos a menor consciência do nosso corpo e da nossa pessoa24. Não é bom: além de não progredirmos, pouco a pouco nos degradamos. É mentir aos outros, mentir-se a si mesmo, enganar-se sobre sua própria condição.

Mas a devoção não traz imediatamente a visão de Deus. Para tanto é necessária a devoção perfeita (premabhakti) ou, por outras palavras, o amor apaixonado (ragabhakti). A devoção comum não proporciona esta visão. Para obtê-la é preciso o amor perfeito. Existe ainda a devoção externa: realizar o que está prescrito, repetir tantas vezes o Nome do Senhor, jejuar tal dia, ir em peregrinação, celebrar o culto doméstico, fazer oferendas, sacrifícios e esmolas. Tudo isso, se o praticarmos suficientemente por muito tempo, leva ao amor perfeito; mas enquanto este não for atingido, Deus permanecerá oculto. Precisamos amá-Lo acima de tudo, desviando-nos das preocupações do mundo, dedicando-Lhe nossa alma cem por cento. Então Ele se mostra.

Em algumas pessoas o amor apaixonado vem sem esforço. Elas são perfeitas por natureza, desde a infância, como o menino Prahlada que chorava de amor pelo Senhor. É realmente a devoção “caída do céu”! Pode-se comparar a prática a um leque. Agitamos o leque para obter frescor e a fim de obter o amor praticamos a religião, os sacrifícios, os jejuns. Mas quando sopra o vento fresco do sul podemos deixar o leque de lado; e quando sopra o vento da graça25, pode-se abandonar a prática. Na embriaguez do amor, quem pensaria em realizar rituais?

Dizemos que a devoção está ”verde” enquanto ela não se tornou um amor intenso por Deus. Quando esse amor se desenvolve ela está “madura”. As pregações, as instruções, não têm efeito sobre uma pessoa cuja devoção ainda está “verde”. Pense na placa do fotógrafo. A imagem se inscreve nela porque foi colocado um produto preto sobre o vidro. Se não for feito isso, você poderá tirar quantas fotos quiser, a imagem não se fixará26. Quando o sujeito se afasta, o vidro fica como estava antes. Sem o amor de Deus, os ensinamentos não deixam nenhuma marca.

BIJOY — Senhor, para encontrar Deus, para vê-Lo, basta o amor?

SR — Sim, pode-se alcançá-Lo pelo caminho do amor, mas é preciso que o amor esteja “maduro”, que seja um amor intenso, apaixonado. Como a mãe ama o filho, como o filho ama a mãe, como a esposa ama o esposo. Naquele que atinge um tal amor por Deus, o apego por sua própria esposa, seus filhos e parentes se modifica. Deixa de ser um amor que cega (maya) para tornar-se um amor de caridade (daya). Ele se sente como um estrangeiro no mundo, ou como um empregado que vem do campo todos os dias para trabalhar em Calcutá: não se sente em casa e só vai ali para trabalhar. Quando o amor a Deus se desenvolve, o apego ao mundo e a mentalidade mundana se vão.

Enquanto resta uma migalha dos modos de ver o mundo, não se pode ver Deus. Se os fósforos estiverem úmidos, você poderá riscar mil sem obter uma única fagulha. Não é mais que um amontoado de madeira inútil. A umidade é a imagem do apego pelo mundo.

Um dia, Sri Radha dizia: “Ó minhas amigas, vejo Krishna por toda parte”. Suas companheiras lhe responderam: “Não estamos vendo nada! Você está delirando”. Radha lhes respondeu: “Ponham em seus olhos o colírio do amor por Deus e então poderão vê-Lo”.

(A Bijoy) — No Brahmosamaj vocês têm um hino que diz

 

Senhor, só o amor Te conhece,

Para que oferendas e sacrifícios?

 

Esse amor supremo, essa devoção madura, leva a Deus com forma e também a Deus sem forma.

 

8  BIJOY- E como se alcança a visão de Deus?

SR — Não se pode alcançá-la sem pureza de coração. A sensualidade e a cobiça sujam a alma, como se ela caísse na lama. Um ímã não consegue atrair uma agulha coberta de lama, porém o fará quando ela estiver limpa. As lágrimas dos olhos tiram a lama da mente. “Ó meu Deus, nunca mais farei isso”: se alguém chora de arrependimento, a lama de sua alma é lavada e então o ímã (Deus) pode atrair a agulha (a mente). Depois vêm o êxtase e a visão de Deus.

Mas ainda que tentemos de mil maneiras, não conseguiremos nada sem a graça. Não se tem a visão de Deus sem Sua graça. E obtê-la não é tão fácil: é preciso renunciar ao nosso “eu” independente. A visão de Deus é incompatível com a idéia de que “sou eu quem age”. Numa casa onde há um intendente, se nos dirigirmos ao patrão — “Por favor, senhor, precisamos disso ou daquilo” —, o patrão responderá: “Não cabe a mim providenciá-lo. Há um intendente responsável”. Se alguém quiser ser responsável por si mesmo, o Senhor não se preocupará em instalar-se em seu coração.

A visão de Deus vem por Sua graça. Ele é o Sol do Conhecimento. Um único raio vindo dEle deu ao mundo inteiro a luz pela qual nós nos vemos uns aos outros e compreendemos tantas coisas diversas. Basta que uma só vez Ele ilumine Seu próprio rosto para que O vejamos. Como o guarda-noturno e sua lanterna. A luz que ela projeta nos rostos das pessoas lhe permite vê-las, mas se alguém deseja vê-lo precisa pedir-lhe: “Por favor, queira iluminar seu próprio rosto”. Da mesma forma, é necessário rogar a Deus: “Senhor, por Tua graça, volta para Teu próprio rosto a luz do Conhecimento, a fim de que eu Te veja”. Quando uma casa não tem luz é sinal de pobreza. Por isso, é preciso “acender a luz do Conhecimento na câmara do coração para contemplar o rosto da Mãe”.

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Bijoy havia trazido seu remédio e chegara a hora de tomá-lo. Era preciso água e o Mestre se preocupou em mandar que lhe trouxessem. Ele era cheio de compaixão para com todos. Bijoy era pobre e não vinha ver o Mestre por não poder pagar um carro ou o barco. O Mestre lhe enviava um mensageiro para convidá-lo a vir e ao mesmo tempo mandava dizer a alguém para trazê-lo. Dessa vez era Boloram. A noite chegara; Bijoy, Nobokumar e os outros companheiros de Bijoy subiram ao barco alugado por Boloram, que os levou de volta para Baghbazar; M estava com eles. Quando chegaram a Calcutá, a lua ia-se erguendo no céu. Fazia um pouco frio. Eles tentavam conservar em seus corações os ensinamentos de Sri Ramakrishna e sua imagem radiante. Depois Bijoy, Boloram, M e os outros separaram-se para voltar a suas casas.

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DIÁLOGO 7*

COM AMRITA E TRAILOKYA: 29 DE MARÇO DE 1883

 

Este diálogo é muito mais curto que os anteriores e não traz quase nenhuma descrição de cenário. Fica evidente que as anotações de M deviam ser sumárias. Por que ele publicou este fragmento ao invés de tantos outros? Talvez a fim de frisar a atitude de Ramakrishna em relação a Keshav, ou então pela cena do início, que mostra o afeto de Ramakrishna para com seus discípulos, tão diferente da atitude superior de muitos mestres.

 

1  Estamos no dia 29 de março de 1883, quinta-feira. Após o almoço, o Mestre descansa um pouco em seu quarto. São mais ou menos duas horas e o fluxo começa a se fazer sentir no Ganges. Os devotos chegam uns após os outros e entre eles dois brahmos: o Sr. Omrito1 e o Sr. Troilokko2, o qual encantava todos os ouvintes nos ofícios do Brahmosamaj de Keshob, cantando louvores ao Senhor.

Rakhal3 sentia-se mal e Sri Ramakrishna mostrava preocupação diante dos visitantes:

SR — Rakhal está doente! Será que soda lhe faria bem? O que vamos fazer? Rakhal, meu filho, pegue um pouco de prasad de Jagannath4!

Enquanto falava, SR foi arrebatado por um estado extraordinário. Talvez estivesse vendo o próprio Narayana5 manifestar-se em Rakhal. O amor apaixonado do Mestre por Deus havia investido a imagem do adolescente Rakhal de alma pura, pronto a renunciar “ao sexo e ao dinheiro”. Ele olhava Rakhal com ternura e seus lábios murmuravam “Govinda, Govinda6”. Vendo-o, M pensou que ele adotara a atitude de Yashoda, a mãe de Krishna. Os devotos, imóveis, atentos para aquela transformação extraordinária, olhavam-no fixamente. Enquanto repetia o Nome de Govinda, Sri Ramakrishna entrara em profundo êxtase, rígido como uma estátua, absorto em alguma tarefa no além, com o olhar fixo7, sem respiração perceptível. Só o corpo parecia presente neste mundo; o pássaro da alma voara rumo às alturas. Momentos antes, o Mestre estava inquieto como uma mãe com seu filho, mas agora onde estaria ele? Que nome haveria para aquela forma tão estranha de êxtase?

Um bengali desconhecido, vestido de guerua8, entrara e se sentara.

 

2  Pouco a pouco o Mestre saía do êxtase. Ainda absorto, falava sozinho. Disse:

SR — Vejam! Uma guerua! Para que vestir-se assim? Alguém dizia: “Trocamos o Chandi9 por um tambor”. Antes cantávamos, agora tocamos tambor; é a mesma coisa! (risos).

Há vários tipos de renúncia. Alguém pode vestir a guerua porque o mundo lhe queimou os dedos. Uma renúncia assim não dura muito. Alguém perdeu o emprego, pega a guerua e vai para Benares. Três meses depois, chega uma carta: “Pronto, encontrei trabalho. Voltarei para visitá-los daqui a algum tempo. Não se preocupem comigo”. Outros parecem ter tudo para serem felizes, mas não sentem prazer em estar neste mundo e choram por Deus em segredo. A renúncia destes é autêntica.

Mentir nunca traz nada de bom. A pessoa não deve fantasiar-se com um hábito monástico. Se a mente não estiver de acordo com o hábito, a catástrofe é certa. A pessoa afunda-se na mentira e receia ser descoberta. É melhor usar roupas comuns. A mente é cheia de apegos; de vez em quando deixa-se levar para o mal e tudo isso fica dissimulado sob a guerua: é muito perigoso.

Quando se busca a verdade, não deve haver nenhum fingimento, nem mesmo no teatro. Uma vez fui à casa de Keshob Shen para assistir a uma peça, O Novo Brindabon10. Trouxeram uma cruz em cena, aspergiram a assistência com água, que chamavam de “água da paz11”. Alguém desempenhava o papel do bêbado12 e fazia excentricidades!

Um Brahmo — Era o Sr. K!

SR — Esses disfarces fazem mal a um bhakta. A mente não deve ocupar-se com essas coisas. A mente é como um tecido: toma a tintura na qual é mergulhada. Se for mergulhada na mentira, ficará com a cor da mentira. Uma outra vez, fui à casa de Keshob para assistir a uma peça sobre a renúncia de Nimai13. Mas um grupo de discípulos estragou a sessão, reunindo-se em torno de Keshob para elogiá-lo: “O senhor é o Chaitanya de nossa época”. Keshob voltou-se para mim rindo: “Se eu sou Chaitanya, então quem é ele?” Respondi: “O servo de seus servos, a poeira da poeira de seus pés”. Keshob era sensível aos cumprimentos14.

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SR (dirigindo-se a Omrito e Troilokko) — Embora tenham a aparência de simples colegiais, Noren, Rakhal e alguns outros são sempre-livres. Vida após vida são adoradores de Deus. A maioria das pessoas obtém um pouco de amor depois de muitos esforços, mas estes o têm de nascença. Como uma imagem de Shiva15 surgida das profundezas da terra, sem intervenção dos homens. Os sempre-livres formam uma classe à parte, do mesmo modo como existem pássaros de bico curvado. Assim como Prahlada, nunca sentiram apego pelo mundo.

Os homens comuns praticam exercícios espirituais para adquirir o amor a Deus e ao mesmo tempo são atraídos pelo sexo e o dinheiro, como uma mosca que ora pousa nas flores e comidas, ora nos excrementos. Os sempre-livres são como a abelha, que para fazer seu mel só procura as flores. Eles são atraídos pelo perfume de Deus, não pelo do mundo.

Sua devoção não pode ser obtida pela prática do que está prescrito: repetir tantas vezes os Nomes de Deus, meditar tanto tempo, celebrar o culto de tal maneira, tudo o que as Escrituras indicam. Fazer isso é como caminhar no campo andando pelos diques ao redor dos arrozais inundados; ou como descer de barco um rio sinuoso. Mas quando amamos a Deus apaixonadamente, como o mais próximo de nossos parentes, então não há mais lei. É como caminhar em linha reta através dos campos após a colheita do arroz, ou ir de barco numa inundação, flutuando acima da planície; é inútil então seguir os meandros do rio. Essa devoção apaixonada leva direto a Deus.

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OMRITO — O que o senhor sente durante o êxtase?

SR — Dizem que ao meditar intensamente no zangão uma barata pode transformar-se em zangão (brahmara)16. Você quer saber qual é minha impressão? A de um peixe aprisionado num pote e que é libertado no Ganges!

OMRITO — Subsiste um pouco do eu após o êxtase?

SR — Sim, em geral mantenho um pouco do sentimento do eu. Como a parcela de ouro que fica entre os dedos quando se desgasta o ouro numa pedra de amolar, ou como as faíscas que pulam de uma fogueira. A consciência externa desaparece completamente, mas em geral Deus me deixa um pouco de consciência do eu — só para o prazer! Para haver sabor é preciso que exista “tu” e “eu”. De vez em quando, o eu fica inteiramente apagado: isso se chama “êxtase imóvel”, “êxtase sem resíduo” (jada samadhi, nirvikalpa samadhi). Mas ninguém pode descrever esse estado. A boneca de sal quis sondar o oceano, entrou nele e desapareceu. Não sobrou ninguém para nos dizer a profundidade do oceano!

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DIÁLOGO 8*

EM DAKSHINESWAR COM VÁRIOS VISITANTES: 22 DE JULHO DE 1883

 

1  Estamos no dia 22 de julho de 1883, domingo. Os devotos chegam uns após os outros para visitar o pamahamsa. A maioria tem um trabalho que não lhes permite outro momento livre. Rakhal, Odhor1 e M juntos tomaram um carro em Calcutá e chegaram ao templo de Kali entre uma e duas horas, durante a curta sesta do Mestre. Moni Mollik e alguns devotos já estão sentados no quarto.

Atravessam o vasto conjunto criado por Rani Rashmoni: os templos de Radha-Krishna e de Kali a leste, a oeste a fileira dos pequenos templos de Shiva, e na extremidade o quarto do Mestre com a varanda em semicírculo, de onde, estando de pé, ele pode contemplar o Ganges. Entre o quarto e o cais encontra-se o jardim onde se colhem flores para o culto; estende-se para longe em direção ao sul até o muro, ao norte até o pequeno bosque do panchavati onde o Mestre, outrora, havia praticado sua disciplina espiritual (sadhana)2, e dali para o leste até as portas. As árvores cobertas de flores vermelhas e brancas quase chegam a tocar o quarto. Entrando pela varanda, podemos ver ao fundo as imagens santas do Mestre, entre as quais o Cristo estendendo a mão a Pedro para salvá-lo das águas e uma estátua de Buddha. O Mestre está ensinando, sentado sobre a pequena cama, de frente para o norte; os devotos estão sentados sobre um colchão ou no chão mesmo, e não tiram os olhos da imagem radiante do Mestre. Pela varanda, avistam-se as águas santas do Ganges; aumentadas pela monção, elas se arrojam para o oceano, mal tendo tempo de saudar de passagem o Senhor que reside aqui.

O Sr. Moni Mollik é um brahmo já um pouco idoso, sessenta e cinco anos talvez. Visitou Benares há algum tempo e está contando sua peregrinação.

MM — E vi mais um sadhu. Ele diz que o essencial é o controle dos sentidos e da mente, que não adianta nada repetir o dia inteiro “Senhor, Senhor”.

SR — Sei como é. Primeiro seguir uma disciplina: cultivar a equanimidade, o controle dos sentidos, a capacidade de suportar o cansaço e o sofrimento. O objetivo, nesse caso, é o nirvana. Esses praticantes são vedantistas. Passam o tempo todo discriminando: “O Uno é real, o resto é ilusão”. É um caminho muito difícil. Se o mundo é uma ilusão, você também é uma ilusão, o próprio mestre é uma ilusão, suas palavras um sonho. Isso não está ao alcance de todo mundo.

Como fazê-lo entender isso? Pense na cânfora, que não deixa nenhum resquício ao queimar. Se queimarmos madeira, restam cinzas. Ao fim da discriminação obtém-se o êxtase (samadhi). Então não sobra mais nenhuma marca de “eu”, “tu”, “mundo”.

Padmalochan3 era um grande vedantista. Naquela época eu repetia sem parar “Mãe, Mãe”, e no entanto ele me estimava muito. Era o pandit oficial do rajá de Burdwan. Veio para Calcutá e foi morar numa mansão perto de Kamarhati. Naquele tempo eu queria conhecer pandits. Para saber se ele era vaidoso, mandei Hridê até lá. Este me disse que sua sabedoria não lhe tinha subido à cabeça e então fui ao seu encontro. Embora fosse um grande pandit e grande vedantista, chorou ao me ouvir cantar as canções de Ramprasad! Nunca senti tanto prazer em falar com alguém. Ele me dizia: “Renuncie ao seu desejo de encontrar devotos4, senão vai atrair multidões e isso o fará tropeçar”. Utsavananda, o guru de Vaishnavcharan5, discutia teologia com ele por correspondência. Foi por meio deles que fiquei sabendo de uma história6 sobre Padmalochan. Uma vez, na corte, houve um debate teológico sobre o tema “Qual é o maior: Shiva ou Brahma?” Ouviram a opinião de Padmalochan. Ele respondeu com toda simplicidade: “Há quatorze gerações, nenhum de meus ancestrais nunca viu nem Brahma nem Shiva”.

Ao saber que eu havia renunciado completamente ao sexo e ao dinheiro, disse-me: “Por que tanta renúncia? Distinguir uma moeda de um torrão7 já é ignorância”. Responder o quê? Eu lhe disse: “Meu caro, não sei de nada disso. Só sei que o dinheiro e o resto não me interessam”.

Havia uma vez um pandit muito arrogante. Rejeitava todas as formas divinas. Mas quem é capaz de compreender os caminhos de Deus? Foi-lhe dado ver a Mãe sob a forma da Energia Primordial (Shakti). Por um longo momento ele ficou sem consciência externa e quando voltou a si nem sequer conseguia pronunciar “Kali”, apenas repetia “Ka... Ka... Ka...”

UM OUVINTE — O senhor conhece Biddashagor8. O que acha dele?

SR — Biddashagor possui sabedoria e caridade (daya), mas não a visão interior. O ouro que traz em si está oculto. Se ele conseguisse descobrir esse ouro, sua atividade diminuiria e finalmente cessaria. No fundo de seu coração encontra-se o Senhor. Se ele tomasse consciência disso, sua mente se voltaria para a contemplação. Alguns praticam por muito tempo a ação desinteressada antes de chegar à renúncia. Então sua mente submerge em Deus.

Todas as atividades de Biddashagor são excelentes. A compaixão é algo muito belo. A compaixão (daya) e a cegueira (maya) são bem diferentes. A compaixão é boa, a cegueira não. A cegueira nos faz amar nossos parentes: esposa, filhos, irmãos, irmãs, sobrinhos e sobrinhas, pai e mãe. São os únicos que amamos. A compaixão nos faz amar a todos os seres de modo imparcial.

 

2  M — A caridade pode ser considerada como um entrave também?

SR — Essa idéia não está ao alcance de todo mundo! A compaixão provém do modo sattva9. O modo sattva conserva, o modo rajas cria, o modo tamas destrói. Mas o Absoluto está além dos três modos. Além da natureza.

Os três modos não conseguem alcançá-Lo. Da mesma forma como um ladrão não pode mostrar-se em público, com medo de ser preso. Os três modos são ladrões. Ouçam uma história:

Um homem estava caminhando por uma trilha na floresta, quando foi atacado por três bandidos. Primeiro lhe tomaram tudo o que ele tinha. Depois um dos bandidos disse: “Vamos nos livrar desse homem”, e ergueu o sabre para matá-lo. O segundo disse: “Por quê? Basta amarrar-lhe os pés e as mãos e deixá-lo aqui”. Então os bandidos amarraram-lhe os pés e as mãos e foram embora. Um bom tempo depois, um deles voltou e disse: “E aí? Você está bem? Vim libertá-lo”. Cortou as cordas que o atavam e disse-lhe: “Venha, vou levá-lo de volta à estrada”. Caminharam juntos por muito tempo, depois o ladrão disse: “Aqui está a estrada. Continue em linha reta e chegará à sua casa”. Então o homem lhe disse: “O senhor me salvou a vida, venha até minha casa”. Mas o ladrão disse: “Não, não posso entrar na cidade, a polícia me prenderia”.

Essa floresta é o mundo. Ali encontramos três bandidos: sattva, rajas e tamas. Eles despojam os seres do conhecimento da Realidade. Tamas tenta matá-los e rajas procura ligá-los ao mundo. Mas sattva vem libertá-los, dando-lhes refúgio contra a luxúria, a cólera e as outras paixões nascidas de tamas, livrando-os também dos laços do mundo. Mas mesmo assim não é mais que um ladrão e não é capaz de lhes dar o conhecimento da Realidade; só pode indicar o caminho, dizendo-lhes: “Por ali você chegará à sua casa”. Mas sattva não tem o direito de ir lá.

A linguagem não consegue dizer o que é Brahman, o Absoluto. Aquele que O conhece não consegue descrevê-Lo. Dizem que um barco quando entra nas “águas negras10” jamais retorna.

Quatro amigos estavam passeando. Chegaram a um lugar cercado por um muro, um muro muito alto. Ficaram curiosos por saber o que havia atrás. Ajudaram um deles a subir. Ao chegar em cima, esse começou a rir “Ah! Ah! Ah!” e deixou-se cair para o outro lado. Não explicou nada. Se aquele que vê só nos diz “Ah! Ah!” e depois salta, então o que poderemos saber?

Jadabharata, Dattatreya tiveram a visão de Brahman, mas não puderam descrevê-Lo. Quando O atingimos no êxtase não há mais “eu”. Por isso Ramprasad disse:

 

“Se não11 o conseguires, ó minha mente, não leves Ramprasad”

 

A mente não só deve ser dissolvida, mas também “Ramprasad”, isto é, o próprio eu, deve desaparecer. E então haverá conhecimento do Absoluto.

UM OUVINTE — Mas, senhor, Shukadeva12 não havia atingido o Conhecimento?

SR — Alguns dizem que Shukadeva apenas viu e roçou com a mão o oceano de Brahman, sem mergulhar. Foi por isso que conseguiu voltar e dar tantos ensinamentos. Outros dizem que entrou no oceano mas voltou para o bem da humanidade. Deus não lhe tirou completamente o “eu”, a fim de que ele pudesse recitar o Bhagavata perante o rei Parikshit, e propagar o ensinamento espiritual. Deus lhe deixou o “eu iluminado”.

UM OUVINTE — E aquele que obteve o Conhecimento pode dirigir uma congregação religiosa?

SR — Discuti o conhecimento do Absoluto com Keshob Shen. Ele me disse: “Por favor, fale-nos um pouco mais a esse respeito!” Eu lhe respondi: “Se eu o fizer, você não poderá mais dirigir a sua igreja”. Ele retrucou: “Então não falemos mais disso, senhor” (risos). Eu disse a Keshob: “eu”, “meu”, tudo isso é ignorância. A ignorância faz dizer: “Sou eu que estou agindo, veja minha esposa, meus filhos, meus bens, minha fama”. Keshob me disse: “Mas senhor, se tirarmos o eu não sobra absolutamente mais nada!” E eu lhe respondi: “Escute, Keshob, eu não disse para você renunciar a todo o “eu”, somente ao “eu verde”, aquele que faz dizer: eu estou agindo, minha esposa e meus filhos, eu sou um mestre espiritual, etc. É o “eu verde”; se você renunciar a ele, restará o “eu maduro”, aquele que faz dizer: “Sou Teu servo, sou Teu adorador, és Tu quem age e não eu”.

UM OUVINTE — Alguém cujo eu está “maduro” pode dirigir uma congregação?

SR — Eu disse a Keshob: é o “eu verde” que proclama: “Sou um chefe, estou fundando uma congregação, estou ensinando”. É muito difícil pregar. Para isso é necessário uma ordem explícita de Deus, como no caso de Shukadeva, que  recebeu a ordem de anunciar o Bhagavata. Se alguém recebeu a ordem de Deus em pessoa, então pode aconselhar ou ensinar sem perigo. Seu eu não está mais “verde”, mas “maduro”. Eu disse ao Keshob: “Renuncie ao “eu verde”. No “eu do servidor, do adorador”, não existe mais nada ruim. Você busca reunir uma igreja, mas as pessoas que você reuniu não param de provocar separações. Keshob respondeu: “Sim, senhor, ficam conosco três anos, depois se vão para outro grupo e fazem enorme escândalo ao nos deixar!” Eu lhe disse: “Por que você não presta atenção nas características delas13? Você aceita qualquer um como discípulo!”

E eu disse mais ao Keshob: você deveria adorar a Energia Primordial (Shakti)14. O Absoluto e Sua Energia são um só; é o mesmo Deus que é o Absoluto e também Sua Energia. Enquanto conservamos a consciência do corpo, a dualidade perdura. Para falar, é necessário que haja dualidade. E, de fato, Keshob aceitou Kali.

Um dia Keshob veio aqui com seus discípulos. Eu lhe disse: “Gostaria de ouvir um de seus sermões”. Então nos sentamos todos sob o pórtico frente ao Ganges e Keshob falou. Depois disso descemos para o cais e discutimos muito. Eu disse: “Aquele mesmo que sob um aspecto é o Senhor (Bhagavan), sob um outro aspecto é o adorador (bhakta), e sob um terceiro a Escritura (Bhagavata15). Então repitam Bhagavata-bhakta-Bhagavan”. Keshob repetiu, e todos os discípulos fizeram o mesmo em seguida. Depois eu disse: “Agora repitam Guru-Krishna-Vaishnava16”. Então Keshob disse: “Basta por hoje, senhor! Senão as pessoas vão nos tomar por carolas!”

É muito difícil ultrapassar os três modos17. Para isso é necessário ter a experiência de Deus. Os seres vivos estão em regime de escravidão no reino de maya, esta maya que lhes oculta Deus. Ela mantém os homens na ignorância. Um dia Hridoy trouxe um bezerro, que depois eu vi pastando, preso no jardim. Perguntei: “Hridê, por que você o amarra assim todos os dias?” Hridoy disse: “Tio, espero mandá-lo para minha casa no campo; quando ele crescer estará bom para o arado”. Quando ouvi isso, perdi os sentidos. Veio-me à mente: “Que jogo de maya! Aqui estão Kamarpukur e Sihor18, e lá está Calcutá. Esse bezerro deverá fazer todo o enorme trajeto de uma cidade à outra e depois, durante anos, vai puxar o arado. O mundo é isso! Maya é isso!” Só muito tempo depois foi que voltei a mim.

 

3  Geralmente o Mestre ficava em êxtase. Acontecia-lhe a qualquer momento e em qualquer lugar. E ele passava o restante do tempo em companhia dos devotos, falando de Deus ou cantando o kirtan. Por volta das três ou quatro horas, M o encontrou sentado na pequena cama, absorto. Um pouco mais tarde, ouviu-o falar com a Mãe. Pôde ouvir isso: “Mãe, por que só deste uma migalha para ele19?” Ficou em silêncio por alguns instantes, depois disse: “Compreendi, Mãe, isso lhe bastará para fazer Tua obra, para ensinar”. M perguntou-se se o Mestre buscava comunicar seu poder espiritual a determinados discípulos, para transformá-los em instrutores.

Só M e Rakhal estavam no quarto. Ainda absorto, o Mestre disse a este: “Como você estava bravo! Mas foi de propósito que eu o fiz ficar bravo, como um cirurgião que deixa um abscesso crescer antes de abri-lo20!” Após outro silêncio, disse: “Hazra21 é um pedaço de madeira seca, então por que vive aqui? Existe uma razão para isso. Para que a peça seja divertida, é necessária a participação de Jatila e Kutila22”.

Depois, dirigiu-se a M: “É preciso aceitar as formas de Deus! Você compreende a imagem da Mãe Protetora do mundo23? Se Ela parasse de proteger o mundo, ele desabaria e seria aniquilado. Se alguém consegue dominar o elefante da mente, a Deusa desperta em seu coração”.

RAKHAL — “A mente é um elefante louco”.

SR — O leão da Deusa subjuga esse elefante.

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Ao entardecer, o ofício vespertino foi celebrado nos templos, mas o Mestre permaneceu em seu quarto e recitou os Nomes do Senhor. Estava sentado sobre o pequeno leito, com as mãos juntas. Haviam acendido o incenso e ele estava absorto na presença da Mãe. O Senhor Gobindo Mukherji de Belgharia entrou com alguns amigos. Prosternaram-se diante do Mestre e sentaram-se no chão com M e Rakhal. Fora, a lua subia no céu e o universo parecia sorrir silenciosamente. No quarto todos se calavam, contemplando a imagem tranqüila do Mestre em êxtase. Um momento depois, ele começou a falar, num estado de semi-absorção.

SR — Digam-me quais são suas dificuldades. Eu as explicarei.

Gobindo e os outros refletiram.

GOBINDO — Muito bem, por que a Mãe (Shyama: a azul) é representada assim24?

SR — Por causa da distância. De perto Ela não tem cor. Como a água de um lago que vista de longe parece negra, mas na palma da mão não tem cor. Quem se aproxima de Deus percebe que Ele não tem nome nem forma. Ao afastar-se novamente, revê-O como “minha Mãe de tez azul escuro”, da cor da flores na relva. Será Ela masculina (Purusha) ou feminina (Prakriti, a Natureza)? Um devoto estava celebrando o culto; um outro aproximou-se e viu que a imagem da Mãe estava com o cordão sagrado25. Disse então: “O que você fez? Vai deixar esse cordão sagrado no pescoço da Mãe?” O outro respondeu: “Talvez você A conheça melhor do que eu, irmão! Ainda não consegui saber se Ela é Purusha ou Prakriti”. Aquele que é Shyama é também Brahman. Aquele que tem forma é sem forma também. Aquele que tem atributos é também sem atributos. Brahman-Shakti, Shakti-Brahman: não há distinção.

GOBINDO — Por que Ela é chamada Yogamaya26?

SR — Essa palavra significa a união de Purusha e Prakriti. Tudo o que você vê ao seu redor resulta dessa união. Na imagem de Shiva-Kali27, Kali está de pé sobre o corpo de Shiva. Shiva está estendido como um cadáver; Kali O está olhando. Tudo isso simboliza a união de Purusha e Prakriti. Purusha, o princípio masculino, é inativo, por isso Shiva está inerte como um cadáver. Em união com esse Purusha, Prakriti, o princípio feminino, realiza todas as ações. Ela opera a criação, a conservação e a destruição.

A imagem de Radha-Krishna tem o mesmo significado. Krishna inclina-se para Radha a fim de expressar essa unidade. O nariz de Sri Krishna traz uma pérola e o de Radha uma pedra azul. A tez dourada de Radha é brilhante como a pérola e a tez de Krishna é azul escuro como a pedra. Por outro lado, Krishna usa uma roupa amarela e Radha uma roupa azul.

Qual é o adorador perfeito? Aquele que, depois de ter conhecido Brahman, vê que Este se tornou os seres vivos, o mundo, os vinte e quatro princípios cósmicos28. Primeiro o discernimento (“isso não, isso não”) permite-lhe atingir o teto. Depois ele vê que o resto da construção é feito dos mesmos materiais que o teto: tijolos, cal, argamassa. A escada também é feita de tudo isso. Desse modo, Brahman tomou a forma de todas as coisas: o mundo e os seres individuais.

Mas a discriminação por si só? Que interesse pode ter? Argh! — o Mestre cuspiu — para que passar minha vida discriminando secamente? É melhor que haja “Tu e eu”, para que exista a pura devoção a seus pés de lótus.

(Dirigindo-se a Gobindo) — Às vezes eu Lhe digo “Tu és eu e eu sou Tu”, mas outras vezes digo “só Tu, Tu és Tu” e não consigo nem sequer encontrar “eu” algum.

A descida de Deus (avatar) é também uma manifestação de Sua Energia (Shakti). Alguns dizem que Rama e Krishna são apenas duas vagas do oceano do Ser e da Bem-Aventurança (Satchidananda).

Após o conhecimento da não-dualidade (advaita) vem a consciência (chaitanya). Então percebemos que em todos os seres Ele é a consciência. Depois dessa consciência vem a bem-aventurança (ananda). Advaita, Chaitanya, Nityananda30!

(Dirigindo-se a M) — Repito-lhe: não rejeite as formas divinas! Acredite que Ele pode tomar forma! Depois você poderá meditar sobre a forma que preferir31.

(A Gobindo) — Guarde bem isso: enquanto o homem sente desejo de saborear o mundo, não pode sentir verdadeira nostalgia da visão e do conhecimento de Deus. Quando uma criança está brincando, esquece todo o mais. Mesmo se lhe oferecermos uma guloseima, ela comerá apenas um pedacinho, distraidamente. Mas quando se cansa de brincar, de comer doces, declara: “Agora volto para minha mamãe”. Então, seja quem for que lhe proponha levá-la de volta para casa, que a beije e reconforte, ela o seguirá, mesmo sem nunca tê-lo visto. Quando um homem perde o desejo de saborear o mundo, seu desejo de Deus desperta. Só lhe fica um único pensamento: como fazer para encontrá-Lo? E então ele ouve qualquer pessoa que lhe fale de Deus.

M pensou: “É verdade, o desejo de Deus só desperta quando o desejo do mundo se vai”.

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DIÁLOGO 9*

EM DAKSHINESWAR COM OS DISCÍPULOS: 19 DE AGOSTO DE 1883

 

1  Estamos num domingo, por volta de meio-dia. Foi tocado oboé (shanai) durante a oferenda de alimento nos templos, depois os recintos dos deuses foram fechados para o repouso da tarde. O Mestre recebeu sua parte de prasad, fez uma rápida sesta, depois sentou-se no pequeno leito. Nesse momento M chegou; prosternou-se diante dele ao entrar e juntos falaram de Vedanta.

SR — Ouça, o Ashtavakra Samhita trata do conhecimento do Eu. Aqueles que buscam o conhecimento do Eu dizem “Eu sou Aquilo”, isto é, “Eu sou a Alma Suprema”. É a atitude dos renunciantes vedantistas, mas ela não convém aos que vivem no mundo. Será que alguém consegue ocupar-se de todos os seus afazeres afirmando ao mesmo tempo “Eu sou o Absoluto inativo”? Os vedantistas dizem que a Alma Suprema (Atman) é imaculada. O prazer e a dor, as ações justas e injustas, fazem sofrer aqueles que se identificam com o corpo, mas não afetam a Alma Suprema. A fumaça suja as paredes, mas não é capaz de sujar o espaço.

Krishnokishor dizia: “Eu sou o Espaço1”. Era um grande devoto e tinha o direito de dizer essa frase, mas ela não convém a qualquer boca.

Porém, dizer “Eu sou livre” é uma boa atitude. Ao pensar que é livre, a pessoa se liberta pouco a pouco. Ao pensar “Eu estou ligada”, também vai aos poucos tornando-se ligada. Um indivíduo que repete sem parar “Eu sou um pecador, um pecador”, é certo que vai acabar caindo! Precisamos dizer: “Pronunciei Seu Nome, onde foram parar meu pecado e minhas ligaduras?”

Escute, estou com a mente atormentada hoje. Hridê2 me escreveu. Está muito doente. Será compaixão (daya) ou cegueira (maya) de minha parte?

Como responder? M ficou em silêncio.

SR — Você sabe o que é a cegueira: preferir a tudo o pai, a mãe, irmãos e irmãs, esposa e filhos, sobrinhos e sobrinhas. E a compaixão é amar a todos os seres. Então, será compaixão ou ilusão em mim? Hridê fez tanto por mim, todos os serviços possíveis, chegou até a me limpar com suas próprias mãos3. Mas no final tudo se tornou um suplício. Ele me atormentava tanto que uma vez desci ao cais para me jogar no Ganges e deixar esse corpo. É verdade que ele fez muito por mim. Se eu pudesse enviar-lhe um pouco de dinheiro, minha mente se acalmaria. Mas ao qual dos nossos babus devo recorrer? E o que as pessoas iriam dizer?

 

2  Entre duas e três horas chegaram dois grandes devotos: os Srs. Odhor Shen4 e Boloram Boshu. Prosternaram-se diante do Mestre e sentaram-se. Perguntaram-lhe como ia indo. O Mestre respondeu: “Estou bem, o corpo vai bem, mas a mente está um pouco perturbada”. Não disse nada sobre a doença de Hridoy.

O assunto da conversa foi a estátua da Mãe sentada sobre um leão (simhavahini), na casa de Mollik em Borobazar.

SR — Fui ver a Deusa, na casa de Mollik de Chashadhopa. A família está em decadência, eles são pobres. Havia excrementos de pombos aqui e ali, musgo e montinhos de areia e estuque caídos das paredes. Em relação aos outros parentes dos Mollik que conheço, esses não tiveram sorte. (Dirigindo-se a M) — Muito bem, diga-me como você explica isso. Está vendo? O que acontece com as pessoas é fruto de suas ações passadas; é preciso acreditar nisso e no karma residual, etc. No entanto, naquela casa arruinada, vi o rosto resplandecente de luz da Deusa. Também é preciso acreditar numa manifestação como essa.

Uma vez fui a Vishnupur. O rajá local possui vários belos templos. Lá existe uma imagem da Deusa chamada Mrinmoyi. Perto desse templo há grandes reservatórios de água. Muito bem, diante de um deles senti o perfume que as mulheres usam no cabelo. Você pode me explicar isso? Ninguém me havia dito que as moças que vão ver a Deusa Lhe oferecem esse perfume. E perto do reservatório, antes mesmo de penetrar no templo, entrei em êxtase e tive a visão de Mrinmoyi, saindo da água.

O quarto havia-se enchido. Falou-se das notícias de Kabul: o levante e a guerra. Alguém anunciou que Yakub Khan fora destronado. Depois, dirigindo-se ao Mestre, disse: “E no entanto, senhor, Yakub Khan era um grande devoto!”

SR — Como você está vendo, tudo o que encarna fica submetido ao prazer e à dor. No Chandi de Kobi Konkon se diz que Kalubir foi lançado à prisão, com uma pedra enorme sobre o peito. No entanto, ele era o bem-amado da Mãe. Enquanto tivermos corpo, sentiremos prazer e dor. Shrimonto era um grande adorador e a Deusa amava muito sua mãe Khullona, mas como ele teve que sofrer! Levaram-no ao cadafalso para decapitá-lo. Certo lenhador era um devoto ardoroso, teve a visão da Mãe e alcançou dEla inúmeras graças, mas teve que continuar sua vida dura de lenhador. Em sua prisão, Devaki teve a grande visão do Senhor5, com seus quatro braços segurando a concha, o disco, a clava e o lótus, mas isso não lhe abriu as portas da prisão.

M — Mas não era o caso de Devaki deixar a prisão e sim seu corpo, a causa de toda aquela miséria!

SR — Está vendo? Tudo aquilo era o efeito do karma residual6. Enquanto não dá o seu fruto, o corpo é mantido. Um homem caolho foi banhar-se no Ganges: todos os seus pecados foram apagados, mas ele não recuperou seu olho7 (risos). Era o fruto do karma de seus nascimentos anteriores.

M — Quando a flecha deixa o arco, não se pode mais detê-la.

SR — Um devoto conserva o conhecimento e o amor mesmo quando seu corpo sente prazer e dor. Aquele resplendor nunca tem fim. Veja como os Pandavas8 sofreram! Mesmo assim, nunca perderam a presença de Deus. E quem pode comparar-se a eles em termos de conhecimento e devoção?

 

3  Naquele momento, Norendro e Bisshonath Upadhey entraram. Bisshonath era intendente do Marajá do Nepal e o Mestre chamava-o de Capitão9. Norendro tinha vinte e dois anos e estava preparando o B.A.10. De vez em quando vinha ver o Mestre, em geral aos domingos. Prosternaram-se e sentaram-se. O Mestre pediu a Norendro para cantar. Uma tampura estava pendurada na parede oeste. Todos olhavam para Norendro. À esquerda havia também uma tabla e ele começou a afiná-la. Então ia cantar!

SR (dirigindo-se a Norendro) — Parece que não está soando bem!

CAPITÃO — É que ele está muito cheio, então fica calado (risos) — cheio até a tampa11!

SR — Mas, e Narada12 e os outros?

CAPITÃO — Foi por compaixão que eles falaram.

SR — Muito bem! Narada, Shukadeva e os outros desceram de volta após o samadhi, por compaixão, para o bem dos demais. Foi por isso que falaram.

Norendro começou a cantar “Quando chegar o dia”:

 

Um dia, no oceano de beleza mergulharei

E contemplarei Tua forma infinita, meu Senhor.

Estupefato, trêmulo, refugiar-me-ei a Teus pés,

Aos pés do Rei dos reis, paz e bondade sem mistura.

ConTigo trocarei minha alma pelo belo fruto da vida,

O paraíso nesta terra mesmo. Quem mais me ofereceria isto?

Do meio do mal, olho para Ti, Senhor.

Assim como corremos ao avistar uma luz na noite,

Tua visão me arrancará das trevas do pecado.

Assim como se ergue no firmamento a lua crescente,

Fazendo as chakoras* dançar de alegria, do mesmo modo minha alma

Espera ver subir no firmamento do coração

Tua forma bendita de alegria e imortalidade.

Eterna estrela polar, esperança ardente da fé,

Amigo dos humildes, satisfaz a esperança de minha alma!

Assim, dia e noite mergulharei em Teu Amor,

Esquecendo-me a mim mesmo, ficarei a Teus pés.

 

Ao ouvir as palavras “Tua forma bendita de alegria e imortalidade”, o Mestre foi levado a um profundo êxtase. Estava sentado de frente para o leste, com as mãos juntas, o corpo ereto, mergulhado no oceano de beleza da Mãe. Nenhuma consciência do mundo exterior. Sem respiração aparente, nenhum movimento, nem sequer um batimento das pálpebras. Parecia uma imagem pintada, como se houvesse deixado este mundo, partindo para outro lugar.

 

4  O êxtase dissipou-se lentamente. Enquanto isso, Norendro fora para a varanda a leste do quarto, onde o Sr. Hazra13 estava sentado sobre um tapete com seu rosário na mão. Puseram-se a conversar. O quarto do Mestre estava cheio de gente. Ao sair do êxtase, o Mestre percorreu com o olhar o grupo dos devotos. Não via Norendro, a tampura jazia abandonada e os olhares de todos os devotos fixavam-no inquietos.

SR — Ele veio, acendeu a fogueira e foi embora! (Dirigindo-se ao Capitão e aos outros) — Vocês também, tomem consciência de Deus e encontrarão alegria. A alegria de Deus está realmente bem próxima, mas oculta por um véu. Quanto mais diminui o apego ao mundo, mais aumenta a inclinação para Deus.

CAP.- Quando voltamos para casa em Calcutá, afastamo-nos de Benares, e quando vamos para Benares afastamo-nos de Calcutá14.

SR — Quando Radha ia-se aproximando de Krishna, sentia cada vez mais Seu perfume. Quando se caminha para Deus, sente-se um amor cada vez mais forte. Quanto mais se desce o rio em direção ao oceano, mais se percebe o fluxo e o refluxo da maré. Na alma do jñani a água corre numa única direção. Na sua opinião, o mundo inteiro é um sonho. Ele permanece sempre em sua Natureza Essencial. Mas na alma do bhakta há várias correntes, o fluxo e o refluxo. Ele ri e chora, canta e dança. O bhakta gosta de brincar com Deus. Ora nadando, ora mergulhando, ora subindo à tona, como os pedaços de gelo que dançam na água, “tapur-tupur, tapur-tupur” (risos).

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Os vedantistas desejam conhecer o Uno e o devotos conhecer o Senhor — o Senhor Todo-Poderoso, com Suas múltiplas glórias. Mas na realidade não há diferença entre Eles, entre o Uno e Sua Energia, entre Brahman e Shakti. Como uma jóia e seu brilho. O brilho da jóia imediatamente faz pensar na jóia, a jóia faz pensar no brilho, impossível pensar em um sem o outro. Um só Deus (Satchidananda) manifesta-Se mais ou menos, sob diversos disfarces, donde Suas formas múltiplas. Mas, “Ó Mãe, Tu mesma és tudo isso!” Quando O consideramos agindo — criando, conservando, destruindo — nós O chamamos Shakti. Mas se a água calma é água, as ondas e a espuma são água também. O mesmo Absoluto, Ser, Conhecimento e Bem-Aventurança (Satchidananda) é também a Energia primordial, Aquela que cria, preserva e destrói. Como o Capitão tranqüilamente em sua casa, o Capitão celebrando o culto doméstico, ou o Capitão em visita ao vice-rei. Ele só muda de roupa!

CAPITÃO — É verdade mesmo, Senhor.

SR — Eu disse a mesma coisa a Keshob Shen.

CAPITÃO — Keshob Shen perdeu sua casta e mudou nossas tradições de acordo com seus caprichos. Não é um sadhu e sim um babu.

SR (aos ouvintes) — O Capitão está me proibindo de ir à casa de Keshob Shen!

CAPITÃO — Mas é claro que não, Senhor! Vá à casa dele! O que estou dizendo não tem nenhuma importância!

SR (irritado) — Você tem o direito de ir à casa do vice-rei15 por amor ao dinheiro, mas eu não tenho o direito de ir à casa de Keshob Shen, que pensa em Deus sem parar e repete o Seu Nome! Você mesmo não diz que o mundo é a maya de Deus? Deus está presente em cada ser e no mundo inteiro.

 

5  De repente, o Mestre levantou-se e saiu para a varanda a leste. M seguiu-o, mas o Capitão e os outros permaneceram sentados, esperando seu retorno. Na varanda, Norendro e Hazra estavam conversando. Hazra era um vedantista ressequido: afirmava que o mundo é um sonho, o culto uma superstição e que só se deve buscar o Ser, tendo como meta descobrir que “eu sou Aquilo”.

SR (sorrindo) — E aí? Do que vocês dois estavam falando?

NOREN (sorrindo) — Ai, ai, ai! Montões de coisas! E profundas!

SR (sorrindo) — Mas o Conhecimento e o Amor são idênticos, não é? Onde a consciência pura leva, o amor puro leva também. E o caminho é mais fácil.

NOREN — “Mãe, enlouquece-me com Teu Amor, de que me serve o conhecimento?”  (Voltando-se para M) — Olhe, encontrei em Hamilton que “A learned ignorance is the end of philosophy and the beginning of religion”.

SR (a M) — O que foi que ele disse?

NOREN — Quando uma pessoa estudou a filosofia a fundo, manda às favas a ilusão do saber e só se interessa pela religião. A religião pode começar.

SR — Thank you! Thank you! (todos riem).

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6  Um momento depois, com a chegada da noite, a maioria dos presentes despediu-se e foi embora. Norendro também partiu.

O dia terminava. Por todos os lados viam-se empregados do templo preparando as luzes para o culto vespertino. Os dois sacerdotes de Kali e Vishnu foram banhar-se no Ganges para purificar-se externa e internamente. Depois chegou o momento do serviço religioso e do repouso das divindades. O frescor da noite se fez sentir. As pessoas da aldeia vieram passear no jardim, com a bengala na mão, em grupos de amigos, respirando o ar puro e o perfume das flores. Desceram para o cais, sobre o rio transbordando das chuvas, rápido como uma torrente e agitado pelas ondas. Alguns, mais meditativos talvez, passeavam na solidão do panchavati. O Mestre, na varanda oeste, também contemplou o Ganges por um momento.

As lamparinas foram acesas. A criada veio queimar incenso no quarto do Mestre. O serviço vespertino começou nos doze templos de Shiva de um lado e nos templos de Vishnu e Kali do outro. Os sons suaves ou graves das conchas, sinos e sinetas fizeram-se ouvir, mesclados ao murmúrio incessante do Ganges ao longo de suas margens. Era o segundo dia do plenilúnio e a lua subiu no céu, inundando com sua luz o grande pátio, as copas das árvores do jardim e, mais ao longe, a corrente do vasto rio.

Após o serviço, Sri Ramakrishna saudou a Mãe do universo e começou a ladainha dos Nomes de Deus, batendo palmas. À sua frente, as imagens do Senhor: Dhruva e Prahlada, a imagem de Rama coroado, Kali a Mãe, Radha com Krishna. Ele se voltou para cada uma delas, nomeou-a e saudou-a. Depois recitou Brahman-Atman-Bhagavan, Bhagavata-bhakta-Bhagavan, Brahman-Shakti, Shakti-Brahman, Veda-Purana-Tantra, Guita-Gayatri. Depois “Sê meu refúgio, sê meu refúgio. Não eu, mas Tu; não eu, mas Tu. Eu sou o carro e Tu o condutor”, etc. Enfim, juntou as mãos e ficou imóvel, meditando na Mãe.

Um pequeno número de devotos voltou para sentar-se no quarto, depois de ter assistido ao culto ou passeado. Agora o Mestre estava sentado no pequeno leito. M, Odhor, Kishori e alguns outros estavam sentados no chão à sua frente.

SR — Norendro, Bhobonath e Rakhal são da classe dos sempre-livres, sempre próximos do Senhor. Não precisam de ensinamento. Vejam como Norendro é independente. Outro dia, subiu comigo no carro do Capitão. O Capitão lhe disse para sentar-se num lugar melhor, mas Norendro mal lhe respondeu. Mesmo a mim ele trata sem muita consideração. Quando sabe alguma coisa, esconde-o de mim, para que eu não saia dizendo a todo mundo como ele é inteligente. Ele não está ofuscado por maya, não é apegado. Tem uma natureza excelente e muitas qualidades: sabe cantar, tocar instrumentos, é muito instruído. Com tudo isso, é dono de si mesmo e diz que nunca se casará. Norendro e Bhobonath se entendem muito bem. Norendro é muito viril e Bhobonath tem uma natureza mais feminina. Norendro não vem com muita freqüência. É melhor assim, pois sua presença me perturba profundamente.

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DIÁLOGO 10*

FESTA NA CASA DE MANI MALLIK: 26 DE NOVEMBRO DE 1883

 

1  A festa anual do Brahmosamaj1 de Shindurepoti foi organizada desta vez na casa do Sr. Monilal Mollik2, situada na Chitpore Road, ao norte do cruzamento da Harrison Road, no bairro dos vendedores de frutas. Para a reunião, o Sr. Mollik escolheu uma grande sala com varanda, alegremente decorada por dentro e por fora com folhagens, flores e guirlandas. Numerosos brahmos já se encontram em seus lugares, aguardando o início da cerimônia. Mas nem todos estão na sala de oração: alguns caminham de um lado para outro no terraço, outros permanecem sentados em bancos lá fora. O anfitrião ou seus parentes aparecem de vez em quando para receber convidados ou acertar algum detalhe. Numerosos brahmos chegam um pouco antes do ofício vespertino, estimulados por uma atração suplementar no dia de hoje: foi-lhes prometida a visita do pamahamsa, que admiram por muitas razões. Seus chefes Keshob, Bijoy e Shibnath têm Sri Ramakrishna em grande estima. Ouviram dizer que ele está embriagado por Deus, queimando de amor e fé, que conversa com Deus como uma criança e chora por Ele lágrimas de amor e saudade; que em todas as mulheres ele adora a presença da Mãe e repele qualquer conversa sobre assuntos mundanos, mas fala só de Deus sem parar3. Sabem também que ele aceita todas as atitudes religiosas, sem nunca criticar nem condenar, e deseja ardentemente encontrar todos os tipos de devotos. Tudo isso fez vir os brahmos hoje, alguns dos quais de muito longe.

Antes do ofício, o pamahamsa conversa alegremente com Bijoy e outros brahmos. A cerimônia não vai demorar; na sala de orações as lamparinas já estão acesas. O Mestre pergunta: “Então, Shibnath não vai vir?” Um brahmo responde: “Não, ele está com muito trabalho, não vai poder vir hoje4”.

SR — Eu ficaria feliz em vê-lo! Ele parece estar sempre mergulhado na felicidade de bhakti. Além disso, quando um homem se torna famoso como ele é porque traz em si uma parcela da força de Deus. Mas Shibnath tem um grande defeito: ele falta com a palavra. Havia prometido me visitar lá (no templo de Kali), mas não veio e não falou mais no assunto. Isso não se faz. Dizer a verdade é a desciplina espiritual que mais convém à nossa Era de Ferro (kaliyuga). Aquele que se limita estritamente à verdade acaba vendo Deus e aquele que se afasta dela caminha lentamente para sua perda. Suponhamos que eu tenha dito que vou fazer minhas necessidades; muito bem, mesmo que não precise mais ir, eu pego meu pote com água e vou até os tamarindos. Preciso ater-me estritamente à verdade, senão não tenho descanso.

Depois que tive a visão da Mãe5, peguei flores e as ofereci para Ela dizendo6: “Mãe, eis aqui o conhecimento e a ignorância, toma-os de volta e dá-me o Amor puro! Mãe, eis aqui a virtude e o vício, toma-os de volta e dá-me o Amor puro! Mãe, eis aqui a pureza e a impureza, toma-os de volta e dá-me o Amor puro! Mãe, eis aqui o bem e o mal, toma-os de volta e dá-me o amor puro!” Pude dizer tudo isso, mas não “Mãe, eis aqui a verdade e a mentira”; isso eu não pude. Entreguei tudo à Mãe, exceto a verdade.

O serviço começou segundo os costumes do Brahmosamaj: o oficiante subiu ao altar, sob o candelabro, e abriu a cerimônia invocando Brahman Supremo. Os grandes mantras védicos foram repetidos pela assistência, as santas invocações saídas da boca dos antigos sábios da Índia: “Brahman é verdade e conhecimento; é bem-aventurança e imortalidade; é bênção, paz e unidade; é pureza e perfeição”. Esses mantras mesclados ao som da sílaba sagrada OM encontravam eco no coração dos brahmos, extinguiam neles os desejos mundanos, acalmavam sua mente e a preparavam para a meditação. Todos fecharam os olhos e oraram interiormente ao Brahman com atributos7.

O pamahamsa estava mergulhado no êxtase, sem movimento, com o olhar fixo, mudo e rígido como uma estátua. O pássaro da alma estava ausente, fora para algum reino de bem-aventurança ignorado por nós e só o corpo permanecia ali como uma casa vazia.

O êxtase cessou bruscamente. O Mestre abriu os olhos, olhou para todos os lados, viu que as pessoas ainda estavam com os olhos fechados e pôs-se de pé dizendo Brahman! Brahman! Trouxeram tambores e címbalos e o kirtan começou. Embriagado de Amor, o Mestre juntou-se à dança dos brahmos. Sua maneira de dançar, muito doce, cativava os olhares, e Bijoy e os outros brahmos giravam em círculos ao seu redor. Contemplando aquela dança maravilhosa, muitos comungaram com a alegria do kirtan e esqueceram por um momento o mundo, suas preocupações e alegrias, amargas em comparação com o vinho do Amor.

Ao final do kirtan, todos se sentaram em círculo ao redor do Mestre, ávidos por ouvir o que ele ia lhes dizer.

 

2  Dirigindo-se aos brahmos reunidos, o Mestre disse:

- É muito difícil viver no mundo sem se sujar. Protap8 me dizia: “Senhor, o rei Janaka é nosso modelo9; já que ele viveu no mundo sem se sujar, nós também podemos fazê-lo”. Eu lhe respondi: “Você pensa que é fácil viver como o rei Janaka? Quantas austeridades ele teve que praticar para obter o conhecimento! Anos de austeridades terríveis, com a cabeça para baixo e os pés para cima10, antes de voltar ao mundo”.

Então não há nenhuma saída para os que vivem no mundo? Claro que sim! De vez em quando é preciso retirar-se em solidão para praticar disciplinas espirituais. É na solidão que se pode obter o Amor e o Conhecimento. Depois não há mais perigo em voltar para o mundo. Mas é preciso ir praticar em completo isolamento: longe da esposa, filho ou filha, pais, amigos — ninguém! E durante esse tempo de retiro, pensar consigo mesmo: “Não tenho ninguém além de Deus, Ele é tudo para mim” e suplicar-Lhe e chorar para que Ele conceda o Amor e o Conhecimento.

Se vocês me perguntarem quanto tempo é necessário passar assim longe do mundo, eu lhes direi que um dia já está bom, três dias melhor ainda, doze dias, um mês, um ano, de acordo com as possibilidades de cada um. Uma vez obtidos o Amor e o Conhecimento, não há nada a temer do mundo.

Esfregando óleo nas mãos, podemos abrir o fruto da jaqueira11 sem colar os dedos. Ao brincar de policial e ladrão, aquele que toca a “avó12” não pode ser preso. Aquilo que foi transmutado em ouro pelo toque da pedra filosofal continua sendo ouro para sempre: mesmo que fique enterrado por mil anos num buraco, continuará sendo ouro.

A mente é como o leite. Se despejarmos nela a água do mundo, eles se misturam. Mas podemos tirar o creme e fazer manteiga. Retirar-se em solidão é como bater o creme para tirar a manteiga do Amor e do Conhecimento. Depois a manteiga não se mistura mais com a água: flutua por sobre ela sem se molhar.

 

3  O Sr. Bijoy Gosshami acabava de voltar de Gaya13. Lá ele ficara por muito tempo em solidão ou na companhia dos sadhus e até havia adotado o hábito ocre dos monges errantes. Sua mente estava muito elevada, constantemente voltada para o interior14. Estava sentado perto do Mestre, cabisbaixo, como que mergulhado em seus pensamentos.

O Mestre olhou para ele um momento, depois lhe perguntou: “Então, Bijoy, você encontrou um quarto?” Depois explicou: “Um dia, dois monges errantes encontraram-se numa cidade. O primeiro estava passeando com as mãos vazias e a boca aberta, olhando o mercado, as lojas e as casas. O segundo lhe disse: ‘Você está olhando maravilhado para tudo isso. Onde colocou seus pertences?’ O outro lhe respondeu: ‘Quando cheguei, aluguei um quarto, tranquei minhas coisas com chave e saí despreocupado para passear’. Por isso é que estou perguntando se você também encontrou um quarto”. E voltando-se para M e os outros: “Estão vendo? A fonte que Bijoy tinha em si estava oculta, mas agora está fluindo”.

(Dirigindo-se a Bijoy) — Veja todos os aborrecimentos de Shibnath! Ele tem tanto trabalho! Todos aqueles artigos para os jornais! Os afazeres do mundo lhe tiram a paz, sua cabeça está cheia de preocupações.

O Bhagavata conta a história do Avadhuta15, o renunciante que teve vinte e quatro gurus. Um deles era um milhafre16. Uma vez, alguns pescadores haviam apanhado peixes; um milhafre desceu como uma flecha e roubou um peixe. De todos os lados vieram corvos grasnando, “cra..., cra...”. Para onde voava o milhafre os corvos o perseguiam: para o sul, eles iam atrás, para o norte, eles acompanhavam, para o leste ou oeste, eles o seguiam. De tanto girar e girar o peixe caiu e imediatamente os corvos deixaram o milhafre para brigar entre si. O milhafre pousou tranqüilamente num galho e pensou: “Quanto barulho por um peixe! Agora que ele caiu posso ficar em paz”.

O Avadhuta aprendeu isso do milhafre: aquele que guarda um peixe, isto é, aquele que possui alguma coisa, é obrigado a lutar e perde a paz, ao passo que renunciando a desejar e possuir encontra a tranqüilidade.

É verdade que a ação sem apego é boa e não perturba a paz. Mas ela é muito difícil de se alcançar. Eu imagino que estou agindo de modo desinteressado e, de repente, sem aviso prévio, lá está o desejo. Raras pessoas o conseguem, após longas disciplinas espirituais. Depois de ver Deus fica fácil. Em geral, a ação cessa depois da visão de Deus. Raramente a ação continua, para ensinar, como no caso de Narada.

O Avadhuta também teve uma abelha como guru. A abelha trabalha arduamente por muito tempo para acumular mel, mas não é ela que o aproveita. Vem um homem que quebra os favos e leva o mel. O Avadhuta aprendeu com a abelha que é inútil acumular: um homem religioso deve apoiar-se cem por cento em Deus. Não lhe é permitido poupar.

Isso não se aplica às pessoas que estão no mundo, com uma família para alimentar. Elas precisam fazer provisões. Dizem que “O pássaro e o monge não acumulam17”, mas mesmo o pássaro acumula quando tem filhotes, trazendo-lhes comida no bico.

Está vendo, Bijoy? Se você encontrar um homem vestindo a guerua18 mas com uma bagagem bem arrumada e fechada com quinze nós, não confie nele! Fico olhando os grupos de sadhus embaixo do banyan: dois ou três descansam, um escolhe lentilhas, outro conserta sua roupa e eles dão as dicas das boas casas onde mendigar19: “Esse babu é um ricaço, dá tudo o que a gente quer, bolo, doces, um monte de coisas boas” (todos riem).

B — É verdade, senhor. Em Gaya chamam esses sadhus de sadhus-pote-de-cobre (todos riem).

SR — Quando chega o amor de Deus, a ação se desapega. Aqueles a quem Deus dá um trabalho para fazer, que o façam! Agora chegou para você o momento de renunciar a tudo e dizer: “Venha, minha alma, contemplemos ambos e que ninguém se interponha”. Dizendo isso, o Mestre pôs-se a cantar com sua voz incomparável, como uma chuva tranqüilizadora:

 

Em meu coração quero guardar

A imagem de Shyama, a Mãe.

Vem, ó minha alma, contemplemos ambos,

E que ninguém mais se interponha.

Vê, o prazer é uma miragem,

Partamos para um lugar solitário.

Que a língua nos acompanhe

Para chamar “Mãe, Mãe”.

(Sim, que ela chame sem cessar).

Pensamentos feios ou pensamentos baixos,

Que nenhum deles ouse mostrar-se.

Conhecimento, monta guarda,

Em vigilante sentinela.

 

SR (dirigindo-se a Bijoy) — Aquele que toma refúgio em Deus deve rejeitar a vergonha, o medo, etc. É preciso livrar-se de pensamentos do tipo “Se eu dançar ao som do Nome do Senhor, o que as pessoas vão dizer?” Expulse de seu coração o desprezo, a vergonha e o medo. E também o orgulho de casta, os desejos ocultos, o ódio. Tudo isso são correntes. Se a pessoa se livra delas, alcança a Libertação.

Tire essas correntes do ser humano (jiva) e você encontrará Deus (Shiva). Prema, o amor supremo20 pelo Senhor, é uma coisa rara e preciosa. Tudo começa com bhakti, um amor por Deus tão sólido quanto o da esposa pelo esposo. Um amor puro é muito difícil de se obter. A alma que o obtém imerge em Deus. Depois vem o amor extático. Ele torna a pessoa muda, sua respiração cessa e as funções do corpo interrompem-se21, como num atirador com fuzil que ao visar não pensa em mais nada e prende a respiração.

Tendo dito isso, o Mestre começou a cantar:

 

Oh, quando virá o dia

Em que só permanecerá o Nome (quando virá esse dia?)

Em que os desejos se apagarão (quando virá esse dia?)

Em que o corpo estremecerá de alegria (quando virá esse dia?)

 

4  Durante essa conversa, haviam entrado alguns convidados consideráveis: vários pandits, altos funcionários, entre os quais um certo Sri Rajninath Ray.

O Mestre dizia: “Quando vem o êxtase, a respiração pára. Quando Arjuna esticava seu arco, só via o alvo — o olho do peixe e nada mais, nem mesmo uma outra parte do peixe. Quando a mente está concentrada assim em uma única coisa, a respiração cessa e a kumbhaka se faz espontaneamente”.

É um dos sinais da visão de Deus: uma grande corrente que se precipita na direção da cabeça, logo antes do samadhi e da visão divina22.

Ele olhou para os recém-chegados e disse: “Aqueles que têm apenas erudição religiosa sem amor pelo Senhor fazem discursos sem substância. Um certo pandit Samadhyayi23 dizia “Deus é insípido, é o nosso amor que Lhe dá sabor”. Aquele que o Veda chama de “essência de todo sabor” não teria sabor? Compreendemos imediatamente que a pessoa que fala desse modo não sabe nada sobre a realidade de Deus. São discursos vazios. Alguém dizia: “O estábulo do meu tio está cheio de cavalos”. Adivinhava-se imediatamente que ele nunca tinha visto uma estrebaria nem um cavalo (risos).

Toda a glória do mundo — a riqueza, a celebridade, o respeito, tudo o que dá origem ao orgulho — é coisa para alguns poucos dias. Não levaremos nada disso conosco. Há um canto a respeito:

 

Pensa bem, ó minha alma, presa na rede de Maya, não esquece a Mãe!

O que crês que te pertence, terás de deixá-lo aqui.

Quando morreres, tua bem-amada se afastará de teu cadáver.

Tudo isso aqui é para durar dois ou três dias.

Terás de deixar essa pose de patrão.

Verás que o verdadeiro patrão é a morte.

 

Não devemos orgulhar-nos do dinheiro. Você se acha rico, mas há outros mais ricos que você e outros ainda mais ricos. Quando a noite cai, o pirilampo sai e diz: “Sou eu que ilumino o mundo”. Mas logo que as estrelas aparecem ele se esconde. Então as estrelas acham que elas iluminam o mundo, mas a lua aparece e as estrelas ficam humilhadas. A lua pensa que inunda o universo com sua luz, mas chega a aurora, sai o sol e ela nem é mais vista. Se os ricos pudessem dizer isso consigo mesmos, seriam libertados de seu orgulho.

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Para essa festa, Monilal mandara preparar uma refeição deliciosa. Esforçara-se muito para alegrar o Mestre e todos os devotos reunidos. Quando eles saíram a noite já estava escura, mas não tiveram dificuldade em voltar para casa.

 

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DIÁLOGO 11*

ÚLTIMA VISITA A KESHAV: 28 DE NOVEMBRO DE 1883

 

Este belo diálogo pertence ao segundo volume, mas faz parte da tradução inglesa de M. Os temas são mais ou menos os mesmos que nos outros diálogos com os brahmos, como o passeio de barco com Keshav. Mas o encanto do diálogo vem do caráter trágico da situação, do afeto profundo entre Ramakrishna e Keshav e também de inúmeros detalhes psicológicos que esclarecem as relações complexas entre Ramakrishna e Keshav, seus discípulos, sua família. É admirável a arte de M aqui.

 

1  Estamos na quarta-feira. Um discípulo1 caminha de um lado para o outro na alameda que beira a “Casa dos Lírios”, do lado leste, esperando impacientemente pela chegada de alguém. A Casa dos Lírios é a residência de Keshav e numerosos brahmos instalaram-se no bairro ao norte desta. A doença de Keshob2 piorou e as pessoas dizem que não há mais esperanças. Sri Ramakrishna gosta muito de Keshob; hoje  deve vir do templo de Kali em Dakshineswar para visitá-lo3, e é ele que o discípulo está esperando.

A Casa dos Lírios fica a oeste da Circular Road, onde o discípulo está caminhando. Ele se encontra ali desde as duas da tarde. Quantas pessoas viu passar! Perto da estrada fica o Victoria College, onde estudam muitas senhoras do Brahmosamaj de Keshob, bem como suas filhas4 e da rua pode-se ver o interior da escola. Mais ao norte há uma grande propriedade num parque, habitada por ingleses. Durante sua longa espera, o discípulo observou que uma desgraça se abatera sobre aquela casa. Um carro fúnebre parou ali, com um cocheiro e seu ajudante vestidos de negro. Entraram e só saíram ao fim de uma hora e meia ou duas horas. Esses preparativos anunciam que um habitante da casa deixou essa terra dos mortais. Para ir aonde? Pergunta-se o discípulo. Para onde se vai ao deixar esta vida?

A cada veículo que chegava do norte, o discípulo se perguntava: “Será ele?” Eram quase cinco horas quando o Mestre chegou finalmente, acompanhado por Latu5 e mais um ou dois discípulos. M e Rakhal tinham vindo sozinhos. As pessoas da casa os levaram ao primeiro andar e os fizeram sentar-se na varanda, ao sul do grande salão. O Mestre sentou-se num canapé.

 

2  Ficou sentado por muito tempo e começou a impacientar-se. Os discípulos de Keshob lhe responderam em tom de desculpa que Keshob estava descansando um pouco e que logo viria. Keshob achava-se gravemente enfermo e era preciso poupá-lo, mas o Mestre estava cada vez mais impaciente por vê-lo.

SR (aos discípulos de Keshob) — Escutem! Por que ele precisa vir aqui? Posso muito bem ir vê-lo lá dentro6.

Proshonno** (em tom de desculpa) — Por favor, ele vai chegar num instante!

SR — São vocês que criam todas essas complicações! Eu vou lá!

Para acalmá-lo, Proshonno começou a falar de Keshob.

P — Sua atitude mudou nesses últimos tempos. Ele fala com a Mãe, como o senhor, ele a ouve e então ri e chora.

Assim que ouviu que Keshob falava com a Mãe do universo, ria e chorava, o Mestre entrou num êxtase profundo. Como fazia frio, ele estava usando uma camisa comprida de flanela verde grossa e também um xale. Seu corpo estava ereto, o olhar fixo, completamente absorto. Ficou por muito tempo nesse estado, do qual nada parecia tirá-lo.

A noite caía. O Mestre voltou um pouco à consciência natural. Acenderam as lâmpadas a gás na sala ao lado, para onde o levaram, com muita dificuldade. Ali havia vários móveis: canapés, poltronas, cabides, luminárias. Sentaram o Mestre num canapé e imediatamente ele tornou a perder a consciência externa.

Quando abriu os olhos, olhou a sala e disse com o tom de um homem embriagado: “Tudo isso teve sua importância. Mas agora, para que serve?” Depois avistou Rakhal: “Ah, Rakhal, você está aí!” O que teria visto depois? Disse: “Tu também estás aí, Mãe! Como estás elegante com Teu sári de Benares! Agora não: senta-Te, senta-Te!” E novamente caiu em êxtase. A sala estava bem iluminada, havia brahmos de todos os lados e Latu, Rakhal, M e alguns outros estavam sentados perto do Mestre. Em êxtase, ele estava falando sozinho:

- O corpo e a alma7! O corpo vem e vai. A alma não morre. Como uma castanha de bétel. A castanha madura se destaca sozinha da casca, mas enquanto está verde é preciso muito esforço para separá-las uma da outra. Quando vemos Deus, quando chegamos até Ele, a consciência do corpo desaparece e percebemos que existe de um lado o corpo e do outro a alma.

Keshob entrou.

Keshob entrou na sala pela porta leste. Para todos aqueles que o tinham ouvido pregar nos templos do Brahmosamaj, ou na Prefeitura, foi um choque ver chegando aquela figura esquelética, que não conseguia ficar de pé e caminhava lentamente segurando-se às paredes. Veio penosamente até o Mestre, que nesse meio tempo sentara-se no chão8.

Keshob prosternou-se longamente diante do Mestre, depois sentou-se9. O Mestre continuava a falar sozinho ou a conversar com a Mãe.

 

3  Keshob disse com voz forte: “Estou aqui, estou aqui”. Tomou a mão esquerda do Mestre10 e começou a acariciá-la. O Mestre continuava num estado de embriaguez intensa. As palavras precipitavam-se em seus lábios e os devotos ouviam-no estupefatos.

SR — Os disfarces (upadhi) fazem pensar que existem todas essas pessoas: Keshob, Proshonno, Omrito, etc. Mas aquele que obtém o conhecimento perfeito só vê uma única Consciência. No conhecimento perfeito vê essa Consciência única manifestada no mundo, os seres vivos, os vinte e quatro princípios cósmicos. Mas não de maneira igual. Deus se torna cada ser, é verdade, mas aqui se manifesta com muita força11 e ali com pouca. Biddashagor perguntou-me uma vez: “Então Deus daria muito a alguns e pouco a outros?” Eu lhe respondi: “Se não fosse assim, como é que um homem sozinho poderia pôr a correr cinqüenta outros? E você mesmo, por que é que viríamos vê-lo?” Em todo receptáculo onde Ele manifesta seu jogo, faz descer um poder especial.

Um homem rico percorre sua propriedade, mas prefere permanecer num determinado aposento. O aposento de Deus é o coração de Seus fiéis. Nesse coração Ele gosta de vir jogar o Seu jogo. Ali faz descer Sua força. O que nos faz reconhecê-la? Aquele que realiza muito manifesta a força de Deus.

Não existe diferença entre o Absoluto e a Energia primordial. Não se pode pensar num sem o outro. Como a jóia e seu brilho. Não se pode pensar no brilho sem a jóia, nem na jóia sem seu brilho. Como a serpente e sua marcha em ziguezague. Não se pode imaginar a rastejadura sem a serpente, nem a serpente sem sua rastejadura.

Foi a Energia Primordial que se tornou o mundo, os seres, os vinte e quatro princípios. O universo sai dEla e depois volta a Ela12. Por que é que eu me preocupo com Rakhal, Norendro e os outros rapazes13? Um dia, Hazra me disse: “Você se preocupa demais com eles. Quando é que vai achar14 tempo para pensar em Deus?” (Keshob e os outros sorriem). Isso me perturbou muito. Eu disse à Mãe: “O que está acontecendo comigo? Hazra me pergunta por que penso tanto neles15”. Mais tarde, perguntei a Bholanath16, e ele me citou o Mahabharata: “Aqueles que atingiram o samadhi, onde encontrarão descanso neste mundo, a não ser na companhia dos devotos de coração puro?” Senti como se estivesse nascendo de novo! (todos riem).

Mas Hazra não estava totalmente errado. Há um momento em que o buscador deve dizer “isso não, isso não” e afastar tudo para ir à procura de Deus. Mas uma vez atingida a meta, a atitude muda e, após ter rejeitado tudo, abraçamos tudo outra vez17. Ao fazer a manteiga, rejeitamos o soro, depois percebemos que o soro e a manteiga são uma coisa só. Tomamos consciência realmente de que Deus se tornou tudo. Só que ora Ele Se manifesta mais e ora menos.

Quando o oceano do êxtase transborda, a planície fica coberta de água até o alto dos bambus. Ao invés de seguir os meandros dos rios, os barcos podem ir direto para o mar. Não precisam mais de desvios. Após a colheita do arroz, pode-se caminhar em linha reta pelos campos, sem dar a volta pelas muretas.

Depois de conhecer Deus, nós O reconhecemos em todas as coisas, porém sua manifestação mais alta é o homem. E entre os homens, os devotos de coração puro18. Aqueles que perderam completamente o desejo de sexo e dinheiro (silêncio geral). Ao voltar do êxtase (samadhi), em que companhia poderemos ficar? Na dos devotos de coração puro, que renunciaram ao sexo e ao dinheiro. Sem eles, não poderíamos mais viver depois de conhecer Deus.

Aquele que é o Absoluto é também a energia primordial. Nós O chamamos Brahman, ou ainda Purusha19 , quando pensamos nEle como inativo, e Shakti, Prakriti, quando pensamos nEle como criando, conservando e destruindo o universo. Aquele que é Purusha é Prakriti também: Macho e Fêmea, ambos fonte de bem-abenturança.

Se você conhecer um homem, conhecerá também a filha dele. Se alguém vem à casa de seu pai, conhecerá sua mãe (Keshob ri). Para saber o que é a obscuridade, é preciso conhecer a luz. Para saber o que é a noite, é preciso conhecer o dia (Keshob ri de novo). Para saber o que é o prazer, é preciso conhecer a dor. Você compreende?

K — Sim , compreendo.

SR — A Mãe. O que é a Mãe? A Mãe do universo. Ela cria, protege. Oferece refúgio aos seus filhos incessantemente. Dá-lhes tudo20: retidão, riqueza, prazer, libertação. O que Ela quer dar, Ela dá. Um verdadeiro filho não pode viver longe de sua mãe. Sua mãe sabe tudo. O filho come, bebe e brinca, não sabe mais nada. Não é?

K — Sim, é verdade.

 

4  Enquanto falava, Sri Ramakrishna voltara ao estado normal e conversava com Keshob. O quarto estava cheio de pessoas que os ouviam e olhavam avidamente. Uma coisa os surpreendeu: não falaram da saúde de Keshob um instante sequer, só de Deus.

SR (a Keshob) — Por que vocês, os brahmos, descrevem tanto a grandeza de Deus? “Ó Senhor, fizeste a lua, fizeste o sol, as estrelas...” Para que tudo isso? Muitas pessoas admiram o jardim, mas poucas procuram conhecer o proprietário (o babu). No entanto, qual é o mais importante: o jardim ou seu proprietário?

Quando vamos tomar vinho, para que contar os tonéis do vendedor? Uma garrafa é o suficiente para me embriagar. Nunca perguntei a Norendro como se chama seu pai ou quantas casas ele possui. Vou dizer uma coisa para você: como os homens amam suas riquezas, pensam que Deus deve amar as Suas. Acham que louvando Sua riqueza vão agradá-Lo. Shombu21 me dizia: “Conceda-me mais essa bênção: que na minha morte eu possa depositar todas as minhas riquezas aos pés de lótus do Senhor”. Eu lhe disse: “Para você são riquezas. Para Ele é como terra ou lenha. Você acha que vai dar presentes Deus?” Quando roubaram todas as jóias do templo de Vishnu, Mothur Babu foi queixar-se ao Senhor e eu estava junto. Ele Lhe disse: “Que vergonha para Ti, Senhor! Como és incapaz! Roubaram Tuas jóias de Tua própria pessoa e não fizeste nada22!” Eu lhe disse: “Que deu em você? O que você está chamando de jóias é como lama para Ele. Ele é o esposo de Lakshmi23 e você acha que Ele ficou preocupado porque roubaram algumas rúpias de você? Não se deve falar assim”.

Não se pode atrair Deus com riquezas, mas sim com amor. O que Lhe interessa não é o dinheiro, mas o amor, a devoção, o êxtase, o discernimento, a renúncia.

Cada um  imagina Deus conforme sua própria pessoa. Um devoto sob influência de tamas imagina que a Mãe come carne de bode e lhe oferece essa carne como sacrifício.O devoto cheio de rajas oferece uma enorme quantidade de pratos variados. Sob a influência de sattva, o devoto oferece um culto sem pompa externa. Os outros nem sequer notam a adoração do devoto sáttvico: se ele está sem flores, oferece algumas folhas de bilva* ou um pouco de água do Ganges; ou então, prepara para o Senhor um ou dois doces ou arroz doce. Há também os devotos que passaram para além dos três modos: sua natureza é como a de uma criança e seu culto consiste em repetir o Nome do Senhor e nada mais.

 

5  SR (a Keshob, sorrindo) — Existem boas razões para que você esteja doente. Muitos estados exaltados foram e vieram pelo seu corpo e é por esse motivo que isso está acontecendo com você agora. No momento do êxtase não se nota nada, mas mais tarde o corpo se ressente. Fico vendo os grandes navios no Ganges: primeiro não acontece nada, mas depois oh! lá longe, atrás do navio, uma onda enorme vem bater ruidosamente na margem ou até arranca dela um pedaço que cai na água. Quando um elefante entra numa cabana, quebra tudo ao seu redor. Da mesma forma, a emoção religiosa destrói esta casa do corpo quando penetra nela.

Ou também, no início de um incêndio, vemos coisas que pegam fogo aqui e ali, depois de repente a casa inteira se inflama com um ruído terrível. O fogo do conhecimento começa consumindo a ira, a luxúria e as outras paixões, depois ataca o sentido do eu e finalmente devora tudo.

Você gostaria que tudo isso terminasse, mas Ele não deixará você enquanto houver algo a cuidar. Seu nome foi inscrito no registro do hospital, você não vai sair assim. Enquanto a doença não está completamente curada, o Doutor Saheb não permite que a gente se vá. Por que você se deixou inscrever?

Ao ouvir essa comparação com o hospital, Keshob começou a rir. Não conseguia mais parar: segurava-se, depois ria de novo.

O Mestre continuou: Hridu dizia sempre que nunca vira um estado exaltado como o meu, nem uma doença como a minha24. Naquela época eu estava realmente muito doente. Estava com disenteria e toda hora precisava ir aliviar-me. Era como se milhões de formigas me picassem a cabeça. Mas falávamos de Deus dia e noite. O doutor Ram Kobiraj25 de Natagor veio me examinar e me encontrou sentado discutindo. Ele disse: “Que louco! Está pele e osso e ainda fica discutindo!”

Sua vontade! Tudo acontece como Ele quer!

 

Tudo acontece como queres,

Fazes como bem Te apraz,

Ó Mãe, nossa protetora,

Realizas todas as Tuas obras,

E as pessoas dizem “sou eu”.

 

O jardineiro desenterra as raízes da roseira de Bassorah para expô-las ao orvalho. Se as raízes são molhadas pelo orvalho, temos as mais belas flores. Parece-me, Keshob, que estão limpando suas raízes (o Mestre e Keshob riem), e que quando você voltar26 a coisa será grandiosa!

Sua doença me deu muita preocupação. Quando você ficou doente pela primeira vez27, eu acordava à noite e chorava dizendo: “Mãe! Se acontecer alguma coisa a Keshob, não vou ter mais ninguém com quem falar!” Fui a Calcutá e ofereci castanha de coco e açúcar à Rainha do Universo, rezando para que Ela lhe devolvesse a saúde.

Os ouvintes ficaram admirados pela sinceridade do amor do Mestre e sua preocupação por Keshob.

O Mestre acrescentou: “Mas dessa vez não foi assim. Estou lhe dizendo a verdade. Só dois ou três dias de preocupação”.

Keshob entrara na sala do lado leste. Sua venerável mãe apareceu por aquela mesma entrada28. Da porta, Umanath dirigiu-se ao Mestre com voz alta: “Nossa mãe está saudando o senhor”. O Mestre sorriu. Umanath continuou: “Nossa mãe está pedindo que o senhor faça Keshob sarar”. O Mestre respondeu: “Roguem à Mãe, a dispensadora de todas as bênçãos, Ela afastará o mal”. Depois dirigiu-se a Keshob: “Não fique muito nos aposentos interiores com as mulheres e as crianças. Se fizer isso, vai piorar. Se as pessoas falarem de Deus ao seu redor, você se sentirá melhor”. Tendo falado assim num tom grave, deu um sorriso infantil e disse a Keshob: “Me mostre sua mão”. Pesou-a na sua, como o fazem as crianças, e disse: “Muito bem, ela está leve! Os mentirosos têm a mão pesada”. Todos riram.

Da porta, Umanath continuou: “Nossa mãe lhe pede para abençoar Keshob”.

SR (sério) — Não tenho nenhum poder. É a Deus que cabe abençoar. Tu realizas todas as obras e as pessoas dizem: ”Sou eu”. Deus ri em duas ocasiões. A primeira, quando dois irmãos pegam um barbante para medir um terreno e dizem: “Aqui é meu e ali é seu”. Deus sorri, pensando: “O universo é meu e eles acham que esse pedaço de terra é deles”. A segunda, é quando uma criança está seriamente doente; sua mãe chora, o médico vem e diz: “Não tenha medo, eu vou curá-la”. O médico ignora que quando Deus golpeia ninguém tem o poder de salvar.

Houve um silêncio. Bem naquele momento, Keshob teve um longo acesso de tosse. Aquilo não parava e dava mal-estar ouvir. Muito tempo depois, e com muita dificuldade, Keshob conseguiu dominar o acesso, mas já não tinha forças para ficar ali. Prosternou-se no chão diante do Mestre e foi para seu quarto, apoiando-se nas paredes.

 

6  Trouxeram ao Mestre alguns refrescos. O filho mais velho de Keshob veio sentar-se perto dele. Amrita disse: “Esse é o filho mais velho dele. Por favor, coloque suas mãos sobre sua cabeça e abençoe-o”. O Mestre respondeu: “Eu não dou bênçãos”, mas sorriu e acariciou o menino. Amrita disse: “Então acaricie-o, por favor”, e todos riram.

SR (a Amrita e os outros) — Não posso dizer “Fique curado” ou outras coisas do gênero. Eu nem pedi tal poder para a Mãe. Só Lhe pedi: “Mãe, dá-me um amor puro”.

Keshob não é qualquer um! Todos o respeitam, tanto os sadhus quanto os que vivem em busca do dinheiro. Há tempos atrás, encontrei Dayananda29, que na época morava numa casa de campo. A cada instante, saía da sala perguntando: “Keshav Sen, Keshav Sen está chegando?” Entendi que se tratava da vinda de Keshob naquele dia. Vocês sabem que Dayananda chamava o bengali como “a língua de Gour30? Como Keshob não queria admitir os sacrifícios védicos, nem as numerosas divindades do Veda, Dayananda dizia: “Deus criou tantas coisas, por que não criaria essas divindades também?”

Não, de fato não é um qualquer! Ele disse a muita gente: “Se vocês tiverem dúvidas, vão perguntar lá31”. Bom, meu desejo é dizer: “Que a fama de Keshob cresça mil vezes!” Que me importa a estima das pessoas? Keshob é um homem realmente grande, admirado tanto pelos mundanos quanto pelos sadhus.

Assim o Mestre fez o elogio de Keshob diante de seus discípulos.

Depois dos refrescos, o Mestre dirigiu-se para o carro. Os brahmos o acompanharam. Ao descer a escada, Sri Ramakrishna viu que o andar térreo não estava iluminado. Disse a Omrito e aos outros: “Não deixem esses lugares no escuro. Atrai a desgraça. Não façam mais isso”. Depois subiu no carro e se foi, com um ou dois discípulos, para o templo de Kali.

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Nas lembranças de Swami Adbhutananda (Latu), há referência a uma frase que SR teria dito depois de ver Keshob tão doente: “Desta vez, não compreendo a vontade da Mãe”.

Na biografia de Swami Saradananda, (2ª parte, Apêndice, nº 25) vemos que SR disse sobre a morte de Keshob: “Quando recebi essa notícia, fiquei três dias de cama; foi como se um dos meus membros tivesse sido paralisado”.

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DIÁLOGO 12*

NA CASA DE JAYGOPAL SEN: 28 DE NOVEMBRO DE 1883

 

1  Estamos no dia 28 de novembro de 1883. Hoje, por volta das quatro ou cinco horas da tarde, Sri Ramakrishna foi visitar Keshob Shen1, na “Casa dos Lírios”. Keshob está muito doente e vai partir deste mundo em breve. Depois dessa visita, às sete horas mais ou menos, o Mestre chega à casa de Joygopal Shen, acompanhado por alguns discípulos.

Os discípulos estavam mergulhados em seus pensamentos2: “Dia e noite o Mestre está possuído pelo amor a Deus. Casou-se mas não constituiu família. Ama sua esposa e a venera, mas com ela só fala de Deus, canta para Deus, celebra o puja3 e medita; não estão ligados por maya. Para ele Deus é real, viu-O pessoalmente; todo o resto é irreal. Não é capaz de tocar o dinheiro, nem nada metálico, nem sequer um pote de cobre4; também não consegue tocar uma mulher5. Tal contato o queima como a picada de uma aranha-do-mar. Se sua mão toca ouro ou uma moeda, encarquilha-se e ele não consegue mais respirar, só voltando ao estado normal quando o objeto é retirado”.

Os discípulos pensavam ainda6: “Será que é preciso renunciar ao mundo? Para que continuar meus estudos? Se eu não me casar, não terei que arrumar emprego. Mas será que vou precisar deixar meus pais também?” ou ainda: “Sou casado, tenho filhos, preciso cuidar da minha família. Como vou fazer? Vendo o Mestre, quero ser como ele, mergulhado dia e noite no amor de Deus. Como pode ser? Sua visão de Deus é ininterrupta, constante como um fio de óleo, ao passo que eu perco meus dias e minhas noites numa multidão de preocupações. Só os momentos em que vejo o Mestre são como um pedaço de céu azul no meio das nuvens. Como vou conseguir resolver os problemas da vida? Certamente ele me mostrará a solução, sem dúvida alguma”.

 

Quero realizar meu desejo, rompendo esses diques de areia7

 

“Apenas diques de areia realmente? Por que não sou capaz de renunciar? Não tenho força: se o amor de Deus me invadisse eu não hesitaria mais. A onda da maré que faz subir o Ganges varre tudo em sua passagem. Quando o amor de Deus surgiu, Chaitanya tomou a veste de monge errante. Impelido por esse mesmo amor, Cristo, cheio de compaixão, tornou-se eremita no deserto e depois sacrificou-se contemplando a face do Pai. Esse mesmo amor fez Buddha renunciar ao seu reino para tornar-se asceta. Quando uma parcela desse amor se manifesta, ela consome esse mundo passageiro.”

“Bom, mas os fracos, que não são impulsionados por esse amor, que vivem no mundo com as correntes de maya nos pés, como farão? Vamos ligar-nos com firmeza a esse santo, cheio de renúncia e amor a Deus. Vamos ouvir o que ele vai dizer!”

Isso pensavam os discípulos.

______________

 

O Mestre estava sentado na sala de Joygopal Shen, os devotos de ambos os lados, em frente dele Joygopal, seu irmão Boikuntho (Vaikuntha), alguns amigos e vizinhos. Um deles parecia pronto para dirigir a conversa.

BOIKUNTHO — Queira dizer-nos algumas palavras, para nós que vivemos no mundo.

SR — Procurem conhecê-Lo. Com uma mão segurem-se a Seus pés, com a outra façam tudo o que tiverem que fazer.

BOIKUNTHO — Senhor, o mundo é uma ilusão?

SR — Sim, enquanto não conhecemos Deus. Quando a pessoa esquece Deus e só pensa “eu, eu”, está ofuscada por maya, deixa-se amarrar ao sexo e ao dinheiro e afunda-se cada vez mais. Fica de tal modo presa na ignorância que não consegue encontrar a saída — muito embora haja uma saída. Ouça esta canção:

 

Tentamos em vão escapar da magia,

Que enfeitiça até Brahma e Vishnu.

A nassa está pronta, o peixe entra nela,

A saída está livre, ele não foge.

O bicho da seda poderia sair do casulo,

Mas prefere morrer na prisão

Que teceu com sua própria saliva.

 

Você mesmo pode constatar que este mundo não é mais que uma aparência. Aqui mesmo nesta casa, quantas gerações se sucederam, quantos nascimentos e quantas mortes? Tudo isso vem e depois passa — uma aparência. Aquilo que as pessoas arrancam umas das outras gritando “é meu, é meu” não dura mais que um piscar de olhos. Lá está um homem que não tem mais responsabilidades, poderia ir viver em Benares, mas apegou-se ao seu neto: “O que será do meu Haru?” Você ouviu bem: a saída está livre, mas o peixe fica ali; a lagarta morre na prisão que ela mesma fez para si. É nesse sentido que o mundo é uma mentira, uma aparência!

VIZINHO — Então, senhor, por que dar só uma mão para Deus e deixar uma para o mundo?

SR — Quando conhecemos Deus, o mundo deixa de ser uma ilusão. Ouça este outro canto:

 

Ó minha mente, não sabes trabalhar!

Teu campo está abandonado, esbanjas teu tesouro,

Ao redor da colheita, para afastar os ladrões,

Ergue a barreira do Nome de Kali,

Uma sebe sólida que afaste a Morte.

Antes que decorram cem anos, tomarão de ti esta terra,

Por enquanto ela é tua, cultiva-a sem descanso.

Onde o guru lançou a semente, despeja a água de teu amor.

Se não o conseguires sozinha, pede ajuda a Ramprasad.

 

2  Você ouviu? “A barreira do Nome de Kali afasta os ladrões”. Tome refúgio em Deus e você conseguirá tudo. Nem mesmo a morte ousará aproximar-se. Para aquele que alcança Deus, o mundo não parece desprovido de substância. Ele percebe que o próprio Deus tomou a forma do mundo e dos seres. Quando alimenta seus filhos, parece-lhe que está alimentando o próprio Gopal8. Ao servir seus pais, é o Deus e a Deusa que está servindo. Se constituiu família, não mantém um relacionamento egoísta com sua esposa: são ambos devotos, só falam de Deus. Servem os adoradores de Deus. Compreenderam que Deus está por toda parte e O servem juntos.

VIZINHO — Senhor, nunca se viu um casal assim!

SR — Existe, mas é muito raro. Os mundanos não os reconhecem. Mas para que isso ocorra, é preciso que ambos o queiram. Se ambos sentem a bem-aventurança de Deus, então tal coisa se torna possível. É uma graça especial do Senhor. Senão, a vida é uma eterna discórdia, e um dos dois terá que ir embora9. Quando o casal está em desacordo, isso se torna um sofrimento contínuo. A mulher, por exemplo, vai repetir sem parar: “Por que você se casou comigo? Não tenho o que comer nem como alimentar as crianças, nem tenho com que me vestir e vestir as crianças. Você não me deu uma única jóia. Que prazer me resta na vida? Você fica sentado o dia inteiro com os olhos fechados repetindo “Senhor, Senhor”. Vamos acabar com essas besteiras”.

UM OUVINTE — E o pior são as crianças rebeldes, como dão trabalho! Como fazer, senhor?

SR — Praticar uma disciplina espiritual no mundo é muito difícil. Há muitos obstáculos, você sabe melhor que eu: a doença e o luto, a pobreza e as brigas com a esposa, os filhos desobedientes, estúpidos ou teimosos. Mas é possível vencer tudo isso. De vez em quando, é preciso orar a Deus na solidão, esforçar-se para conhecê-Lo.

VIZINHO — É necessário sair de casa?

SR — Não totalmente. Cada vez que houver oportunidade, fazer retiro num lugar solitário durante alguns dias, sem contato com a família, evitando as conversas sobre as coisas do mundo. Sozinho ou na companhia dos sadhus.

VIZINHO — Como distinguir os verdadeiros sadhus?

SR — Um sadhu é um homem cuja alma voltou-se completamente para Deus. Um homem que renunciou ao sexo e ao dinheiro. Um sadhu não lança um olhar sequer para as mulheres, mas volta seus olhos para dentro. Se se encontra perto de uma mulher, vê nela a Mãe e A adora. Um sadhu pensa em Deus o tempo todo, não fala de outra coisa que não seja Deus. Vê Deus presente em todos os seres e coloca-se a seu serviço. Por alto, são esses os sinais do sadhu.

VIZINHO — A solidão deve ser total?

SR — Você já observou as árvores na beira da estrada? Enquanto são jovens, é preciso colocar uma cerca ao redor para que não sejam comidas pelas cabras e as vacas. Quando seu tronco engrossa, a cerca já não é mais necessária, pode-se até amarrar um elefante nas árvores sem que elas se quebrem. Se você se tornar como um tronco, não terá mais preocupações nem receios. Procure esforçar-se para adquirir o discernimento o mais rápido possível. Esfregue óleo nas mãos para que não se colem com o visgo da jaqueira.

VIZINHO — O que é o discernimento?

SR — É o seguinte: Deus é a única realidade, todo o mais é ilusório. É real o que é eterno, ilusório é o que passa. Aquele que adquiriu o discernimento, compreende que só Deus é real e todo o resto uma aparência. Com a aurora do discernimento, vem o desejo de conhecer Deus. Enquanto amamos o que é passageiro (o conforto, a consideração das pessoas, a riqueza) não desejamos conhecer o eterno, isto é, Deus. Quando começamos a distinguir o real do irreal, começamos também a buscar Deus. Ouça este canto de Ramprasad10 :

 

Aproxima-te de Kali, ó minha alma,

A árvore que realiza os desejos,

Nela encontramos os quatro frutos.

Das duas companheiras de tua vida,

Deixa a Ação, pega o Desapego.

Poderás perguntar o caminho

A teu filho Discernimento.

Toma contigo Puro e Impuro:

Quando esses rivais se harmonizarem,

Abrir-se-á a câmara divina,

Onde contemplar Shyama, a Mãe.

Nascida do Egoísmo e da Ignorância,

Expulsa para bem longe teus pais.

Se te arrastarem para o abismo,

Segura firme no pilar da Paciência.

Amarra ao tronco do sacrifício

O Justo e o Injusto, esses dois bodes,

E caso se mostrem indóceis,

Golpeia-os com a espada do Conhecimento.

Os filhos de tua antiga esposa,

Grita-lhes de longe para que voltem,

E se teimarem em seguir-te,

Afoga-os no lago da Sabedoria.

Se fizeres isso, diz Prasad,

Poderás responder à morte.

Minha mente, meu filho, meu mestre,

Serás aquilo que meu coração almeja.

 

A mente se retira da ação e o discernimento vem. Graças ao discernimento, a mente se torna atenta para a sabedoria. Então ela sente vontade de entregar-se “aos pés de Kali, a árvore que concede os desejos. Ao pé desta árvore, isto é, junto de Deus, “encontramos os quatro frutos”: encontramos, quer dizer, recolhemos sem esforço, apenas abaixando-nos. Os quatro frutos são o prazer, a riqueza, a justiça, a libertação. Ao encontrar Deus, obtemos também os três primeiros frutos, que têm sua utilidade para viver no mundo — se os desejarmos!

VIZINHO — Por que o mundo é chamado maya?

SR — Enquanto não tivermos alcançado a visão de Deus, será preciso tomar certa distância em relação às coisas, analisando-as: Deus não é isso, não é aquilo. Depois de conhecermos Deus, percebemos que Ele se transforma em todas as coisas. Os seres vivos e o mundo são a maya de Deus. Percebemos que tudo é Ele! Quando analisamos a fruta da bilva11, distinguimos a casca, as sementes, a polpa, mas para sabermos o peso da fruta não podemos pesar só a polpa, precisamos colocar tudo junto de novo. A casca é o mundo, os seres vivos são as sementes. No momento da análise, nós os rejeitamos como não sendo o essencial, a realidade. Buscamos a polpa, que é o essencial, tiramos a casca e os grãos, por serem secundários. Depois, tomamos consciência de que a fruta é o conjunto. Quando compreendemos como é a fruta da bilva, então compreendemos tudo.

Num sentido, depois no outro12. A manteiga e o soro são inseparáveis. Não se pode ter um sem o outro. Onde existe o Absoluto, existe o relativo. Onde existe o Eterno (Nitya), o Absoluto, existe também o passageiro, o Jogo (Lila), e onde existe o Jogo também está o Absoluto. Aquele que conhece Deus, vê-O tornar-se o universo inteiro, vê-O como pai e mãe, filhos e vizinhos, homens e animais, o bom e o mau, o puro e o impuro. Tudo!

VIZINHO — Mas então não existe mais diferença entre o bem e o mal?

SR — Existe e não existe. Se Deus deixa subsistir o ego, então deixa subsistir também a consciência das distinções e a consciência do bem e do mal. Muito raramente, Ele tira por completo o ego, e com o ego se vão o pecado e a virtude, o bem e o mal. Em todo caso, enquanto a visão de Deus não ocorre, a consciência das diferenças, entre o bem e o mal, o puro e o impuro, continua existindo. Por mais que sua boca diga “Passei para além do bem e do mal, não sou eu que estou agindo, faço o que Ele me faz fazer”, você sabe perfeitamente, no fundo de você mesmo, que não são mais que palavras. Se você age mal, sua consciência o reprova. Mesmo depois da visão de Deus, Ele pode querer conservar o “eu do servidor”. Nesse estado, o devoto diz: “Tu és o Senhor e eu o servidor”. Ele só gosta das conversas sobre Deus, das ações que o aproximam dEle, e rejeita todas as que o afastam. O trabalho que não esteja relacionado com Deus lhe pesa. Mas seja como for, um devoto como esse conserva a noção das diferenças.

VIZINHO — O senhor disse para entrar no mundo depois de ter conhecido Deus. Mas como se pode conhecê-Lo?

SR — Não se pode conhecê-Lo nem pelos sentidos, nem por esta mente. Mas quando a mente se liberta dos desejos mundanos, purifica-se e permite que O encontremos.

VIZINHO — Mas quem pode conhecê-Lo?

SR — De fato, quem pode? Cada um recebe o que necessita. Eu não preciso de um poço inteiro de água. Basta-me um pote. Uma formiga passa perto de uma montanha de açúcar. Será que ela precisa da montanha inteira? Um ou dois grãozinhos bastam para satisfazê-la.

VIZINHO — Mas o delírio nos dá uma sede devoradora; então um pote d’água não dá, queremos conhecer Deus inteiramente.

SR — É verdade, mas existem remédios para esse delírio!

VIZINHO — Qual remédio, senhor?

SR — A companhia dos santos, o canto do Nome de Deus, a oração constante. Eu dizia para a Mãe: “Não quero conhecimento, pega de volta Teu conhecimento e Tua ignorância, Mãe, e dá-me um amor puro pelos Teus pés de lótus. Não desejo mais nada”. Aquele que criou o delírio criou também o remédio. No Guita Deus diz: “Ó Arjuna, toma refúgio em mim, Eu te libertarei de todo mal”. Entregue-se a Ele e Ele fará você compreender tudo, Ele carregará todo o seu fardo. Ele afastará de você o delírio. Nossa inteligência pode compreendê-Lo? Podemos despejar quatro litros de leite numa jarra de um litro? Se Ele não Se explicar a Si mesmo, quem O explicará? Por isso eu digo: que Ele faça como quiser, Ele é o Todo-Poderoso, Aquele que concede os desejos. O que pode o Homem fazer?

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DIÁLOGO 13*

VISITA AO JARDIM DE SURENDRA: 15 DE JUNHO DE 1884

 

Keshav morreu e Ramakrishna não é mais o sadhu desconhecido descoberto pelo Brahmosamaj. O dia descrito aqui foi organizado em torno de Ramakrishna pelos seus próprios discípulos, embora muitos brahmos estejam presentes, entre os quais Pratap Chandra Majumdar, o sucessor de Keshav. Com este a conversa é um tanto pomposa, mas as relações com o Brahmosamaj permanecerão muito amistosas enquanto Ramakrishna viver.

 

1  Hoje, domingo, Sri Ramakrishna está visitando Shurendro1 em sua casa de campo2. Ele está aqui desde as nove horas da manhã e reina a alegria. A casa está situada em Kankurgachi, uma cidadezinha perto de Calcutá, não longe da propriedade de Ram, que o Mestre visitara seis meses antes3; desta vez a grande festa é na casa de Shurendro.

O kirtan começara cedo. Os músicos haviam tomado como tema o amor das gopis, a partida de Sri Krishna para Mathura4, sua dolorosa separação de Radha, o desespero desta. Ao ouvir o canto, o Mestre entrava em êxtase continuamente. De pé, os devotos formavam um círculo em torno deles, na sala principal da casa. Haviam disposto no chão, para sentar-se, lençóis brancos e algumas almofadas grandes. A leste e a oeste da sala ficavam os quartos, ao norte e ao sul as varandas. Do lado sul avistava-se um reservatório de água rodeado de degraus, separado da casa por uma alameda orlada de árvores ornamentais. Uma outra alameda cercada de árvores, com o chão avermelhado de pó de tijolos, levava ao portão externo e a um segundo reservatório de água onde os aldeões vinham banhar-se e buscar água potável. Não muito longe dali ficavam as cozinhas fervilhantes de atividade, onde, sob a direção de Shuresh5 e Ram, estava-se preparando o almoço do mestre e dos fiéis. Os convidados se comprimiam nas varandas; lá fora também havia muita gente, passeando no parque, ou descansando à beira da água. Uma multidão de devotos assistia ao kirtan: Bhobonath, Nironjon6, Rakhal, Shurendro, Ram, M, Mohimachoron7, Moni Mollik8 e muitos outros. Muitos brahmos vieram.

Os músicos haviam começado com uma canção relacionada a Gouranga9: sua partida como monge errante, na loucura do amor de Krishna, as lágrimas dos devotos de Navadvip10 ao pensarem que ficariam sem sua presença. Cantaram “Ó Gour, volta para Nadya”. Depois o canto descreveu o desespero de Radha11 no momento de sua separação de Krishna. O Mestre estava em estado exaltação. De pé, improvisava versos com a voz embargada de emoção e os coros repetiam: “Ó minhas amigas, trazei de volta o Bem-Amado, ou levai-me até Ele”. O Mestre entrara no estado de espírito de Radha. Depois dessa frase, ficou absorto por um momento, completamente imóvel, com os olhos semicerrados, em profundo êxtase. Bem depois, voltou a si e, com a mesma voz patética improvisou: “Amiga, leva-me até Ele! Serei tua escrava! Foste tu quem me ensinou a amar Krishna!” Depois o coro cantou, desempenhando sempre o papel de Radha: “Amigas! Não irei mais buscar água no Jamuna. Era onde eu encontrava o Bem-Amado, sofro demais quando volto lá”. O Mestre estava novamente em êxtase, dizia apenas “Ah, ah”. O canto continuava12: “De que me servem minhas jóias, se A Mais Preciosa me abandonou”; “Vejam como estou infeliz; os dias de alegria terminaram; como é longo o tempo do sofrimento”. O Mestre improvisou um verso: “Virão dias mais felizes?” O cantor13 retomou o tema: “O tempo do sofrimento é tão longo, quando voltarão os dias felizes?” Depois o coro cantou:

 

Amigas, estou morrendo, certamente vou morrer.

Estar longe de Krishna não posso suportá-lo.

Não queimem meu corpo, não o entreguem ao rio,

Principalmente não queimem este corpo, as delícias de Krishna,

Suas delícias, não as entreguem nem ao fogo nem à água,

Na árvore tomal** quero ser amarrada,

De modo que meu corpo toque seus galhos,

Será como atar-me ao próprio Krishna,

Escuro é Krishna e escuro é o tomal,

Como gosto do negro! Desde a infância!

A árvore tomal e Krishna se parecem,

Assim não ficarei separada dEle.

 

Radha, consumida pela dor, desmaia. O canto prossegue14. Suas amigas a reanimam, pronunciando-lhe ao ouvido o Nome de Krishna. Depois, todas juntas, decidem enviar uma mensageira a Mathura. As mulheres da cidade zombam dela, uma camponesa com a pretensão de ser recebida pelo rei. A jovem pastora chora “Por que sou eu que tenho de procurar-Te? Tu não virás espontaneamente, Tu que és o Bem-Amado das gopis, o Bem-Amado de Radha? Não me pouparás esta vergonha?” Diante de tamanho desejo de ver Krishna, o Mestre entrou em êxtase novamente. Estava de pé e repetia com voz desarticulada Kitna, Kitna. Finalmente, os músicos cantaram com todos os presentes um hino que celebrava o reencontro de Radha e Krishna. A emoção do kirtan atingira o auge. O Mestre dançou e os fiéis dançaram ao redor dele, cantando “Vitória a Radha e a Govinda, vitória a Radha e a Govinda”.

 

2  Ao término do kirtan o Mestre e os devotos sentaram-se um pouco. Nesse momento, Nironjon veio prosternar-se diante do Mestre. Este levantou-se ao avistá-lo, tremendo de alegria, com o rosto sorridente, e disse-lhe: “Ah, você está aqui!” E dirigiu-se a M: “Veja como esse rapaz é puro. Para adquirir uma pureza assim, deve ter feito grandes austeridades em suas vidas anteriores. As pessoas hipócritas ou interesseiras não podem alcançar Deus. Ouça: quando o Senhor desce à terra, a sinceridade o acompanha. Veja Dasharatha15, que honestidade! E Nanda, o pai de Sri Krishna. Existe até mesmo um ditado “honesto como Nanda Ghosh”. Os devotos precisam ser honestos”.

Será que o Mestre queria sugerir que o Senhor descera à terra16 uma vez mais?

SR (a Nironjon) — Ouça, seu rosto me parece coberto por um véu negro. Você trabalha num escritório, não é? É isso. Nos escritórios fazem cálculos o tempo todo e há muitas tarefas que absorvem as pessoas. Você está trabalhando como os mundanos. Mas com uma pequena diferença: é para alimentar sua mãe. A mãe e o guru são formas da Mãe do Universo. Se fosse para alimentar mulher e filhos, eu lhe diria: “Que vergonha, que vergonha17!”

SR (dirigindo-se a Moni Mollik) — Você está vendo, esse rapaz é muito honesto, mas recentemente falou uma meia-mentira. Isso não se faz. Ele me havia dito que viria me ver e só hoje é que veio! (Dirigindo-se a Nironjon) — Rakhal me disse que você estava em Aryadaha, você poderia ter aproveitado para vir.

N — Só fiquei dois dias em Aryadaha.

SR — (a Nironjon, mostrando M) — Veja você, ele é diretor de uma escola e foi buscar você; fui eu que o mandei. (Dirigindo-se a M) — E Baburam18, você lhe disse para vir?

 

3  O Mestre estava num quarto a oeste, em companhia de alguns devotos. Estavam colocando mesas e cadeiras ali. O Mestre falava meio sentado sobre uma mesa.

SR (dirigindo-se a M) — Ah, que amor o das gopis! Só de ver uma árvore tomal já sentiam a divina loucura! Radha estava de tal forma consumida pelo fogo da separação que suas lágrimas haviam secado, como se o calor daquele fogo as tivesse feito evaporar. Ela se continha e ninguém notava nada — da mesma forma que o banho de um elefante19 num grande lago não faz ondas.

M — É verdade, senhor, acontecia o mesmo com Gouranga. Uma floresta lhe lembrava Vrindavan, o oceano lhe lembrava o Jamuna.

SR — Oh, quem poderia ter ao menos uma gota daquele amor! Que paixão! Que apego! Radha tinha mais de cem por cento, talvez cento e vinte e cinco por cento! Devemos imitar esse apego, quer acreditemos em Deus com forma ou sem forma, quer acreditemos ou não que Deus possa descer sob forma humana. Quando uma pessoa se apega a Deus dessa maneira, Ele se mostra tal como é. Se é para ficar louco, para que ficar louco pelas coisas do mundo? Se é para ficar louco, que seja por Deus!

 

4  O Mestre voltou à sala principal. Trouxeram-lhe uma almofada grande para que se apoiasse. Antes de sentar-se, ele tocou a almofada dizendo OM TAT SAT. Naquela casa também vinham pessoas impregnadas por preocupações mundanas e usavam aquelas almofadas. Foi por isso com certeza que o Mestre purificou a almofada pronunciando aquele mantra. Bhobonath, M e alguns outros sentaram-se perto dele. Passou-se um bom tempo e nada prenunciava a refeição. O Mestre era tão espontâneo quanto uma criança. Disse: “E então, não vão trazer nada? Onde está Shurendro*?” Um devoto respondeu-lhe sorrindo: “Senhor! O organizador é Ram Babu20, ele cuidou de tudo”. O Mestre riu: “Ah! Se é Ram, eu compreendo!” e todos riram. O devoto respondeu: “Sim, senhor, cada vez que ele toma conta é a mesma coisa”. Sri Ramakrishna perguntou: “Onde está Shurendro? Que natureza excelente ele tem! Fala com franqueza, sem medo de ninguém, e é generoso. Aqueles que lhe pedem ajuda nunca saem de mãos vazias”.

(Dirigindo-se a M) — Você foi ver Bhogoban Das21. Como ele estava?

M — Sim, senhor, fui a Kalna. Bhogoban Das está muito velho. Eu o vi de noite, estava deitado no chão em cima de uns cobertores. Alguém lhe havia trazido prasad e estava lhe dando de comer. É preciso gritar para que ele ouça. Quando mencionei seu nome, ele me disse: “Com ele você não tem nada a recear”. Naquela casa sempre se recita o Nome do Senhor22.

BHOBONATH (dirigindo-se a M) — Faz muito tempo que o senhor não vem a Dakshineswar23. Ele (SR) estava preocupado consigo e me perguntou: “E o professor, não quer mais saber de nós?” — dizendo isso, Bobonath sorria. O Mestre estava ouvindo toda a conversa e aprovou, olhando M com afeto: “É verdade, diga-me por que você não vem há tanto tempo”. M deu algumas desculpas desajeitadas.

Naquele momento chegou Mohimachoron24. Morava em Cossipore e vinha sempre visitar o Mestre, pelo qual tinha muito respeito e devoção. Era um brâmane, herdeiro de um patrimônio que lhe permitia viver sem trabalhar, e dedicava seu tempo à meditação e ao estudo das Escrituras. Aliás, era bastante instruído, tanto em sânscrito como em inglês.

SR (sorrindo) — Ora vejam, está chegando um navio grande! (risos). Até agora só havia canoas, mas aí está um navio a vapor. “A água está subindo, deve ser a monção”, diz o provérbio.

Ambos começaram a conversar.

SR — Bom, alimentar as pessoas é um modo de servir a Deus, não é? Deus está presente em todos os seres como um fogo; por isso, alimentar os seres pode ser comparado a uma oblação no fogo. Mas, por outro lado, não se deveria alimentar os maus, aqueles que cometeram grandes pecados, como o adultério, por exemplo. Pessoas tão presas ao mundo que a terra debaixo delas se torna impura até três pés de profundidade! Um dia, Hridê ofereceu um banquete em sua aldeia de Shihor, e alguns convidados eram péssimas pessoas. Então eu lhe disse: “Ouça, Hridê, se você alimentar essas pessoas eu vou embora!” Bom, disseram-me que antigamente você também alimentava muita gente25, mas talvez seus rendimentos tenham baixado um pouco!

 

5  Finalmente colocaram as folhas para o almoço na varanda sul. O Mestre disse a Mohimachoron: “Por favor, vá ver como estão indo as coisas. E eu até pediria ao senhor para ajudar um pouco no serviço26”. Mohimachoron respondeu: “Vamos deixar que tragam a comida primeiro, depois eu vou ver”. Mesmo assim, resmungando, deu alguns passos na direção das cozinhas, depois voltou a sentar-se.

O Mestre e os devotos comeram com grande alegria. O Mestre foi descansar um pouco dentro da casa, enquanto os devotos iam lavar as mãos e a boca à beira do reservatório de água. Depois voltaram pouco a pouco, mascando seu pan de bétel*, para reunir-se ao redor do Mestre. E todos se sentaram no chão.

Por volta das duas horas, veio Protap27. Ao chegar, cumprimentou o Mestre e este lhe respondeu inclinando a cabeça. Depois iniciaram uma longa conversa.

P — Estou voltando de Darjeeling, senhor, na montanha.

SR — Mas sua saúde não parece ter melhorado. O que você tem?

P — A mesma doença que Keshob, senhor28.

Continuaram a falar de Keshob. Protap contou que Keshob havia manifestado seu espírito de renúncia desde a infância. Raramente era visto divertindo-se como os outros. Estudara no Hindu College na mesma época que Shottendro29, de quem se tornou amigo, a por meio deste ligou-se ao Sr. Debendronath Thakur. Havia em Keshob um yogui e um bhakta ao mesmo tempo. De vez em quando era tomado por acessos de amor a Deus, a ponto de desmaiar às vezes. O objetivo de toda a sua vida havia sido o de mostrar que um chefe de família pode levar uma vida religiosa30.

A conversa mudou de assunto.

P — Agora até existem mulheres de nosso país que vão à Inglaterra, como aquela senhora marata31 muito instruída. Mas ela se tornou cristã. O senhor ouviu falar dela?

SR — Não, mas pelo que você está dizendo, ela gosta que falem dela. Não devemos dar-nos importância assim. Pensar “eu faço isso ou aquilo” vem da ignorância. O conhecimento é “Ó meu Deus, Tu sozinho realizas tudo”. Ele age e nós somos seus instrumentos. Aquele que diz “eu, eu” cai em desgraça, como você pode ver na história do bezerro32. Enquanto ele berra “, ” (meu, meu), arrasta o arado desde a manhã até a noite, no sol e na chuva. Depois o matam, as pessoas comem sua carne, seu couro é transformado em sapatos que são pisados, tambores que são batidos sem piedade com varetas. Finalmente, de suas tripas fazem a corda do arco de cardar, que soa fazendo “tumm, tumm”. Somente então, quando ele diz assim “tu, tu” é que se liberta e pode sair do campo da ação. O mesmo ocorre com os homens. Quando eles aprendem a dizer “Ó Senhor, não sou eu que faço as ações e sim Tu, eu sou o carro e Tu o condutor”, seu sofrimento neste mundo se acaba. Então são libertados e não precisam mais voltar à arena.

UM OUVINTE — E como podemos livrar-nos do “eu”?

SR — Só a visão de Deus o faz desaparecer. Se alguém perdeu a consciência do seu próprio eu, você pode ter certeza de que essa pessoa alcançou a visão de Deus.

UM OUVINTE — Senhor, como reconhecemos um homem que conheceu Deus?

SR — Há sinais externos. O Bhagavata indica quatro: aquele que viu Deus parece 1)uma criança, 2)um espectro32, 3)um objeto inerte, 4)um louco. Como assim? Aquele que viu Deus adquire a natureza de uma criança; ultrapassa os três modos33, dos quais nenhum tem poder sobre ele. Parece um espectro, porque perde a noção da diferença entre o puro e o impuro. Parece um louco: ora ri e ora chora, ora se veste como um babu e ora sai nu com o dhoti enrolado debaixo do braço. Finalmente, pode ficar imóvel em silêncio, como uma coisa inerte.

UM OUVINTE — E depois da visão de Deus, o eu desaparece completamente?

SR — Depende. De vez em quando fica completamente apagado, como no samadhi. Mas em geral Deus deixa um pouco do ego, sob uma forma inofensiva. Como o eu de uma criança. Uma criança de cinco anos diz “eu, eu”, mas não é capaz de fazer o mal. A pedra filosofal transforma o ferro em ouro. Se tocarmos com ela uma espada de ferro, esta se transforma numa espada de ouro, que mantém a mesma forma mas não pode mais matar.

 

6  SR (a Protap) — Você está voltando da Inglaterra, diga-nos o que viu por lá.

P — As pessoas de lá são quase todas adoradoras daquilo que o senhor chama de “ouro”, embora de vez em quando se encontrem pessoas muito boas, sem apego. Mas em geral é o modo rajas que predomina. Na América é a mesma coisa.

SR — O apego não existe só lá. Nós o encontramos aqui e por toda parte. Na verdade o trabalho é só uma primeira etapa. Enquanto não vivermos no modo sattva — devoção, renúncia, etc. — não alcançamos Deus. No modo rajas a ação se faz com orgulho e daí caímos facilmente de rajas para tamas. Ao acumular trabalho em excesso, esquecemos Deus, e então o apego pelo sexo e o dinheiro aumenta.

Mas não se pode renunciar totalmente à ação. Sua própria natureza o levará a trabalhar, quer você queira quer não. Por isso está prescrito34 que se trabalhe sem apego. Isto é, sem desejar o fruto do trabalho. Por exemplo, pode-se repetir o Nome do Senhor ou celebrar o culto sem desejar ser notado e sem desejar a satisfação de ser um justo.

Esse modo de trabalhar sem apego se chama “caminho da ação” (karma yoga). É muito difícil. Nesta Era de Ferro, o apego vem sozinho. Pensamos agir sem apego e descobrimos que o apego se instalou sem avisar. Vamos supor que eu tenha dado uma grande festa e alimentado muitos pobres e mendigos: eu penso ter agido sem interesse e me surpreendo pensando na opinião das pessoas. Só podemos ser totalmente desinteressados após termos visto Deus.

UM OUVINTE — E então o que devem fazer aqueles que ainda não atingiram Deus? Renunciar à ação?

SR — Na Era de Ferro deve-se seguir o caminho do amor (bhakti yoga) ensinado por Narada. Cantar os Nomes e os louvores de Deus, orar com ardor: “Ó meu Deus, dá-me o conhecimento, dá-me o amor, permite que eu Te veja”. O caminho da ação é muito difícil, por isso também se deve pedir: “Ó Senhor, diminui minhas atividades, faz com que eu não deseje aumentá-las; e as que me deixares, permite pela Tua graça que eu as faça sem apego”. Não podemos cessar toda atividade. Até a meditação é uma forma de atividade. Mas quando chega o Amor, a atividade externa diminui por si mesma, não nos dá mais prazer. Se podemos ter xarope de açúcar-cande, por que escolheríamos melaço?

UM OUVINTE — Os europeus não param de repetir “Trabalhe, trabalhe”. No entanto, o trabalho não é o objetivo da vida humana.

SR — O objetivo da vida é alcançar Deus. O trabalho é apenas um primeiro degrau; não pode ser a meta da vida. Mesmo o trabalho desinteressado é apenas um meio, não a meta. Shombhu35 me dizia: “Abençoe-me para que eu faça um bom uso da minha fortuna, para que eu construa hospitais, dispensários, estradas e poços”. Eu lhe respondi: “Se você conseguir fazer tudo isso de modo desinteressado, será muito bom. Mas é muito difícil. E mesmo que o consiga, na verdade você conseguiu esse nascimento humano para realizar Deus, não para fundar hospitais e dispensários. Imagine que Deus apareça para você e diga: “Pede-me uma graça”; você vai lhe responder: “Dá-me tantos hospitais, tantos dispensários”? Não. Você vai dizer: “Senhor, dá-me uma devoção pura pelos Teus pés de lótus, dá-me Tua visão ininterrupta”. Os hospitais e os dispensários são coisas que passam. Deus é a única realidade, todo o resto é irreal. Quando você O conhecer, compreenderá que só Ele age e que nós somos Seus instrumentos. Então por que esquecê-Lo e deixar-se esmagar pelo acúmulo de trabalho? Aquele que alcança Deus, pode depois fundar tantos hospitais e dispensários quantos desejar. Por isso digo que o trabalho é apenas um começo. O trabalho não é o objetivo da vida. É necessário avançar seguindo uma disciplina espiritual (sadhana). Ao fim desta, descobrimos que Deus é real e todo o resto irreal. O objetivo da vida é encontrar Deus.

Um lenhador36 foi cortar lenha na floresta. De repente, viu um asceta que lhe disse: “Vá mais longe!” Ao voltar para casa, o lenhador se perguntava por que o asceta lhe dissera aquilo. Muito tempo passou. Um dia, aquelas palavras lhe voltaram à memória e ele disse consigo: “Naquela época, o asceta me disse para ir mais longe, eu vou tentar”. Avançou na floresta e encontrou grande quantidade de árvores de sândalo. Todo contente, encheu carroças e mais carroças, vendeu-as no mercado e ficou muito rico. Passaram-se muitos dias novamente e ele pensou: “O santo homem me disse para ir mais longe”. Voltou portanto à floresta e perto do rio encontrou uma mina de prata. Nunca sonhara com nada igual! Explorou a mina e ficou realmente milionário. Muito tempo depois, pensou ainda: “O santo homem não me disse para ir até a mina de prata, mas para ir mais longe”. Então ultrapassou o rio e descobriu uma mina de ouro. Pensou: “Ah! Vejam só o que passava pela cabeça do santo homem!” Muitos dias depois, foi ainda mais longe, descobriu diamantes e rubis e ficou tão rico quanto Kuvera37!

Por isso eu sempre repito: mais um pequeno esforço! Indo mais longe vocês encontrarão muitas coisas ainda melhores. Se repetindo o Nome do Senhor vocês obtiveram um pouco de luz, não pensem que já chega! O trabalho não é o objetivo da vida. Vão mais longe, tentem o trabalho sem apego. Como é muito difícil, tornem-se bhaktas, orem a Deus com fervor: “Ó meu Deus, dá-me a devoção pelos Teus pés de lótus, diminui minha atividade, e a que me deixares, permite que eu a realize sem apego”. Avançando mais ainda, chegamos a Deus, podemos vê-Lo e pouco a pouco podemos até mesmo falar com Ele.

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Desde a morte de Keshob, várias pessoas disputavam o direito de pregar em seu lugar38. O Mestre disse a Protap: “Parece que vocês estão disputando entre si para falar no púlpito e os que estão reivindicando são uns imprestáveis!” Depois, voltou-se para os ouvintes: “Vejam, Protap e Omrito fazem soar conchas poderosas e os outros não têm voz”. Protap disse: “Senhor, pode-se fazer muito barulho com um apito de caroço de manga!”

 

7  SR (a Protap) — Escute, sabemos o que aquelas pessoas do seu Brahmosamaj têm dentro de si ao ouvi-las pregar39. Uma vez me levaram a uma reunião do Hari Sabha40. Um certo pandit Samadhyayi estava pregando e vejam o que ele dizia: “Deus não tem sabor. Devemos dar-Lhe sabor pela doçura de nosso amor e nossa devoção”. Fiquei boquiaberto. Depois lembrei-me de uma história, a da criança41 que dizia: “O estábulo do meu tio está cheio de cavalos”. Cavalos num estábulo! Logo se podia adivinhar que não existia cavalo algum na casa dele!

UM OUVINTE — E talvez nem vacas tampouco! (risos)

SR — Vocês estão vendo, Aquele que é a essência de todo o sabor, qualificado como “sem sabor”! Podia-se perceber imediatamente que ele não tinha a menor idéia do que é Deus.

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SR (a Protap) — Ouça-me: você é um homem instruído, inteligente, você é profundo também. Keshob e você eram como os dois irmãos Gour e Nitai42. Você passou muito tempo em pregações, conferências e discussões. Você realmente gosta de tudo isso? Agora tome toda a sua alma e volte-se para Deus. Mergulhe por um bom tempo!

P — Sim, senhor, é sem dúvida alguma o que eu deveria fazer. Mas preciso trabalhar para defender o nome de Keshob.

SR (rindo) — É verdade o que você está dizendo, você faz tudo isso para defender o nome dele. Mas espere algum tempo e isso vai passar. Ouça uma história43.

Um homem tinha uma casa na montanha. Era apenas uma cabana, mas ele a construíra com muita dificuldade. Um dia houve uma tempestade terrível e a casa começou a ceder. O homem ficou com medo e começou a rezar para o deus dos ventos: “Por favor, poupa minha casa”. Mas o deus não ouviu. A casa estralava por todos os lados. Então o homem lembrou que Hanuman era filho do deus dos ventos e teve uma idéia. Começou a rezar: “Por favor, esta casa é de Hanuman, não a destruas!” Mas a casa continuava a estralar e a balançar. Por mais que ele repetisse que ela era de Hanuman, nada adiantava. Então pensou no amor de Hanuman por Rama e Lakshman, seu irmão, e suplicou: “Deus dos ventos, tem piedade, esta casa é de Lakshman!” Depois, como não funcionava também, chorou: “Não a destruas, é a casa de Rama, a casa de Rama”. Mesmo assim, a cabana veio abaixo e ele pulou fora para salvar sua vida, gritando: “Casa do diabo!”

(Dirigindo-se a Protap) — Não cabe a você defender o nome de Keshob. Vamos ver o que vai acontecer, conforme a vontade de Deus. As coisas vêm por Sua vontade e se vão por Sua vontade. O que você pode fazer? Seu dever é dar toda a sua alma ao Senhor, mergulhar no oceano de Seu Amor.

Tendo dito isso, o Mestre cantou com sua voz incomparável44:

 

Mergulha, mergulha, ó minha mente, no oceano de beleza,

O tesouro do Amor está lá, se desceres até o fundo.

Busca, busca em teu coração, Brindabon lá está escondida.

Acende, acende em ti a lâmpada que não se extingue.

Quem conduzirá teu barco, remando em terra firme?

Ouve, ouve, diz Kubir, segura firme os pés de teu guru!

 

(Dirigindo-se a Protap) — Ouviu essa canção? Já chega de conferências e discussões, é hora de você mergulhar. Aquele que mergulha no oceano não morre: é o oceano da imortalidade. E não vá pensar que é insensatez, não creia que ficamos loucos de tanto pensar em Deus. Eu estava justamente falando para Norendro...

P — Quem é Norendro, senhor?

SR — Um desses rapazes. Eu dizia ao Norendro: “Ouça, Deus é um oceano de alegria. Você não gostaria de mergulhar num oceano de alegria? Imagine que você é uma mosca e que existe à sua frente uma taça de mel. Onde você vai pousar para beber?” Norendro disse: “Na beirada da taça, esticando o pescoço”. Perguntei-lhe por quê. Ele respondeu: “Se eu me aproximar demais, vou me afogar”. Então eu lhe disse: “Meu filho, você não tem nada a recear do Oceano do Ser, Conhecimento e Alegria (Satchidananda). É o oceano da imortalidade. Aquele que se joga nEle não morre, mas, ao contrário, torna-se imortal”. A loucura de Deus é uma loucura repleta de sentido.

“Eu” e “meu”, isto se chama ignorância. As pessoas dizem: “O templo de Kali é obra de Rashmoni”, mas ninguém diz que é a obra de Deus. Dizem: “Fulano e Beltrano fundaram o Brahmosamaj”, mas nunca que a vontade de Deus o criou. Pensar “sou eu que ajo” reflete a ignorância. “Ó Senhor, tu ages e eu não faço nada, Tu és o condutor e eu sou o carro”: isso é o Conhecimento. “Ó meu Deus, não sou nada. Esta igreja não é minha, esse templo de Kali não é meu, tudo é Teu. Esta mulher, estas crianças, esta família, nada me pertence, tudo é Teu”, eis o que se chama Conhecimento.

“Minhas posses, meus negócios”: gostar de tudo isso chama-se maya. Amar sem limites chama-se daya, a compaixão. Amar somente os fiéis do Brahmosamaj, amar apenas a própria família, isso se chama maya. Amar a humanidade inteira, as pessoas de todas as religiões é daya, é amor (bhakti). Quando o homem é atado por maya, vira as costas para Deus. A compaixão, ao contrário, aproxima de Deus. Shukadeva e Narada sempre conservaram essa compaixão45.

 

8  Protap — E seus discípulos, senhor, como estão progredindo espiritualmente?

SR — Eu lhes ensino a permanecer no mundo, mas com a atitude da criada46. Esta diz “nossa casa” ao falar da casa de seu patrão, mas sua própria casa fica no campo. Embora diga “nossa casa” quando mostra a casa do patrão às visitas, ela sabe muito bem que não é dela, e não esquece sua própria casa lá longe. Educa os filhos do patrão e diz: “Meu Hari anda insuportável, meu Hari não gosta de doces”. Mas sabe que Hari é o filho do patrão e não o seu. Digo àqueles que vêm a mim: “Nada o impede de ficar com sua família. Não há mal algum nisso. Mas mantenha a mente voltada para Deus, saiba que a família e a casa não lhe pertencem: tudo pertence a Deus”. Ensino-lhes a permanecer com a mente sempre voltada para os pés de lótus do Senhor, sempre rezando para Ele com saudade.

Voltaram a falar da Inglaterra. Um ouvinte disse a Protap: “Senhor, dizem que lá os sábios (pandits) negam a existência de Deus”.

P — Dizem isso com a boca. Não creio que sejam realmente ateus. A maioria admite que há uma grande força (shakti) operando por detrás das aparências do mundo47.

SR — Bom, se realmente eles aceitam shakti, por que chamá-los de ateus?

P — Além do mais, os pandits europeus aceitam a idéia do moral government48.

A discussão continuou por um bom tempo ainda, depois Protap levantou-se para ir embora.

SR — Acho que eu disse tudo o que queria. Antes de mais nada, acabe com as divergências e as brigas! Ah, mais uma palavra: o sexo e o dinheiro desviam a pessoa de Deus. Não vá por esse lado. Você já notou que todos os homens elogiam a esposa (risos), seja ela boa ou má? Se lhes perguntam “Como é a sua mulher?”, respondem imediatamente: “Ela é muito boa49”.

P — Preciso ir.

E lá se foi Protap, sem ouvir o fim do discurso do Mestre sobre a renúncia ao sexo e ao dinheiro. Aquelas palavras ficaram suspensas, repetidas como um eco pelo murmúrio das folhas, suavemente agitadas pelo vento do sul. As palavras do Mestre pareceram expandir-se e mesclar-se com a natureza, atingindo o coração dos devotos e subindo para o céu azul infinito. Não teriam atingido o coração de Protap também50?

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Um momento depois, o Sr. Monilal Mollik dirigiu-se ao Mestre: “Já está na hora de o senhor voltar para Dakshineswar. Hoje a mãe de Keshob e as outras mulheres de sua casa devem ir vê-lo. Se o senhor não estiver lá, elas vão ficar decepcionadas”.

Fazia alguns meses que Keshob se fora deste mundo, por isso sua venerável mãe, sua esposa e outras mulheres da casa desejavam receber o darshan do Mestre.

SR — Calma! Eu não dormi à noite e não posso me apressar. Não fui eu que lhes disse para irem hoje. Elas podem passear no jardim para passar o tempo; é muito agradável.

O Mestre foi descansar um pouco. Depois preparamo-nos para voltar a Dakshineswar. No momento de partir, o Mestre pensou em abençoar Shurendro e percorreu toda a casa pronunciando o Nome do Senhor em voz baixa. Ao terminar, parou de repente e disse: “Ah, eu não comi nuchis51! Tragam-me um pouco de nuchi”. Comeu um pedacinho de nada e disse: “Isso tem sua razão de ser, sabem? Se eu não percebesse a tempo que não tinha comido nuchi, ia me sentir obrigado a voltar” (risos). Moni Mollik disse: “Que pena! Nós todos voltaríamos com o senhor”. E todo mundo riu.

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DIÁLOGO 14*

VISITA AO PANDIT SHASHADHAR: 25 DE JUNHO DE 1884

 

O pandit Shashadhar é mencionado nas lembranças de R. Tagore** a propósito do célebre romancista Bamkim Chandra Chatterji. Fica evidente a falta de simpatia.

“Naquela época o pandit Sashadhar tornou-se célebre, como porta-voz de uma curiosa iniciativa (...). A ortodoxia hindu tentava reavivar seu prestígio com a ajuda da ciência ocidental. Esse movimento, para o qual a Teosofia preparara o terreno, logo se difundiu por todo o país. (...) Bankim Babu não se identificou absolutamente com esse novo culto. O hinduísmo que ele expunha nunca teve nada a ver com Sashadhar.”

Trata-se pois de uma personalidade conhecida em Calcutá, um pregador bem sucedido do hinduísmo ortodoxo. Depois do encontro relatado aqui, verá Ramakrishna várias vezes e se comportará com humildade tocante em relação a ele. No entanto, não se tornou um discípulo do círculo íntimo e também não parece ter-lhe trazido outros discípulos importantes. Deve ter contribuído para a celebridade final de Ramakrishna, e talvez sua influência sobre Vivekananda tenha sido importante: a analogia entre o hinduísmo e a ciência será um tema (secundário) da prédica deste último.

 

Era o dia da festa do carro1. Na manhã do dia 25 de junho, o Mestre fora convidado para ir à casa da família de Ishan2 em Calcutá. O Mestre ficara sabendo que o pandit Shoshodhor morava na vizinhança, na casa dos Chatterji da College Street. Como desejava muito ver esse pandit, um encontro fora marcado para a tarde.

Por volta das dez horas, o Mestre estava sentado na sala do andar térreo na casa de Ishan, rodeado de devotos. Ishan convidara também alguns brâmanes do bairro, entre os quais um pandit versado no Bhagavata. Hazra e alguns discípulos haviam acompanhado o Mestre desde Dakshineswar. Srish e outros filhos de Ishan também estavam ali. Um dos presentes trazia na testa a marca dos adoradores de Shakti, o que encheu o Mestre de alegria. Ele mostrou a marca vermelha e disse rindo: “Ele está marcado a ferro”.

Pouco tempo depois, Norendro e M chegaram de suas casas em Calcutá, prosternaram-se diante do Mestre e sentaram-se perto dele. O Mestre havia avisado M: “Tal dia irei à casa de Ishan, venha e traga Norendro com você”.

O Mestre disse a M3: “Eu poderia passar na sua casa hoje. Onde é o seu ninho?”

M — Perto da escola, senhor, em Shempukur.

SR — Você não vai à escola hoje?

M — Não, senhor, é o feriado da festa do Carro.

Desde a morte de seu pai, Norendro debatia-se imerso em dificuldades. Ele era o mais velho e tinha irmãos e irmãs muito jovens. O pai deles era jurista e não lhes deixara nada para viver. Norendro esforçava-se para encontrar trabalho a fim de alimentar toda a família. O Mestre sempre falava sobre esse assunto com Ishan e os outros devotos. Ishan era chefe de gabinete nos escritórios financeiros. O Mestre estava constantemente preocupado com Norendro e sua família.

SR (a Norendro) — Falei de você para Ishan. Ele foi me visitar lá em Dakshineswar, não é? Foi por isso que falei com ele sobre você4. Ele tem muitas relações.

Além do Mestre e seus discípulos, Ishan convidara alguns amigos e fora previsto que cantariam. Um tambor duplo, um tamborim, uma tabla e uma tampura esperavam pelos músicos. Eram onze horas e Ishan havia pedido a Norendro para cantar. Haviam colocado ali perto um prato de farinha para secar as mãos dos tocadores de tambor. O Mestre virou-se para Ishan e perguntou: “A farinha está aí? Acho que o almoço vai se atrasar!” Ishan riu e respondeu: “De modo algum!” Outros devotos riram também e o pandit especialista do Bhagavata recitou alguns versos curiosos em sânscrito e explicou-os: “Esses versos dizem que a poesia tem mais encanto que a ciência; quando lemos ou recitamos poesia, a Vedanta, a Samkhya, o Direito, a gramática sânscrita, tudo parece seco. A música tem mais encanto que a poesia: quando podemos cantar, a felicidade do coração se expressa pela voz. Mas basta passar uma mulher bonita que a atenção se desvia da poesia e da música. E quando o estômago está vazio, a fome faz esquecer poesia, música e mulher bonita: a comida é mais importante que tudo o mais.”

O Mestre riu e disse: “Ele é espirituoso!”

Afinaram o tambor. Norendro começou a cantar, mas logo no início do canto o Mestre subiu para descansar num cômodo do andar superior que dava para a rua. M e Srish o acompanharam. Aquele cômodo servia como sala de estar para o Sr. Khetronath Chatterji, o sogro de Ishan.

M apresentou Srish ao Mestre, dizendo: “Ele é muito culto e tem uma natureza muito tranqüila. Estudamos juntos desde a infância. Ele fez Direito.”

SR — É uma pena que um homem destes se torne advogado5!

M — Ele tomou esse rumo sem pensar muito.

SR — Conheço Gonesh, o advogado. De vez em quando ele vai me visitar lá em Dakshineswar com os babus. Panna também, aquele que não é bonito mas canta bem; ele tem muito respeito para comigo. Um homem direito. Muito bem, qual é a sua opinião?

Srish — Deus existe e é Ele que conduz o universo. Mas não somos capazes de ter uma idéia exata de seus atributos. O homem não é capaz de compreendê-los. Sua criação é infinita6.

SR — Quantas árvores no pomar, quantas folhas nas árvores, isso não é da sua conta7. Você entrou neste pomar para comer mangas, então coma! Você obteve um nascimento humano para adquirir devoção e amor. Depois de comer as mangas, pode ir embora. Se você veio para tomar vinho, um copo basta para embriagar-se, para que procurar saber quantos tonéis o vendedor tem? Que necessidade há em conhecer este universo infinito? Mesmo que passasse um milhão de anos nele, você não conseguiria.

O Mestre ficou em silêncio por um momento. Um brâmane de Bhatpara entrou e sentou-se. Então ele continuou:

SR (a M) — O mundo não é absolutamente nada. A família de Ishan é boa. Senão, quando os filhos correm atrás de prostitutas, fumam maconha, bebem, desobedecem, os problemas se acumulam. Na casa dele todos têm a mente voltada para Deus. Sua família o está levando para a luz8; é muito raro. Eu só vi três ou quatro assim. Por aí só vemos discussões e brigas, violência, ou então doença, tristeza, pobreza. Por isso eu pedi: “Mãe, afasta-me de tudo isso”. Veja Norendro! Como está sofrendo! Seu pai morreu, a família não tem o que comer em casa, ele procura trabalho e não acha. O que vai ser?

E você, professor? Antes você estava conosco o tempo todo, mas agora há muito não o vemos mais! Está se entendendo melhor com a esposa, não é? A culpa não é sua! Por toda parte se vê luxúria e dinheiro. Por isso peço: “Mãe, se eu tiver que voltar, não faças de mim um mundano!”

O brâmane disse: “No entanto, as Escrituras elogiam o chefe de família”.

SR — É verdade. Mas como é difícil!

O Mestre voltou-se para M: “Nós somos mal-educados: estão cantando — Norendro está cantando — e nós estamos isolados aqui”.

 

2  Por volta das quatro horas da tarde, o Mestre tomou a carruagem. Sua constituição era muito frágil9, e os devotos cuidavam dele atentamente. Ele teria dificuldade em caminhar uma distância um pouco longa10. Logo que se sentou na carruagem, foi tomado pelo êxtase. A chuva tamborilava na capota, o céu estava coberto pelas nuvens da monção, e a estrada era barrenta. Os discípulos seguiam em fila, chafurdando. Crianças corriam de todos os lados, comemorando a Festa do Carro com fortes assobios em folhas de palmeira.

O veículo parou. O dono da casa e seus parentes vieram receber o Mestre à porta, fizeram-no subir uma escada, entraram numa sala do primeiro andar e o pandit Shoshodhor adiantou-se para saudá-lo. Ele dava a impressão de uma maturidade ainda próxima da juventude. Sua tez era clara, quase dourada, e ele usava um colar de rudrakshas11. Prosternou-se humildemente aos pés do Mestre, depois entraram juntos na sala e sentaram-se. Os devotos chegaram um após o outro e tomaram assento o mais próximo possível, ávidos por ouvir a conversa. Norendro, Rakhal, Ram, M e vários outros estavam ali; Hazra acompanhara o Mestre desde Dakshineswar.

Olhando para o pandit, o Mestre entrara em êxtase. Um momento depois, sem deixar de olhá-lo, sorriu e disse: “Muito bem, muito bem”. Depois perguntou: “Então, que tipo de conferências você dá?”

SH — Procuro explicar as Escrituras, senhor.

SR — Em nossa Era o que convém é a bhakti segundo Narada. Onde encontrar tempo para praticar todos os ritos de que falam as Escrituras? Hoje, quando se tem febre não se usa mais a decocção das dez raízes — o tempo de prepará-la e o doente já está no outro mundo! Agora temos a Fever Mixture. Se você lhes falar para praticarem ritos, diga-lhes para cortar o começo e o fim. Eu digo às pessoas que elas não precisam mais recitar a bênção da água etc. Basta recitar o Gayatri. Se você quiser levar a sério os rituais, então fale apenas para pessoas como Ishan.

Você pode dar mil conferências, e não vai conseguir tirar nada dos mundanos. É possível fincar um prego numa parede de pedra? A pedra resiste e é o prego que fica torcido. Um golpe de espada num crocodilo não lhe faz mal algum. A cabaça de um sadhu pode acompanhá-lo nas quatro peregrinações, mas vai estar tão amarga na volta quanto na ida. Com palestras você não vai mudar os mundanos. Mas você vai perceber isso pouco a pouco. No início o bezerro não sabe ficar de pé: levanta-se e cai várias vezes, e é assim que aprende a andar.

Você não pode saber quem tem um coração de devoto ou de mundano. Não é culpa sua. Quando a tempestade se ergue, não se distingue mais o tamarindo da mangueira12.

Os rituais são necessários enquanto não se alcançou Deus. Até quando se deve celebrar o culto diário? Até o momento em que se chora e estremece ao ouvir o Nome de Deus13. No dia em que você chorar só de pronunciar OM Rama, você terá acabado com os rituais. Então não precisará mais do culto diário.

A flor cai quando vem o fruto. Os rituais são a flor e o amor é o fruto. Quando a nora está grávida14, não pode mais trabalhar muito na casa, e a cada dia sua sogra lhe dá menos o que fazer. No décimo mês ela não faz mais nada: seu filho nasceu e ela o embala em seus braços. O culto diário se perde no Gayatri. Depois o Gayatri se perde no OM. Finalmente o OM se perde no êxtase15(samadhi). Ele soa como um sino: tom t-ooo-mmm. Os yoguis atingem  Brahman Supremo ao procurar captar esse som. E o êxtase dissolve todos os rituais. É assim que os jñanis abandonam o ritual.

 

3  Falando assim do êxtase, o Mestre se transfigurou. Seu rosto pareceu resplandecente, com uma luz do paraíso e ele perdeu toda consciência externa. Parou de falar, seu olhar se tornou fixo. Sem dúvida alguma, estava contemplando o Senhor do Universo. Muito tempo depois, voltou a si e disse como uma criança: “Eu queria água”. Os discípulos sabiam que aquilo indicava o retorno do samadhi.

Em seu êxtase, ele dizia: “Mãe, outrora você me fez visitar Isshor Biddashagor. E eu Te pedi: “Mãe, me faz conhecer um outro pandit”, e foi por isso que me trouxeste aqui”.

Olhou Shoshodhor e disse-lhe: “Meu filho, você precisa se fortalecer, seguir disciplinas e celebrar rituais. Você gostaria de colher os frutos antes de subir na árvore. Mas você faz tudo isso pelo bem das pessoas.”

Assim dizendo, inclinou a cabeça diante de Shoshodhor.

Acrescentou: “Quando me falaram de você, perguntei se você era apenas um simples pandit ou se era dotado também de discernimento e renúncia. Um pandit sem discernimento não merece o nome de pandit.”

Não há problema em ensinar quando se recebeu ordem para fazê-lo. Aquele que recebeu o mandado para ensinar torna-se invencível na discussão. Um raio de luz vindo da Deusa da Sabedoria dá-lhe uma força tal que os maiores pandits ficam como minhocas diante dele.

Quando se acende um lampião as mariposas chegam de todos os lados. Não é preciso chamá-las. Aquele que recebeu a missão de ensinar não precisa chamar as pessoas, colocar cartazes e anunciar que a palestra será realizada a tal hora. Ele adquire tamanho poder de atração que as pessoas vêm sozinhas. Os rajás, os babus acorrem e perguntam-lhe: “O que o senhor deseja? Mangas, guloseimas, dinheiro, xales? Nós estamos lhe oferecendo tudo isso, pegue o que o senhor quiser”. Mas eu lhes digo: “Vão embora, nada disso me atrai, não quero absolutamente nada”.

Por acaso o ímã diz para o ferro “Venha perto de mim”? É inútil: o ferro corre espontaneamente para o ímã.

Pode ser que tais mestres não tenham instrução. Mas não vá pensar que lhes falte o que quer que seja. É possível adquirir o conhecimento nos livros? Aquele que recebeu o mandado para ensinar tem um conhecimento sem limites. Esse conhecimento vem de Deus; é inesgotável.

Na nossa terra os camponeses medem o arroz. Um mede enquanto o outro lhe empurra os montes de arroz. Da mesma forma, a Mãe fica por trás daquele que recebeu o mandado para ensinar e vai lhe empurrando sem cessar montes de sabedoria, que nunca se esgotam.

Nunca falta sabedoria àquele sobre o qual a Mãe lançou Seu olhar. Por isso eu pergunto a você se recebeu um mandado.

HAZRA (ao pandit) — É claro que o senhor tem um mandado, não é?

SH — Mandado? Não, não tenho.

ANFITRIÃO — Mandado ou não, ele é impelido pelo senso do dever.

SR — Sem mandado, as palavras ficam sem efeito. Um dia, um pregador brahmo disse em seu sermão: “Meus irmãos! Um dia eu também já fui um pecador, bebia, fazia isso e mais aquilo”. Ao ouvir isso, as pessoas perguntavam umas às outras: “Como? O que esse sujeito está falando? Ele bebia?” O resultado foi o contrário do que ele esperava. Pessoas de má qualidade não podem ajudar as outras.

Um certo juiz aposentado, de Borishal, me dizia: “Faça-se conhecer um pouco, senhor, e eu também terei prazer em pôr a mão na massa”. Eu lhe respondi: “Ouça esta história16. Em nossa aldeia há uma lagoa chamada Haldarpukur. Algumas pessoas faziam suas necessidades ali nas suas margens e aqueles que chegavam de manhã para banhar-se reclamavam aos berros, mas de nada adiantava: na manhã seguinte era a mesma coisa. Mas um dia veio alguém com o uniforme da Companhia17, colocou uma placa e ... surpresa! Tudo terminou!” Por isso eu lhe digo: se pessoas insignificantes vêm dar conferências, o efeito é nulo. Mas prestamos atenção em quem usa uniforme. Não se pode ensinar sem o mandado de Deus. É preciso ter uma grande força para ensinar. Em Calcutá há muitas pessoas tão musculosas quanto Honuman Puri18; é com elas que você deve lutar. Não com principiantes19.

Chaitanya era um avatar, mas diga-me, o que restou de sua obra? O que será então daqueles que não têm mandado? Por isso lhe digo: mergulhe, deixe-se submergir aos pés de lótus do Senhor.

Dizendo isso, o Mestre foi tomado pelo amor divino e cantou20:

 

Mergulha, mergulha, ó minha mente, no oceano de beleza,

O tesouro de amor estará ali, se desceres até o fundo...

 

Aquele que mergulha nesse oceano não se afoga — é o oceano da imortalidade21. Eu dizia a Norendro22: Deus é um oceano de doçura; você vai mergulhar nesse oceano, não é? Imagine um pires cheio de água com açúcar, você é uma mosca e quer beber, onde vai pousar? Norendro respondeu: “Na beirada do pires, e vou esticar o pescoço para não cair dentro e me afogar”. Eu lhe respondi: “Não, meu filho, é o oceano de Satchidananda, o oceano da imortalidade, não tenha medo de morrer nele”. Os ignorantes dizem que devemos ser moderados em nosso amor e nossa devoção. Mas será possível sentir amor excessivo por Deus? Por isso eu lhe digo: mergulhe no oceano de Satchidananda.

Quando se alcançou Deus não há mais preocupações: o mandado de Deus vem também e pode-se ensinar aos outros.

 

4  Ouça, há uma infinidade de caminhos que levam ao oceano de imortalidade. O que importa é chegar lá, seja qual for o meio. Imagine um lago cheio do licor da imortalidade. Qualquer que seja o meio pelo qual você desça, tornar-se-á imortal. Você pode jogar-se de uma só vez ou descer degrau por degrau e beber um golinho, ou então alguém pode jogar você lá dentro; o resultado é o mesmo. Logo que você prova, fica imortal.

Uma infinidade de caminhos — e entre eles três yogas: jñana, karma, bhakti. Seja qual for o caminho que sigamos com um coração sincero, chegaremos a Deus.

Grosso modo, há três tipos de yoga: jñana, karma, bhakti23. O jñani procura conhecer o Absoluto (Brahman). Afasta tudo o que não é o Absoluto. Discrimina: Brahman é real e o mundo é uma aparência; ele separa o real do irreal. A discriminação só termina quando Brahman é alcançado no êxtase (samadhi). A yoga das obras (karma yoga) consiste em usar a ação externa24 para orientar a mente em direção a Deus. É a que você ensina. Saber praticar com desapego o controle da respiração e a meditação25 também faz parte da yoga da ação. Quando os mundanos se desligam do fruto de suas ações para oferecê-lo a Deus, quando repetem o Nome de Deus (japa) ou celebram o culto (puja), é também a yoga das obras. E o objetivo de tudo isso é também alcançar Deus. A yoga da devoção (bhakti yoga) consiste em orientar a mente para Deus, cantando Seu Nome no kirtan, etc. É o caminho que melhor convém à nossa Era de Ferro (kaliyuga).

A yoga da ação é muito difícil — e antes de mais nada, como eu lhe disse, onde achar tempo? Todos os rituais prescritos pelas Escrituras exigem tempo. Nessa Era as pessoas não vivem muito. Além do mais, é muito difícil desapegar-se, agindo sem desejar os frutos. Só se atinge o verdadeiro desapego depois de ter alcançado Deus, não antes. Você se acha desapegado e de repente o apego lhe cai em cima, não se sabe de onde!

A yoga do conhecimento (jñana yoga) também se tornou muito difícil nesta Era: as pessoas dependem inteiramente do alimento, não vivem muito tempo e não conseguem livrar-se da identificação com seu corpo. Ora, enquanto persiste essa identificação, o conhecimento é impossível. O jñani diz: “Na verdade, eu sou o Absoluto, não sou este corpo, estou além da fome, da doença, das tristezas; do nascimento e da morte; do prazer e da dor”. Se você mantém a consciência do prazer, da dor, etc., como tornar-se um jñani? Um espinho entra em sua mão, o sangue escorre, você sente muita dor. Como afirmar “Não, minha mão não tem nada, está tudo bem”?

Por isso o caminho do amor convém à nossa Era de Ferro. Ele permite chegar a Deus mais facilmente que qualquer outro caminho. É verdade que se realiza Deus pelos caminhos do conhecimento, ou da ação, ou outros ainda, mas com maior dificuldade.

A bhakti yoga é o caminho para a nossa Era. Mas não pense que esse caminho leva a um objetivo diferente do da jñana yoga e da karma yoga. Se alguém segue o caminho do amor e deseja o conhecimento do Absoluto, ora, ao chegar à meta obterá também esse conhecimento. A bondade de Deus tem o poder de dar também o conhecimento de Brahman, se for esta a Sua vontade.

Mas o que o devoto deseja é conhecer Deus Pessoal26 e conversar com Ele. Em geral, o conhecimento de Brahman não lhe interessa. Mas Deus é Aquele que satisfaz os desejos e se estiver satisfeito com Seu adorador, pode dar-lhe toda a Sua glória, não só o amor mas também o conhecimento. Se alguém for a Calcutá, então poderá ver tudo, tanto o Moydan27 quanto o museu e tudo mais. A questão é chegar a Calcutá!

Aquele que realiza a Mãe do Universo obtém o amor pelo conhecimento, o conhecimento pelo amor. Num certo tipo de êxtase (bhava samadhi) ele contempla formas, num outro tipo (nirvikalpa samadhi) contempla o Indivisível Satchidananda. Então o eu, os nomes e as formas desaparecem.

O adorador ora assim: Mãe, tenho muito medo das minhas próprias ações. Se agir por mim mesmo, terei de suportar as conseqüências. Cada uma dessas ações produz seu fruto. Mas agir sem apego é difícil demais e se eu agir com apego vou esquecer-Te. Então suplico-Te que me livres pouco a pouco da ação. Enquanto eu não Te realizar, diminui meu trabalho exterior. O que ficar, permite que eu o faça sem apego, e ao mesmo tempo faz que aumente meu apego por Ti. Enquanto eu não Te realizar, livra-me de buscar novas atividades. E quando eu Te realizar, que possa agir segundo Tua vontade, e não de outra forma28.

 

5 O pandit perguntou: “O senhor fez grandes peregrinações?”

SR — Sim, fui a vários lugares (sorrindo), mas Hazra foi bem longe, e subiu muito. Ele foi a Hrishikesh (risos29). Eu não fui nem tão longe nem tão alto.

Os milhafres e os abutres voam muito alto, mas seu olhar fica à espreita das carniças no chão. Sabe o que são as carniças? O sexo e o dinheiro. E os milhafres e os abutres30 são as pessoas que fazem discursos pretensiosos, que pensam estar realizando quase todas as prescrições das Escrituras mas cuja mente está ligada ao mundo: dinheiro, reputação, honra, conforto. Só cuidam disso.

Já que ficando em casa podemos encontrar o amor de Deus, de que servem as peregrinações? Quando visitei Benares, vi as mesmas árvores que aqui, os tamarindos têm exatamente as mesmas folhas. E se fazendo peregrinação não encontramos o amor de Deus, então, mais uma vez, para quê? O amor é essencial, e todo o mais é secundário.

SH — É realmente verdade, senhor. Partir em peregrinação é como correr em busca de diamantes, deixando de lado a jóia Kaustubha31.

SR — Compreenda bem isso: fale o quanto quiser, nada virá antes da hora. Uma criança dizia à sua mãe antes de ir para a cama: “Mamãe, por favor, acorde-me quando eu precisar”. A mãe lhe respondeu: “Meu filho, não se preocupe. A própria necessidade o acordará” (todos riem). Assim, a saudade de Deus se manifestará quando chegar o momento.

Há três tipos de médicos32. Os da classe inferior tomam o pulso do doente, escrevem a receita e se vão dizendo: “Tome corretamente seus remédios, e boa noite!” Assim, muitos mestres espirituais dão a instrução, mas pouco se importam se esta vai tornar as pessoas melhores ou piores. Isso não lhes diz respeito.

Os da classe intermediária, uma vez dada a receita, insistem para que o doente tome seus remédios e, caso ele não o queira, tentam convencê-lo. Do mesmo modo, há mestres que dão a instrução, depois explicam demoradamente ao discípulo como deve colocá-la em prática. Mas os médicos da classe superior vão ao ponto de usar a força, caso o doente não preste atenção nas palavras amáveis. Se preciso, colocarão o joelho sobre o peito do doente para que engula o remédio. Assim também, em caso de necessidade, os mestres da classe superior usarão da força para fazer o discípulo avançar no caminho para Deus.

SH — O senhor nos disse que não se pode conseguir nada antes do tempo, mas isso não se aplica aos mestres da classe superior33.

SR — Você tem razão. Mas pense no caso em que o doente não quer mesmo o remédio e deixa-o escorrer fora da boca. Então o médico não pode fazer nada, mesmo que seja um médico de primeira classe.

Aquele que dá a instrução deve olhar em que recipiente a coloca. Você não presta atenção nisso. Quando um rapaz vem me visitar, eu lhe faço perguntas: “Como vão indo as coisas em sua casa?” Por exemplo, se ele não tem mais pai, ou se seu pai está abarrotado de dívidas, como é que sua mente poderá voltar-se para Deus34? Está ouvindo, meu caro?

SH — Mas certamente, senhor, estou ouvindo muito bem!

SR — Um dia, soldados sikhs* vieram visitar-me. Estávamos conversando juntos, em frente ao templo de Kali. Um deles disse: “Deus é misericordioso”. Eu pergunto: “É mesmo? E por quê? Como você sabe?” Eles dizem: “Claro! É Ele que nos alimenta e cuida de nós o tempo todo”. Eu lhes respondo: “E daí? Isso é muito natural! Deus é o pai de todos nós. Se o pai não cuidar de seus filhos, quem vai cuidar? Você queria que ele os deixasse para os vizinhos35?”

NOREN — Então não se deve mais dizer que Deus é misericordioso?

SR — Por acaso eu disse isso? Eu quero dizer que Deus é muito íntimo de nós, e não um estranho.

SH — Que palavras inestimáveis!

SR (a Norendro) — Eu ouvi você cantar hoje, mas seu canto não me agradou e então fui lá para cima. Você estava pensando em encontrar trabalho. Seu canto me pareceu insípido.

Norendro enrubesceu e calou-se.

 

6  O Mestre pediu água. Um copo cheio estava à sua frente, mas ele não pôde tomá-lo e mandou vir outro. Depois ficamos sabendo que o primeiro copo havia sido tocado por certa pessoa da casa, dominada pelos sentidos36.

SH (dirigindo-se a Hazra) — O senhor fica com ele dia e noite. Que sorte!

SR (sorrindo) — Hoje é um grande dia para mim. Acabo de ver a lua cheia37 no seu primeiro dia! Sabem por que estou dizendo isso? Um dia Sita disse a Ravana: “Você é a lua cheia e meu Rama é o primeiro dia da lua nova”. Ravana não a compreendeu e se sentiu todo feliz. Mas Sita queria dizer que a lua cheia só pode decrescer, como a prosperidade de Ravana, ao passo que a lua nova fica mais brilhante a cada dia.

O Mestre levantou-se. O pandit Shoshodhor prosternou-se diante dele juntamente com seus amigos que ali ficariam. Depois o Mestre se retirou com seus discípulos.

 

7  O Mestre e os discípulos estavam novamente na casa de Ishan, na sala do térreo. O culto vespertino ainda não havia sido celebrado. Ishan estava ali com seus filhos, alguns devotos haviam voltado também, entre os quais o pandit de Bhatpara, que comentava o Bhagavata.

SR (sorrindo) — Eu disse a Shoshodhor que era preciso subir na árvore antes de colher seus frutos, e também praticar disciplinas antes de se tornar mestre.

ISHAN — Todos se acham capazes de ensinar. Um vaga-lume acreditava iluminar o mundo, mas alguém lhe diz: “Tua luz não clareia, ela ressalta mais ainda a escuridão38”.

SR (sorrindo para Ishan) — Mas não se trata de um simples pandit, ele tem um pouco de discernimento e renúncia.

O pandit de Bhatpara estava sentado ali. Parecia ter quarenta e cinco anos aproximadamente. Olhava fixamente para o Mestre, depois disse-lhe: “O senhor é realmente um mahatma!”

SR — Deixe esse título para Narada, Prahlada ou Shukadeva. Eu sou apenas uma criança. Mas o senhor, por favor, considere o seguinte: alguns colocam o adorador acima do próprio Deus, pois ele caminha levando o Senhor em seu coração (essas palavras alegraram todos os presentes). A Escritura diz: “O devoto pensa que Eu sou pequeno e ele grande”. Assim, Yashoda39 havia amarrado Krishna, pensando: “Quem senão eu é capaz de cuidar bem de Krishna?” Por vezes Deus é o ímã, o adorador é a agulha e Deus atrai o adorador. Mas às vezes o adorador é o ímã, Deus é a agulha e atração desse amor é tão forte que chega a cativar Deus.

O Mestre ia voltar a Dakshineswar. Estava de pé na varanda sul, no térreo. Ishan e os outros estavam de pé também, mas ele continuava a dar muitas instruções a Ishan.

SR — Aquele que consegue orar a Deus no meio das atribulações do mundo é um verdadeiro herói. Deus pensa: “Aqueles que deixaram o mundo não têm mais nada a fazer senão rezar para Mim e Me servir. É normal. Quando não o fazem são desprezados. Mas aquele que ora a Mim no meio do mundo, superando grandes obstáculos como se tivesse de arrastar uma pedra enorme, é um herói.”

O pandit contou uma história do Mahabharata40. Um asceta havia adquirido poderes. Era capaz de reduzir a cinzas um corvo em pleno vôo e se achava muito evoluído. Foi mendigar numa casa. A mulher servia o marido o tempo todo. Quando este voltava para casa, ela lhe lavava os pés e preparava sua refeição, e justamente naquela hora ele estava comendo. O eremita impacientou-se e ameaçou amaldiçoar a casa. A mulher lhe disse lá de dentro: “Queira esperar um pouco, senhor, aqui nós não somos corvos. Primeiro preciso servir meu marido, depois vou cuidar do senhor”. O eremita ficou estupefato por ela saber dos corvos. Ele estava procurando um mestre que tivesse o conhecimento de Brahman. A mulher indicou-lhe um caçador, que matava animais e vendia a carne. O asceta ficou indignado: como um mundano que massacra os animais poderia ter o conhecimento de Brahman? Mas aquele caçador vivia dia e noite na presença de Deus, servia seus velhos pais e possuía o perfeito conhecimento. Ele tornou-se mestre do asceta.

Os devotos levaram o Mestre até o carro. Ele ainda disse a Ishan: “Neste mundo, seja como a formiga, que leva os grãos de açúcar e deixa os grãos de areia. Seja como o cisne, que é capaz de beber somente o leite numa mistura de leite e água41. Seja como o alcatraz, que mergulha mas sacode as penas para livrar-se das gotas d’água. Seja como o peixe que se esconde no lodo, mas cujas escamas permanecem brilhantes”.

O Mestre subiu no carro e partiu para Dakshineswar.

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A grande biografia de Swami Saradananda, Sri Ramakrishna the Great Master, traz à página 622 várias informações interessantes sobre o pandit Shashadhar. Diz em especial que este compreendeu tão bem a lição de Ramakrishna quanto à necessidade de um “mandado” para ensinar, que cessou sua própria prédica e passou a viver na solidão.

O pandit Shashadhar visitou Ramakrishna a 30 de junho em Dakshineswar. O diálogo entre ambos é relatado por M (original bengali III.9, capítulo 25 da tradução inglesa). Aqui também Swami Saradananda traz informações muito interessantes. Ele insiste (p. 632) no receio de “não estar à altura” que dominou o Mestre por ocasião dessa visita e que o obrigou, como ele mesmo conta, a “ir várias vezes para os tamarindos (isto é, o lugar onde se faziam as necessidades), como na vez em que Keshob me havia trazido um inglês (o missionário Joseph Cook, mencionado no Diálogo 1)”. Na verdade, logo que se achou na presença do pandit foi tomado pelo êxtase e começou a falar “sem saber o que dizia”, e quando voltou a si encontrou o pandit em lágrimas.

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DIÁLOGO 15*

SEGUNDA VISITA A SINTHI: 19 DE OUTUBRO DE 1884

 

Os temas e parábolas deste longo diálogo já são conhecidos em sua grande parte, mas estão apresentados de uma forma coerente e cheia de vida, pois os ouvintes são inteligentes e sinceros, e não se limitam a perguntar “por que Kali é negra”. Ver particularmente a discussão final com Vijay sobre a Vedanta e Deus Pessoal.

 

Mais uma vez os devotos do Brahmosamaj reúnem-se para sua grande festa de outono em Sinthi, na magnífica casa de campo do Sr. Benimadhob Pal. Estamos no dia 19 de outubro de 1884, véspera do Kali puja. Foram celebrados serviços religiosos pela manhã. O carro do pamahamsa chega às quatro e meia, pára no parque e é logo cercado pela multidão de devotos. Colocaram o altar do Brahmosamaj no prédio principal, frente ao prédio onde Sri Ramakrishna acaba de sentar-se. Logo a seguir os brahmos se sentam ao seu redor: Bijoy, Troylokko[1] e muitos devotos, entre os quais um juiz auxiliar[2].

Para a festa, tudo estava decorado com estandartes de cores vivas, bandeirinhas por cima da casa e das alamedas, folhagens e flores. O céu azul do outono refletia-se nos reservatórios de águas transparentes. De um lado e outro das alamedas de chão avermelhado de pó de tijolo, as árvores estavam cobertas de flores.

Hoje os devotos iam ouvir proclamar de novo, pela boca do Mestre[3], a mesma mensagem eterna: a dos Vedas, proclamada outrora pelos rishis da Índia; a de Jesus, o supremo sannyasin, o sopro de Deus vindo sob forma humana, comovido pelo sofrimento dos homens, cheio de afeição pelos devotos, a encarnação do Amor, o louco de Deus, ensinando seus doze discípulos cheios de ciúme e desprovidos de compreensão[4]; aquela mesma mensagem proclamada no Bhagavad Guita, no santo campo de batalha de Kurukshetra, pela boca do Senhor Krishna transformado em cocheiro de Arjuna, Satchidananda encarnado para ensinar aos homens, amigo dos humildes, profundo como o céu, proclamando a verdade em resposta ao desejo de Arjuna. Assim[5]:

 

O Onisciente, o Antigo, o Soberano; mais tênue que um átomo,

Sustentáculo do mundo, inconcebível, sol brilhante para além de toda sombra,

Quem dEle se lembra no momento da morte, com a mente firme, cheio de amor, seguindo a yoga,

Fixando a alma entre as sobrancelhas, atinge esse Purusha resplandecente.

Os videntes o chamam Imortal; nEle entram os desapegados;

Ele é o desejado dos castos, que em poucas palavras vou anunciar-te.

 

Ao tomar lugar, o Mestre avistou o belo altar ornamentado do Brahmosamaj, saudou-o imediatamente, inclinando a cabeça. Daquele altar anunciava-se o Senhor, por isso o Mestre o considerava como um lugar santo. Ele dizia que um lugar onde se fala de Deus sem deformá-Lo é como a confluência de todas as peregrinações[6]. Assim como ao ver o palácio da justiça pensamos em processos e juízes, dizia ele, ver a cátedra de onde se fala de Deus atrai nossa atenção para Ele.

O Sr. Troylokko estava cantando. Sri Ramakrishna lhe disse: “Gosto muito da canção Ó Mãe, enlouquece-me com Teu amor. Cante-a para nós!”

 

Ó Mãe, enlouquece-me com Teu amor,

Que necessidade tenho de compreender e raciocinar?

Teu amor é um vinho poderoso, vou perder a cabeça ao tomá-lo,

Tu que roubas as almas, mergulha-me nesse oceano,

No hospício  onde os puseste, alguns choram, alguns riem,

Alguns não param de dançar, cheios de felicidade.

Chaitanya, Moisés, Jesus, estão perdidos em êxtase.

Mãe, quando me deixarás ir ter com eles?

Os loucos entram no paraíso, mestre e discípulos juntos.

Quem compreenderá o jogo do amor?

E Tu mesma não és a coroa da loucura?

Por uma migalha do banquete, Premdas mendiga a Teus pés.

 

Ao ouvir esse canto, Sri Ramakrishna perdeu a consciência e foi tomado por um êxtase muito profundo, penetrando talvez até a Realidade além de todas as realidades. Todas as funções do corpo e da mente pareciam suspensas. Só o corpo estava presente, parecendo uma estátua. Dizem[7] que no momento em que o grande mestre Bhishma agonizava em seu leito de flechas, o dia de lágrimas e luto em que terminou a grande batalha em Kurukshetra, Krishna entrou assim numa profunda meditação, depois num êxtase tão completo que, acreditando-o morto, Yudhisthira e os outros Pandavas começaram a chorar.

 

2  Passado algum tempo, Sri Ramakrishna voltou um pouco a si e começou a falar aos brahmos, mas o estado divino no qual se encontrava era muito intenso e ele falava como um homem embriagado. Esse estado dissipou-se pouco a pouco.

SR (em êxtase) — Mãe, eu não quero a alegria do Absoluto[8]; quero siddhi[9].

(Aos brahmos) — Entendo como siddhi a percepção das coisas, não os oito poderes miraculosos. Em relação a estes, tornar-se muito pequeno, muito leve, etc., Krishna dizia a Arjuna: “Irmão, aquele que possui um único desses oito poderes não me alcançará”. Onde existe poder também existe orgulho, e uma migalha de orgulho impede de conhecer o Senhor.

Alguns distinguem os principiantes (pravartaka), os buscadores de Deus (sadhaka), os perfeitos (siddha) e os totalmente perfeitos (siddha do siddha). À primeira espécie pertencem aqueles que sentem inclinação pelo culto e os rituais: usam uma marca na testa, o rosário, observam todas as formas externas. Os buscadores fizeram progresso, sentem menos a necessidade de parecer. Sentem saudade de Deus, chamam-No incessantemente, repetem Seu Nome e oram com sinceridade. Quem são os perfeitos? Aqueles cujas dúvidas se dissiparam, que sabem que Deus existe e age em tudo; aqueles que viram Deus. E os totalmente perfeitos? Aqueles que não só viram Deus, mas se tornaram Seus familiares, numa relação de pai para filho, de amigo para amigo, de esposo para esposa. Esses podem falar com Ele.

A fé é ter certeza de que a madeira contém fogo[10]. Entre saber isso e acender o fogo, usá-lo para cozinhar arroz, comer esse arroz, ficar saciado e contente, existe uma enorme diferença! Não se atinge o estado divino de uma só vez, assim simplesmente; ele deve crescer pouco a pouco, devagarinho.

Em seu êxtase, acrescentou: “Eles buscam Deus sem forma, Brahman; muito bem”. (Aos brahmos) — Tenham uma fé sólida em Deus, sem forma ou com forma. Desse modo O atingirão, mas não de outro. Firmes na fé sem forma, vocês O realizarão, e na fé com forma também. Passando a geléia de comprido ou de atravessado no pão, o prazer será o mesmo (risos).

Mas é preciso ser perseverante. Orem a Deus com fervor. Sabem como os mundanos falam de Deus? Como crianças que aprenderam a dizer “juro por Deus” ao ouvir as brigas de suas tias. Como um babu elegante que passeia num jardim, de bengala na mão, mascando bétel, colhe uma flor e mostra-a a seus amigos: “Uma obra-prima de Deus! Biutiful!” Mas os estados de espírito dos mundanos são passageiros, como uma gota d’água no ferro em brasa.

Antes de mais nada, é preciso tomar a decisão. É preciso mergulhar. Senão, não encontrarão os tesouros no fundo do oceano. Nada conseguiremos se ficarmos boiando na superfície.

Depois disso, o Mestre cantou, com sua voz admirável, a canção que havia fascinado Keshob e seus discípulos. Parecia que estávamos no paraíso.

 

Mergulha, mergulha, ó minha mente, no oceano de beleza,

O tesouro do Amor está lá, se desceres até o fundo.

Busca, busca em teu coração, Brindabon lá está escondida.

Acende, acende em ti a lâmpada que não se extingue.

Quem conduzirá teu barco, remando em terra firme?

Ouve, ouve, diz Kabir, segura firme os pés de teu guru!

 

3  Então mergulhem! Aprendam a amar a Deus. Mas em seu Brahmosamaj, vocês fazem muita lengalenga com a glória de Deus[11]: “Ah, Senhor, Tu criaste o céu, o imenso oceano, a lua[12], o sol, as estrelas, fizeste tudo”. O que nós temos a ver com isso?

Ao visitar uma rica propriedade, as pessoas exclamam, cheias de admiração: “Que árvores! Tantas flores! Esses espelhos d’água! E os salões na casa, e os quadros nas paredes!” Tudo as deixa boquiabertas. Mas e o dono? Quantos procuram ir ver o babu? Talvez uma ou duas pessoas. Se sentirmos desejo de Deus e O procurarmos, poderemos vê-Lo, conhecê-Lo, falar com Ele. Como estou falando com vocês agora. Podemos! Estou lhes dizendo a verdade. Mas para quem é que eu estou falando? Quem vai acreditar em mim?

Podemos encontrar Deus nas Escrituras? Lendo-as, apenas ficaremos sabendo que Ele existe. Mas para vê-Lo teremos que mergulhar nós mesmos. Ao mergulharmos, nós O conhecemos em primeira mão e a dúvida desaparece. Vocês podem ler mil volumes, recitar de cor mil versículos, se vocês não tiverem vontade e não mergulharem, não conseguirão realizá-Lo. Com a erudição, talvez consigam enganar os homens, mas Deus não.

Com as Escrituras e todos os livros, vocês não chegarão nada. Não se chega a nada sem a Sua graça. Quem recebe a graça pode desejá-Lo, esforçar-se e depois vê-Lo. Com Sua graça vocês poderão vê-Lo; Ele falará com vocês.

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JUIZ — Senhor, Ele concede Sua graça a um e não a outro? Então nós poderíamos acusá-lo de parcialidade.

SR — Então para você um pote e um prato são a mesma coisa[13]? Ishor Biddashagor já me havia dito isso que você está dizendo aí. Ele me perguntou: “Senhor, Deus dá muita força a uma pessoa e pouca a outra? Eu lhe respondi: “Ele está presente em todos os seres, em nós assim como na formiga. Mas com poderes diferentes. Se somos todos iguais, então por que ouvimos falar de Biddashagor e viemos visitá-lo? Será que viemos ver você porque lhe nasceram chifres? Não: você é caridoso, você é um sábio. Possui essas qualidades mais que outros e adquiriu fama. Olhe, existem pessoas capazes de enfrentar cem inimigos e outras que tremem diante de um só”. Se todos os homens têm a mesma força, então por que Keshob se tornou tão célebre?

Lemos no Guita que toda pessoa que se destaca em alguma coisa — inteligência, arte de cantar ou tocar um instrumento, eloqüência, pouco importa — manifesta uma força especial de Deus.

UM BRAHMO (ao juiz) — Por que você discute o que ele está dizendo?

SR — Que espécie de homem você é? Aceitar sem convicção? É mentira, e você próprio me parece um diamante falso.

O pobre brahmo ficou completamente desmontado.

 

4  JUIZ — Senhor, é preciso renunciar ao mundo?

SR — Claro que não. Por que você abandonaria o mundo? Podemos realizá-Lo no mundo. Mas nesse caso é necessário passar algum tempo em solidão, praticando exercícios espirituais. Procure um local retirado, suficientemente próximo da sua casa para poder receber o que comer. Keshob Shen e Protap me diziam: “Senhor, queremos ser como o rei Janaka”. Eu lhes respondia: “Não é com meras palavras que alguém se torna um rei Janaka. O rei Janaka praticou muitas austeridades, de cabeça para baixo[14]”. Vocês precisam se cansar um pouco antes de se tornarem como ele. Vejam um indivíduo que fale inglês fluentemente. Vocês acham que isso lhe aconteceu simplesmente assim? Era talvez filho de pais pobres, trabalhava como cozinheiro, fazia uma refeição sim outra não, estudava com grande dificuldade e agora sabe ler e escrever correntemente.

Eu dizia ainda a Keshob Shen: para curar uma pessoa gravemente enferma é necessário colocá-la em isolamento. Um doente que está delirando, será que vão lhe pôr no nariz um pote cheio d’água e picles de tamarindo? Ele pode sarar comendo isso e bebendo água? Vocês sabem o que é picles de tamarindo? Só de falar fico com água na boca. Para os homens é a atração pelas mulheres[15]. E o cântaro com água são todas as coisas desejáveis. Elas provocam uma sede insaciável! Se o doente ficar nesse quarto, nunca se curará. Vamos afastá-lo do tamarindo e do pote d’água por alguns dias. Ele voltará curado para o seu quarto e não correrá mais perigo. Da mesma forma, poderemos voltar ao mundo sem recear o sexo e o dinheiro. Então seremos realmente como o rei Janaka. Mas nos primeiros tempos precisaremos ser cautelosos e praticar muitos exercícios espirituais na solidão. Colocamos uma cerca ao redor do jovem pipal para evitar que ele seja devorado pelas cabras e as vacas. Quando o tronco engrossa, tiramos a cerca; então a árvore fica tão forte que podemos amarrar-lhe um elefante. Aquele que alcança a devoção aos pés de lótus do Senhor, graças à disciplina espiritual solitária, pode voltar para casa e constituir família; o sexo e o dinheiro não podem mais dominá-lo.

Para fazer a manteiga, deixamos o creme repousar à parte. A mente é o leite, o conhecimento e o amor são a manteiga, e o mundo é como a água. A manteiga flutua sobre a água sem se molhar. Mas quando a mente não está pronta, quando ainda é como leite, mistura-se na água. Não consegue flutuar na superfície.

Para encontrar Deus permanecendo no mundo, deve-se trabalhar com uma mão e com a outra segurar firme nos pés de lótus do Senhor. Assim que o trabalho cessar, deve-se segurá-los com as duas mãos, retirar-se na solidão, pensar apenas nEle e servi-Lo.

JUIZ (todo alegre) — Que belas palavras, senhor! Claro que é necessário praticar na solidão! Mas todos nós esquecemos isso. Cada um deve transformar-se no rei Janaka! (Sri Ramakrishna e os outros riem). Mas ouvi-lo dizer que se pode realizar Deus sem abandonar o mundo, permanecendo em casa! Isso me enche de paz e alegria!

SR — Por que deixar o mundo? Para fazer uma guerra é bom possuir uma fortaleza. Aqui se trata da guerra contra os sentidos, a fome e a sede[16], e é bom enfrentá-la a partir da família. Nessa Era o homem depende da comida. Se não houver o que comer, esqueceremos tudo o mais, inclusive Deus. Um  dia, um homem disse à sua esposa: “Vou deixar você, estou renunciando ao mundo!” Aquela mulher tinha certo conhecimento e disse-lhe: “Para que mendigar de porta em porta? Se o seu estômago não o forçar a visitar dez casas, então vá. Senão, será melhor você se alimentar aqui mesmo”.

É, por que renunciar? Ficar em casa oferece muitas vantagens. Não é preciso se preocupar com comida. Coabitar com a esposa não tem nada de errado também, se isto for necessário. O corpo receberá tudo o que precisar. E em caso de doença podemos receber cuidados.

Janaka, Vyasa, Vashistha voltaram ao mundo com o Conhecimento. Manejavam as duas espadas: a do conhecimento e a da ação.

JUIZ — Senhor, como podemos reconhecer que o Conhecimento foi realizado?

SR — Deus não parece mais afastado. Ele é sentido dentro do coração. Ele está presente em cada um. Aquele que O procura em si mesmo descobre-O.

JUIZ — Senhor, eu sou um pecador. Como posso dizer que Deus está em mim?

SR — Aí está você outra vez com o pecado! Acho que vocês andam imitando os cristãos. Alguém me deu um dos livros deles[17]. Leram um pouco para mim. E só se falava de pecado e mais pecado[18]! Se eu pronunciar o Seu Nome, Deus, Ram, Hari, seja qual for, o pecado desaparecerá. Essa deve ser a sua fé. A fé na força de Seu Nome.

JUIZ — Senhor, como se consegue a fé?

SR — É preciso sentir saudade de Deus. Um dos hinos de voces diz: “Senhor, se não existe amor, de que valem as oferendas e os sacrifícios?” Tente sentir uma atração assim, procure amar a Deus, procure-O em segredo e reze para Ele com fervor, chore diante dEle. As pessoas choram baldes de lágrimas porque a esposa está doente, porque perderam dinheiro, porque estão com problemas no trabalho, mas ache para mim alguém que chore por Deus!

 

5 TROYLOKKO — Elas não têm tempo, senhor! Os ingleses as fazem trabalhar demais!

SR (ao juiz) — Olhe, passe uma procuração para Deus[19]. Quando damos poder a uma pessoa honesta, por acaso ela o usa para fazer o mal? Livre-se de suas preocupações, entregando-Lhe todos os seus negócios. O trabalho que Ele der para você fazer, você fará.

Um gatinho não faz cálculos, ele deixa tudo por conta da mãe. Se ela o coloca na cozinha ele fica ali e só faz “miau, miau”. Se ela o coloca na cama do dono, ele fica ali também. Ele deixa tudo por conta dela.

JUIZ — Nós, que somos chefes de família, qual é o nosso dever? E até quando?

SR — Seus deveres? Criar seus filhos. Prover as necessidades de sua esposa. Cuidar para que ela tenha com o que viver caso você venha a faltar. Não fazer isso é crueldade. Shukadeva e os outros santos eram cheios de misericórdia. Sem misericórdia não merecemos o nome de humano.

JUIZ — Por quanto tempo devemos proteger nossos filhos?

SR — Até a maioridade. Quando um pássaro se torna capaz de encontrar seu alimento sozinho, sua mãe o expulsa a bicadas (risos).

JUIZ — E em relação à esposa?

SR — Enquanto você estiver vivo, deve ensinar-lhe a religião e cuidar de suas necessidades, e se ela for fiel deve lhe deixar o suficiente para viver depois que você se for.

Mas se alguém é tomado pela loucura do Conhecimento, então não tem mais deveres. Se esse alguém se esquecer de pensar no dia seguinte, Deus proverá. Se você for tomado pela loucura de Deus, Ele cuidará de sua família. Quando alguém se vai dessa vida deixando um filho menor de idade, nomeia-se um tutor para cuidar dele. Isso é Direito, você deve saber tudo a respeito.

JUIZ — Sim, senhor.

BIJOY — Ah! Como é bonito! Se alguém pensa unicamente no Senhor, se fica louco por Ele, então o próprio Deus cuida de seu fardo e torna-se o tutor de um filho menor de idade! Ah, quando será que chegaremos a esse estado? Felizes daqueles que o alcançam!

Troylokko — Senhor, podemos mesmo atingir a Verdade no mundo? Podemos realizar Deus?

SR (rindo) — E por que não? Vocês têm o bom e o menos bom, o açúcar e o melado[20] (risos). Vocês vivem no mundo com a mente em Deus constantemente, não é? Por que não poderiam realizá-Lo? É claro que podem!

TROYLOKKO — Através de que sinais se conhece uma pessoa que obteve o Conhecimento permanecendo no mundo?

SR — Ela chora21 e estremece só de ouvir o doce Nome de Deus. Todos os pêlos de seu corpo arrepiam e suas lágrimas escorrem.

Enquanto subsistem o apego pelo mundo, o amor ao sexo e ao dinheiro, a consciência corpórea subsiste também. À medida que o apego diminui, nós nos aproximamos do conhecimento do Eu (Atman) e a distinção entre o Eu e o corpo fica evidente. É como um coco: se o partirmos antes que a água seque, não distinguiremos muito bem a castanha da casca. Mas quando a água já secou, ao sacudir o coco ouvimos a castanha se mexendo.

Do mesmo modo, naquele que alcançou o conhecimento de Deus o corpo e a alma ficam separados, como a castanha do coco seco. Ele pára de considerar o prazer e o sofrimento do corpo como seu próprio prazer e seu próprio sofrimento e não busca mais o conforto físico. Caminha neste mundo como um liberto-vivo (jivanmukta). O devoto de Kali é um liberto-vivo, cheio de felicidade!

Se você vir alguém que só de ouvir o Nome de Deus estremece e chora, saiba que seu apego pelo sexo e o dinheiro se foi e ele realizou Deus. Risque um fósforo seco: imediatamente a chama aparece. Mas se o fósforo estiver molhado, você pode riscá-lo cinqüenta vezes que não conseguirá nada. É só um pedaço de madeira bom para se jogar fora. O gosto pelas coisas do mundo, o gosto pelo sexo e o dinheiro destemperam a alma e ela não sente mais entusiasmo por Deus. Tudo o que fizermos por ela será inútil. Mas o entusiasmo volta assim que a umidade sai da alma.

TROYLOKKO — E de que modo se pode secar o gosto pelo mundo?

SR — Rezando para a Mãe com fervor. Na Sua presença o gosto pelo mundo seca. O apego ao sexo e ao dinheiro desaparece. Devemos realmente considerá-La como nossa própria mãe. Não é uma madrasta, mas sim a nossa verdadeira mãe! Uma criança que deseja alguma coisa pode fazer uma birra. Por exemplo, se quer uma moeda para comprar uma pipa, ela puxa o vestido de sua mãe. Talvez esta esteja conversando com outras jovens senhoras e recuse de início: “Não, papai proibiu, peça para ele; se eu lhe der uma pipa agora você vai fazer bobagem”. Mas se a criança não desiste e começa a chorar, a mãe diz às amigas: “Esperem um pouco, preciso acalmar esse menino”. Então ela pega a chave, abre a caixa, tira uma moeda, dá para a criança e fecha a caixa com um estalo. Vocês também, façam birra com a Mãe e Ela lhes dará o que desejam. Uma vez discuti com alguns sikhs22 que vieram a Dakshineswar. Sentei-me com eles em frente ao templo de Kali. Eles diziam que Deus é misericordioso. Eu lhes pergunto: “Em que Ele é misericordioso?” Eles respondem: “Como, senhor? Ele vela por nós o tempo todo, Ele nos dá os quatro frutos23 da vida e o nosso alimento”. Eu lhes disse: “Quando um homem tem filhos, quem deve se preocupar em alimentá-los? O pai ou os vizinhos?”

JUIZ — Então Deus não é misericordioso, senhor?

SR — Por que você está perguntando isso? O que foi que eu disse? Só uma coisa: que Ele é o mais íntimo de nós e até aceita que sejamos violentos com Ele. Aos que nos são íntimos, podemos até dizer: “Malvado! Me dá isso agora mesmo!”

 

6  SR (ao juiz) — O egoísmo e o orgulho provêm do conhecimento ou da ignorância? Da ignorância, da obscuridade (tamas). Como esse egoísmo forma uma cortina, não podemos ver Deus. Com o eu no chão, acaba-se a amolação. O apego ao eu não faz sentido.  O corpo e seus prazeres são transitórios. Um bêbado viu uma estátua de Durga24 toda enfeitada e disse-Lhe: “Mãe! Eles Te vestem desse jeito, mas daqui a dois dias virão Te pegar para jogar no Ganges” (risos). Por isso lhes digo a todos: seja você juiz ou outra coisa, é uma questão de dois dias. Vocês precisam deixar de lado o egoísmo e o orgulho.

Os três modos25, sattva, rajas e tamas, dão temperamentos diferentes. Os sinais de tamas são o egoísmo, a sonolência, os excessos de alimentos, a luxúria, a cólera etc. Um homem dominado por rajas dá muita importância ao trabalho, usa roupas elegantes, sua alimentação é cuidada, sua casa impecável, com uma bela mobília e o retrato da rainha26 na sala de estar. Quando ele pensa em Deus, coloca roupas de seda para o culto, um rosário de rudrakshas no pescoço, com uma conta de ouro aqui e ali. Gosta de mostrar os templos27 para as visitas, exibindo o piso de mármore branco, o rendilhado de pedra do pavilhão de música. Dá esmolas grandes quando as pessoas o estão olhando. Um homem cheio de sattva é tranqüilo e cortês, suas roupas são mais ou menos, seu salário o suficiente para alimentá-lo. Ele não bajula as pessoas visando proveito. Sua casa precisa de consertos. Ele não se preocupa com o futuro de seus filhos e não busca honrarias. Quando pensa em Deus, dá esmolas ou reza, ninguém nota. Ele medita embaixo do seu mosquiteiro, e as pessoas dizem: “O babu não dorme direito, então se levanta um pouco tarde”. O modo sattva é o último degrau antes de se alcançar o teto. Quando se desenvolve, não estamos longe de realizar Deus: só mais alguns passos. (Dirigindo-se ao juiz) — Você que dizia que os homens são iguais, está vendo como a natureza humana varia?

Existem ainda outras diferenças: há os sempre-livres28, os libertos, os buscadores e os acorrentados. Os sempre-livres, como Narada, Shukadeva, são como grandes navios a vapor, que flutuam sozinhos e transportam multidões de seres, até mesmo elefantes. São como um administrador que o patrão manda para pôr em ordem uma de suas propriedades e depois outra. Há os buscadores, que desejam escapar da rede do mundo pagando até mesmo com sua própria vida: os raros que o conseguem são então os libertos. Por sua vez, os sempre-livres são como peixes espertos que rede alguma consegue apanhar.

Mas os  acorrentados, os mundanos29! Estes não se preocupam com nada. Estão na rede mas não querem saber. Quando se encontram em algum lugar onde se fala de Deus, desviam-se dizendo: “Não é o momento; veremos isso na hora da morte”. Mas quando estão estendidos em seu leito de morte, com a esposa e os filhos ao seu redor, o que é que dizem? “Para que todos esses pavios na lamparina? Vocês estão desperdiçando óleo”. Eles se lamentam: “Ai! Estou perdido! O que vai ser deles?” No entanto, foram eles mesmos que buscaram todo aquele sofrimento, como um camelo cuja boca sangra ao mastigar espinhos, mas que não pára de comê-los. Morre-lhes um filho, eles ficam arrasados pela dor, mas continuam tendo um filho por ano. O casamento da filha os arruinou, mas eles recomeçam, dizendo: “Fazer o quê? É o meu destino!” Um mundano que vai em peregrinação, você acha que ele encontra tempo para se recolher? Não, ele fica correndo daqui e dali, carregando os pacotes da mulher, e dentro do templo agita-se todo para ir buscar água santa30 para os filhos. O mundano tornou-se escravo do estômago, seu e de sua família, e, para ganhar dinheiro, está pronto para bajular, fraudar, mentir. E quando um homem se entrega a Deus e passa seu tempo em meditação, essas pessoas o chamam de louco e desprezam-no. (Ao juiz) — Você vê as diferenças que há entre os homens? Concorda que alguns recebem muito e outros pouco?

Os acorrentados ainda pensam no mundo em seu leito de morte. Externamente eles bem que rezam seu rosário, banham-se no Ganges, vão em peregrinação, mas nada disso é sério. Por dentro o apego continua e mostra-se na hora da morte. Eles falam coisas incoerentes ou então deliram: “Mostarda! Curcuma!” Um papagaio pode repetir o nome de Radha e Krishna, mas quando o gato o pega ele grita em sua própria língua, “quiã, quiã”. Para onde forem teus pensamentos na hora da morte, afirma o Guita, para lá irás. O rei Bharata gostava de um gamo, pensou nele ao morrer e teve que renascer no corpo de um gamo. Quem pensa em Deus na hora da morte vai para Deus e não precisa mais voltar a este mundo.

Um Brahmo — Senhor, vejamos por exemplo um homem que pensou em Deus a vida toda, mas esqueceu-O no momento de sua morte e tem de voltar a este mundo para sentir prazer e dor. De que lhe adiantou pensar em Deus?

SR — Ele pensou em Deus, mas sem fé e por isso esqueceu-O. Ficou preso ao mundo, como um elefante que é levado ao banho mas que depois se cobre de poeira e lama. “A mente é um elefante louco”. Mas se damos um banho no elefante à noite e o recolhemos imediatamente, ele não consegue cobrir-se de poeira e lama. Se um homem à beira da morte pensa em Deus, sua mente fica pura e ele não tem mais oportunidade de se sujar com a luxúria e o dinheiro.

As pessoas não têm fé, por isso existe tanto sofrimento. Dizem que quando vamos banhar-nos no Ganges, nossos pecados nos deixam, mas vão pousar nas árvores, esperando que saiamos da água para pular em nossos ombros (risos). Para pensar em Deus ao deixar o corpo, é preciso ter-se preparado há muito tempo. E de que modo? Pela prática, pela perseverança. Quem tem o hábito de pensar em Deus, fará isso também no dia da morte.

Um Brahmo — Muito bem falado! Muito bonito!

SR — Falei tudo isso de modo desordenado. Mas você sabe qual é o meu modo de pensar? “Eu sou o carro e Tu o condutor; eu sou a ferramenta e Tu o operário; eu sou a casa e Tu a dona-de-casa; eu sou o carro e Tu o engineer. Onde me mandas ir eu vou, como dispões eu ajo”.

 

7  Troylokko cantou de novo, acompanhado por tamborins e sinetas. Sri Ramakrishna foi tomado pelo amor divino e levantou-se para dançar. Em alguns momentos entrava em êxtase no meio da dança e permanecia imóvel, de pé, com os olhos fixos e o rosto sorridente. Então, um de seus discípulos íntimos colocava a mão em seu ombro para apoiá-lo31. Ao sair do êxtase, recomeçava a dançar, desenfreado como um elefante louco. Quando em sua consciência externa, improvisava com o cantor:

 

Dança, Mãe, a alegria dos devotos é sem limites,

Dança Tu mesma e faz-nos dançar!

No lótus de meu coração, dança, ó Mãe,

Dança, enfeitiça o mundo com Tua beleza.

 

Que espetáculo inesquecível! Aquela loucura do amor divino, aquela presença da Mãe, aquela dança graciosa como a de uma criança! Os brahmos dançavam ao redor dele, cativados como o ferro pelo ímã. Todos repetiam os Nomes de Deus como loucos, muitos Lhe davam esse Nome doce de Mãe, chamando “Mãe, Mãe”, como crianças. Alguns choravam.

Ao término do kirtan, todos se sentaram. Perceberam que o ofício vespertino não havia sido celebrado. Os costumes haviam sido esquecidos na alegria do kirtan, e já eram oito horas. O celebrante previsto era Bijoy Goshami.

O Mestre estava sentado de frente para Bijoy. A sogra de Bijoy e algumas outras senhoras do Brahmosamaj desejavam ver o Mestre32 e conversar um pouco com ele. Então ele foi encontrá-las numa outra sala. Voltou algum tempo depois e disse a Bijoy: “Sua sogra tem muita devoção. Ela disse que não quer mais ouvir falar do mundo: uma onda vem, outra onda se vai. Eu lhe disse: ‘Isso não deve importar-lhe, já que você adquiriu conhecimento’ E ela me respondeu: ‘Qual conhecimento? Maya toma duas formas, a ignorância e a sabedoria. Vencer a ignorância não basta; para atingir o verdadeiro conhecimento é preciso ultrapassar a sabedoria também e eu ainda não cheguei a esse ponto. Só repito o que o senhor diz”.

Enquanto falavam assim, chegou o Sr. Beni Pal, que disse a Bijoy: “Senhor, queira subir até o altar. Já estamos muito atrasados33, seria necessário começar o ofício”. Bijoy respondeu: “Senhor, para que precisamos do ofício? O senhor já nos serviu o arroz doce e está querendo passar as lentilhas de novo?”

SR (rindo) — Cada um faz as oferendas a seu modo. Os devotos cheios de sattva oferecem arroz doce, os devotos rajásicos cinqüenta pratos diferentes, os devotos tamásicos sacrificam uma cabra ou outro animal.

 

8  Bijoy estava hesitando muito em subir ao altar.

B — Dê-me sua bênção, senhor, para que eu possa falar no púlpito.

SR — Você precisa perder o hábito de pensar: “Vou ensinar e vocês todos vão me ouvir”. Você precisa livrar-se dessa idéia. A vaidade provém do conhecimento ou da ignorância? Aquele que não tem mais vaidade atinge o conhecimento. A água da chuva escorre dos lugares mais elevados e se acumula nas cavidades.

Enquanto resta orgulho, o conhecimento não é atingido, nem a libertação. Então é preciso voltar e voltar de novo a este mundo. O bezerro diz “, ” (meu, meu34) e é por isso que sofre tanto. Matam o bezerro, fazem calçados com o seu couro, ou então um tambor que é batido com toda força. E finalmente, com suas tripas fazem cordas, que são amarradas no arco do cardador. Então ele pode alcançar a libertação dizendo “tumm, tumm” (Tu, Tu), isto é, “Tu, Senhor, és Tu que ages, eu não faço nada; sou o instrumento e Tu és o operário, Tu és tudo”.

Chefe, pai e mestre, essas três palavras são três espinhos em minha pele35. Eu sou Seu filho, um filho a vida inteira, como é que podem me chamar de pai36. É Deus que age, eu não ajo; Ele é o operário e eu o instrumento. E se alguém me chama de guru eu o chamo de mentiroso, porque não existe outro guru senão Deus, único Satchidananda. Ele é o único recurso, o único piloto para atravessar o oceano do mundo. (Dirigindo-se a Bijoy) — O papel de mestre é muito difícil. Podemos destruir-nos nele. Assim que encontramos dez ouvintes, cruzamos as pernas e dizemos: “Agora eu falo e vocês me escutam”. Isso faz muito mal. Pense, o que as pessoas podem dizer? No máximo “Ah, Bijoy Babu falou bem hoje, ele sabe um bocado!” Nunca pense “Sou eu que falo”. Eu digo para a Mãe: “Eu sou a ferramenta e Tu és o operário, como me manejas eu executo, como me fazes falar eu falo”.

Bijoy (humildemente) — Dê-me sua permissão e eu vou.

SR (sorrindo) — O que você quer que eu lhe diga? O “tio lua37” é tio de todas as crianças. Dirija-se a Ele diretamente. Se você é sincero, não tem nada a recear.

Como Bijoy insistia, Sri Ramakrishna acabou dizendo-lhe: “Então, vá lá! Siga as regras habituais, seja sincero e cheio de amor”.

Bijoy subiu ao púlpito e oficiou segundo as regras do Brahmosamaj. No momento da oração, invocou a Deus chamando-O “Mãe, Mãe” e aquilo tocou profundamente o coração dos ouvintes.

Após o ofício, prepararam-se para a refeição oferecida por Beni Pal. Enrolaram os tapetes, dispuseram as folhas usadas como pratos e os devotos se sentaram. O mestre tomou assento entre eles. Foi servido um delicioso jantar38, oferecido primeiramente ao Senhor, depois consumido como prasad, para grande alegria dos devotos.

 

9  Ao término da refeição, e depois de mastigarem bétel, os participantes prepararam-se para voltar a suas casas. Antes de se separarem, Sri Ramakrishna e Bijoy sentaram-se juntos em um canto; M estava presente.

SR — No momento da prece você chamou Deus como “Mãe, Mãe”. Está muito certo. Dizem que o filho gosta mais da mãe que do pai39. Ele a faz ceder mais facilmente. A mãe de Troylokko40 mandava vir de suas propriedades carros cheios de dinheiro, escoltados por homens de turbante vermelho armados de bastões. Troylokko armava emboscadas com sua gente nas estradas e arrancava-lhes tudo o que queria. Tomava posse das riquezas de sua mãe pela violência. Uma mãe não pode atacar seu filho na justiça.

Bijoy — Se Brahman e a Mãe são Um só, devemos considerá-Lo com forma ou sem forma?

SR — Ele é Brahman e é Kali (o Poder primordial). Enquanto ativo, eu o chamo de Brahman. Enquanto criador, preservador e destruidor, realizando todas as obras, eu o chamo de Shakti. A água imóvel é uma imagem de Brahman, a água agitada pelas ondas, uma imagem de Shakti ou Kali. Ah, Kali! Kali em união com Kala41, Kali com forma e sem forma. Você que acredita em Deus sem forma, pode conceber Kali desse modo. Para quem crê firmemente em Deus e pensa nEle, Ele próprio mostrará sua natureza. Quem conhece Shempukur conhece também Telipada42. Ao conhecê-Lo, você verá que Ele não se reduz a uma mera existência: Ele se aproximará e falará com você — como eu estou falando nesse momento. Tenha fé e alcançará tudo. Mais uma palavra! Você acredita em um Deus sem forma, agarre-se firme a essa fé, mas não tenha uma mente limitada. Nunca diga que Deus pode ser isso e não pode ser aquilo. Diga: “Eu acredito num Deus sem forma; quanto ao que Ele pode ser, só Ele sabe. Eu não sei. Não posso compreendê-Lo. O homem pode compreender a natureza de Deus com uma mente limitada?” Uma jarra de um litro pode conter quatro litros de leite? Por Sua graça Ele permite que O vejamos, mostra-Se a Si mesmo e Se faz conhecer. Sem Sua graça é impossível.

Aquele que é Brahman também é Shakti, também é a Mãe.

 

Sob a forma de uma Mãe, diz Prasad43, é Ele que procuro.

Não conto o segredo diante de toda essa gente, na praça.

Cabe a ti buscar, ó minha mente, eu já te disse o bastante.

 

Quer dizer, para alcançar esse Brahman, a Realidade, eu rezo para Ele chamando-O “Mãe, Mãe”. Mas Ramprasad diz também:

 

Sabendo que Kali e Brahman são Um só, eu ultrapasso a justiça e a injustiça.

 

A injustiça são as más ações; a justiça são as ações recomendadas, como dar esmola, alimentar os brâmanes, etc.

B — Se ultrapassamos “justiça e injustiça”, então o que sobra?

SR — Sobra o amor! Eu dizia para a Mãe44: “Mãe, toma de volta Tua justiça e Tua injustiça, dá-me o amor puro; toma de volta Tua pureza e Teu pecado, dá-me o amor puro; toma de volta Teu conhecimento e Tua ignorância, dá-me o amor puro”. Como você está vendo, até mesmo o conhecimento eu rejeitei. Também rejeitei a fama. Se tiramos a justiça e a injustiça, sobra apenas o amor: sem mácula, desinteressado, sem cálculo.

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Um Brahmo — Entre Ele e Sua Energia (Shakti), que diferença existe?

SR — Uma vez atingido o conhecimento pleno, não há mais diferença. Como a jóia e seu brilho. Quem pensa no brilho da jóia pensa na jóia. Como o leite e sua brancura. Quem pensa num tem que pensar no outro. Mas o conhecimento dessa identidade é o último grau do conhecimento, pressupõe que já atingimos o samadhi e que os vinte e quatro princípios foram ultrapassados. O ego também desapareceu. Impossível descrever o que é o samadhi. Só se pode dar uma vaga idéia. Quando vocês me ouvem repetindo “OM, OM” no final do samadhi, é que eu já desci mil pés! A linguagem não pode explicar Brahman: ali não existe nem “Tu” nem “eu”.

Enquanto existe “eu” e “Tu”, enquanto se pensa “eu rezo, eu medito”, então Deus é “Tu”, uma pessoa, aquele que ouve as preces: “Tu” és o Senhor e “eu” o servidor, Tu és o todo e eu a parte, Tu és a Mãe e eu sou o filho. Tudo isso subsiste. Existe a percepção de uma diferença: Tu és Aquele e eu sou este. Foi o próprio Deus quem quis assim. Todas as diferenças, homem e mulher, luz e sombra, procedem daquela. Enquanto percebermos essa diferença teremos que aceitar Shakti, o Deus pessoal. Ele próprio colocou esse “eu” em cada um de nós. Raciocine quanto quiser, o “eu” não desaparecerá. E Deus revela-Se para nós como pessoal.

Enquanto “eu” estou presente, enquanto a diferença se faz sentir, então Brahman não pode ser dito sem atributos. Precisamos aceitar Brahman com Seus atributos. Os Vedas e os Puranas o chamam Brahman e os Tantras o chamam Kali ou Energia Primordial (Shakti).

B — E de que modo podemos contemplar essa Energia Primordial, ou esse Brahman?

SR — Suplique-lhe com o coração cheio de desejo e chore! Assim sua mente se purificará. Uma água pura reflete a imagem do sol. O eu do devoto é um espelho onde se reflete a Energia Primordial, Brahman com atributos. Mas é preciso esfregar bem o espelho. A imagem não fica nítida se o espelho está sujo.

Enquanto o olhar está voltado para a água do “eu” e o reflexo do sol, ele não vê o sol real. E enquanto não houver outro meio de ver o sol, o sol refletido será cem por cento verdadeiro. Enquanto o eu está presente, o sol refletido é o único sol, a verdade cem por cento. Esse sol refletido é a Energia primordial.

Se você deseja o conhecimento de Brahman, deve passar do sol refletido ao próprio sol. É o Brahman com atributos, Aquele que ouve sua prece, que pode lhe dar o conhecimento do Brahman sem atributos. De fato, Aquele que tem atributos é também sem atributo, Aquele que é a Energia (Shakti) é também o Uno (Brahman). Uma vez adquirido o perfeito conhecimento, não há mais distinção entre eles.

A Mãe pode dar o conhecimento de Brahman, mas em geral o amor puro não deseja o conhecimento.

Existe um outro caminho, que busca o conhecimento e é muito duro. Mas não é o seu. No Brahmosamaj vocês não são buscadores de conhecimento (jñanis), mas adoradores (bhaktas). A crença do jñani é que só Brahman é real; o mundo é irreal, é um sonho. Você e eu estamos no sonho.

Deus é nosso guia interior. Rogue a Ele com uma mente sincera e um coração puro. Ele o fará compreender tudo. Ponha o orgulho de lado e tome refúgio nEle. Você conseguirá tudo.

 

Permanece em teu quarto, ó minha alma,

Não saias para visitar os outros.

Senta-te e fica tranqüila,

O que buscas está em ti mesma.

É a pedra filosofal,

Que satisfará todos os teus desejos.

Todas as jóias estão espalhadas

Diante da porta de teu coração.

 

Quando você se encontra com pessoas que não são de seu grupo, deve amá-las, ser como uma delas. Não tenha maus sentimentos para com elas. “Esta acredita nas imagens, não em Deus sem forma; aquela crê no Deus sem forma e não nas imagens; são hindus, muçulmanos, cristãos”. Não as trate com desprezo, de nariz empinado. Foi Deus que guiou cada uma delas. Foi Ele quem quis que elas fossem muito diferentes, mas que no entanto vivessem umas com as outras. Faça assim tanto quanto possível e ame-as. Depois retire-se em seu templo interior para saborear a paz e a alegria. “Acendendo a lâmpada do conhecimento no templo do coração, contemple o rosto da Mãe”. Só no templo interior é que você poderá descobrir sua verdadeira natureza.

Quando os pastores levam as vacas para pastar, elas formam um único rebanho. Mas à noite cada uma volta ao seu estábulo e então ficam novamente separadas. Por isso está dito “Permanece em teu próprio quarto”.

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Eram seis horas. Sri Ramakrishna preparava-se para entrar no carro com um ou dois discípulos que o serviam. A escuridão era profunda; o carro estava parado sob as árvores. Beni Pal mandara preparar para Ramlal45 luchis e guloseimas, que haviam colocado no carro.

Beni Pal — Ramlal não pôde vir, senhor. Eu gostaria de lhe mandar algo para comer, com sua permissão.

SR (agitado) — Oh babu Beni Pal, não mande tudo isso comigo! Seria um erro de minha parte. Não posso guardar nada. Não me queira mal.

Beni Pal — Muito bem, senhor, como queira. Dê-me sua bênção.

SR — O dia de hoje nos trouxe muita alegria. Veja bem: aquele que sabe fazer do dinheiro seu servo é um homem verdadeiro. Ao contrário, aqueles que servem o dinheiro são animais sob forma humana. Feliz de você, que ofereceu tanta alegria a todos os devotos!

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DIÁLOGO 16*

COM MAHIMACHARAN EM DAKSHINESWAR: 26 DE OUTUBRO DE 1884

 

O principal interlocutor deste diálogo é Mahimacharan, um brâmane erudito e solene, apaixonado pela Vedanta, que encontramos no Diálogo 13. Ramakrishna o trata com uma consideração mesclada de humor. O diálogo é muito vivo, cheio de parábolas e anedotas novas. Também encontramos Hriday, companheiro de juventude de Ramakrishna, e Hazra. M também desempenha um papel menos modesto que de costume: deixa-se levar pela emoção da lembrança, ou acrescenta aqui e ali longos trechos meditativos que nos permitem compreender os sentimentos de um discípulo íntimo — pelo menos uma parte dessas reflexões parece anotada na hora, e não no momento da redação dos Diálogos.

 

1  Vem, irmão! Vamos visitar juntos aquele homem profundo, aquele filho que não conhece nada no mundo a não ser sua Mãe, e que encarnou por amor a todos nós. Ele nos ensinará como resolver os problemas dessa dura vida, sejamos nós monges ou chefes de família. Ele é como uma porta aberta de par em par. Está à nossa espera no templo de Kali em  Dakshineswar. Vem, irmão, vamos juntos1!

Vamos ver esse Sri Ramakrishna de rosto sorridente, cheio de benevolência, possuído dia e noite pela loucura do amor divino, e que só pensa nos outros. Vamos colher junto dele os frutos da existência humana.

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Hoje é domingo, 26 de outubro de 1884. São cerca de duas horas da tarde. O Mestre está em seu quarto em companhia dos discípulos; do lado oeste vê-se a varanda em semi-círculo, depois a alameda e o jardim de flores para a Mãe, e enfim o embarcadouro e o Ganges de águas santas, correndo para o sul.

Chegaram muitos devotos. Hoje a alegria transborda. O amor do Mestre para com Deus manifesta-se em sua felicidade na companhia dos discípulos. Não é estranho? Por que ele só encontra alegria na presença dos devotos? Lá fora está o jardim, as árvores cobertas de folhas2, entre as quais se abrem flores com todos os coloridos; o curso largo do rio, o firmamento resplandecendo com o brilho do sol, a brisa fresca santificada pelas gotas d’água que traz consigo. Tudo isso reflete a alegria do Mestre. Que maravilha! Pode-se realmente dizer que “a própria poeira do chão está cheia de doçura”. Seria bom rolar naquele chão ou ficar ali de pé o dia inteiro contemplando as águas do rio, às escondidas, ou na companhia dos outros devotos. Gostaríamos de abraçar as árvores cobertas de folhas e flores, os arbustos e as trepadeiras daquele jardim, agradecer-lhes como se fossem amigos queridos. O Mestre caminha naquelas alamedas, passeia cada dia entre aquelas árvores, aqueles arbustos e trepadeiras. Seria bom  ficar imóvel a olhar o céu inundado de luz, para perceber como a terra, o ar e o céu flutuam na alegria do amor de Deus.

Os sacerdotes do templo, os serviçais, os guardas na porta, por que nós os olhamos com tanta amizade? Por que nos sentimos aqui, ao final do dia, como na doçura da terra natal? O céu, o Ganges, os templos dos deuses, as alamedas do jardim, as árvores e os arbustos, os empregados do templo, os devotos sentados, tudo isso parece ter sido reunido apenas para Sri Ramakrishna, tornando-se pouco a pouco o próprio Sri Ramakrishna. Como uma casa de bonecas feita de cera: jardim de cera, árvores e folhas de cera, alamedas e personagens de cera, edifícios de cera! Do mesmo modo, aqui tudo é feito de alegria.

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Os Srs. Monomohon e Mohimachoron já chegaram, assim como M; logo virão Ishan, Hridoy e Hazra e muitos outros devotos já se acham presentes. Boloram e Rakhal estão em Brindabon3 no momento. O grupo dos discípulos aumentou com Narayon, Poltu, o pequeno Noren, Tejchondro, Binod, Horipodo4. Baburam5 às vezes fica aqui por vários dias; Ram, Suresh, Kedar, Debendro etc. vêm regularmente, alguns todos os fins de semana, outros a cada quinze dias; Latu está sempre junto do Mestre; Jogin6 reside na vizinhança e vem quase todos os dias. Norendro vem de tempos em tempos e então são momentos de uma alegria especial, como uma grande festa religiosa. Ele canta louvores ao Senhor com sua voz magnífica, o que faz o Mestre entrar em vários estados exaltados (bhava) ou em profundo êxtase (samadhi).

O Mestre desejava ardentemente ter consigo dia e noite um ou outro dos mais jovens, com receio de que sua alma pura fosse capturada nos laços do casamento ou de outras preocupações mundanas. Pedia a Baburam para ficar com ele, o que este fazia muitas vezes. O Sr. Odhor Shen também vinha freqüentemente7.

Os devotos estavam sentados no centro do quarto. O que pensava o Mestre, de pé, olhando-os à maneira de uma criança?

SR (a Monomohon) — Eu só vejo Rama! Vocês estão todos sentados aí e eu estou vendo que Rama tornou-se cada um de vocês.

Mon. — Rama se torna cada um de nós. Mas o senhor mesmo disse: “A água é Deus8, mas existe água para beber, água para lavar o rosto, água para lavar os pratos”.

SR — É verdade, mas vejo que tudo é Ele! Os seres vivos e o mundo.

Enquanto falava, o Mestre se sentara no pequeno leito.

SR (a Monomohon) — Sabe, evitar a menor mentira tornou-se uma mania para mim. Se por acaso digo que não comerei, mesmo se fico com fome não posso mais comer. Se pedi a um dos discípulos para levar meu pote d’água para os tamarindos9 e um outro o faz, é preciso que este o traga de volta e que o primeiro se encarregue da tarefa. É isso mesmo, meu caro. Que posso fazer?

Acontece o mesmo com a renúncia: não posso guardar nada. Nem comida, nem bétel. Não posso caminhar carregando alguma coisa: isso seria acumular bens. Mesmo que fosse terra, eu não poderia!

Alguém entrou e disse: “Senhor, Hridoy10 está no jardim de Jodu Mollik, perto da porta do templo. Pede para lhe falar”. Sri Ramakrishna voltou-se para os devotos e disse-lhes: “Fiquem aí um instante, vou ver Hridoy”. Colocou seus chinelos pretos de verniz e dirigiu-se para a porta leste do jardim, acompanhado apenas por M, seguindo a alameda avermelhada pelo pó de tijolos. Cruzaram com o contador do templo, que se inclinou diante do Mestre, deixaram ao sul a porta do pátio com seus guardas de barbas imponentes, passaram pelo bangalô dos patrões, os pequenos bosques de árvores floridas, o reservatório de água do templo de Kali com suas escadas e os canteiros de tulsi11. Finalmente chegaram à porta leste, com seu guarda. Ali ao lado estava Hridoy em pé, no jardim de Jodu Mallik,.

 

2  Hridoy esperava com as mãos juntas. Assim que avistou o Mestre, prosternou-se estendendo o corpo inteiro no chão da alameda. O Mestre o reergueu. Novamente ele juntou as mãos e pôs-se a chorar como uma criança. Que surpresa! O Mestre também começou a chorar, com as lágrimas escorrendo pelo canto dos olhos. Enxugou-as com a mão. Como podia ele chorar assim? Hridoy o havia tiranizado de tal maneira! E no entanto o Mestre fora ao seu encontro e ali estava chorando!

SR — Então você veio!

H (em pranto) — Vim ver você12. A quem mais eu poderia contar minhas desgraças?

SR (em tom de consolo, sorrindo) — A vida no mundo é assim: desgosto e felicidade. (Mostrando M) — Está vendo, eles vêm aqui para ouvir falar um pouco de Deus e para encontrar paz. E então, quais são suas desgraças?

H (em lágrimas) — Estar sem o senhor, esta é a minha desgraça!

SR — Como? Você mesmo não me disse “Siga seu caminho e eu sigo o meu”?

H — É verdade, eu disse isso. Mas o que é que eu compreendia?

SR — Agora precisamos ir, vamos conversar com tranqüilidade um outro dia. Hoje é domingo e há muita gente. Estão me esperando. Como foi a colheita lá?

H — É, foi mais ou menos.

SR — Bom, agora vá. Volte para me visitar13.

Hridoy prosternou-se novamente estendendo todo o seu corpo no chão. SR retornou pelo mesmo caminho, seguido por M.

SR — Ele me serviu tanto e me fez sofrer tanto! Quando eu estava com disenteria, pele e osso, e não conseguia engolir nada, ele me dizia: “Isso tudo é imaginação sua. Veja como eu como bem”. E sempre repetia: “Idiota! Não fosse eu, sua fama de sadhu cairia por terra!” Um dia ele me atormentou tanto que eu desci para a beira do Ganges e quis ser levado pelas águas.

M ficou estupefato. Derramar lágrimas por um homem daqueles!

SR — Enfim, é bem verdade que ele me serviu com dedicação. Por que lhe aconteceram todas essas desgraças? Ele cuidou de mim como os pais cuidam do filho, nos dias e noites que passei sem dar sinal de vida14, e depois quando ficava doente. Se sobrevivi, foi graças a ele.

Responder o quê? M ficou em silêncio. Pensou que talvez Hridoy não houvesse servido o Mestre de modo desinteressado.

Enquanto falava assim, o Mestre voltara ao seu quarto, onde os devotos o esperavam, e sentou-se de novo no pequeno leito.

 

3  Durante aquele tempo, haviam chegado, além de Mohimachoron e alguns outros, todo um grupo de devotos de Konnogor. Um deles fez algumas perguntas a Sri Ramakrishna.

Visitante — Disseram-nos que o senhor atinge vários êxtases e o samadhi. O senhor pode nos explicar como faz e o que é?

SR — Sri Radha foi arrebatada em êxtase (mahabhava15). Uma de suas amigas ia segurá-la, mas uma outra lhe disse: “Não a toque. Esse corpo é o deleite de Krishna. Krishna em pessoa brinca nesse corpo”. Quem não teve a experiência de Deus não pode compreender o que é o êxtase. Como peixes nadando numa água profunda. De vez em quando um deles aparece e agita a água. Assim é o êxtase, que faz rir e chorar, dançar e cantar. Não se pode ficar muito tempo nesse estado. Se alguém ficar o tempo todo olhando-se no espelho, as pessoas vão pensar que é um louco.

Visitante — Disseram-nos que o senhor tem a visão de Deus. Por favor, mostre-O para nós.

SR — Tudo depende da vontade dEle. O que as pessoas podem fazer? Repetindo o Seu Nome, ora conseguimos aproximar-nos dEle, ora não. Um dia sentimos grande entusiasmo pela meditação e outro dia nada. Para alcançar a visão de Deus é preciso trabalhar muito. Um dia, vi em êxtase a lagoa de Haldarpukur e um camponês entre os jacintos d’água. Quando ele afastava as plantas, via-se a água, e de vez em quando ele pegava um pouco na concha da mão e olhava. Isso me fez compreender que é preciso afastar as plantas para ver a água. Sem trabalho não se consegue a devoção e não se pode ver Deus. O trabalho, isto é, a meditação, a repetição do Nome do Senhor, os cantos de louvor, e também as esmolas e os sacrifícios. Quem quer manteiga precisa primeiro deixar o leite descansar na solidão para obter o creme, depois precisa esforçar-se para batê-lo. Só então terá a manteiga.

Mohima — Como é verdade! Claro que é preciso trabalhar! Trabalhar muito, e quantas Escrituras é necessário ler! As Escrituras são inesgotáveis.

SR — Para que ler tanto as Escrituras? Onde se chega só pelo raciocínio? É melhor você se esforçar para encontrar Deus, praticando com fé as palavras do guru. Se você não tiver guru16, dirija-se a Deus com fervor, rogando-Lhe que Ele mesmo se revele a você.

Com o que podemos comparar a leitura? Com o ruído de um mercado ao longe, como um rumor confuso. Quando nos aproximamos, vemos e ouvimos com clareza: “Comprem minhas maçãs, dois anás17 a libra”, etc. Ou então como o barulho do mar ao longe: ao nos aproximar podemos ver o oceano, os navios, os pássaros planando, as ondas rolando.

Ler livros não dá uma impressão exata. Longe disso. Quando O vemos em pessoa, as Escrituras, a sayence18, tudo isso fica parecendo palha!

O que importa é fazer amizade com o rico babu. Para que você vai se informar sobre seus bens, seus imóveis, suas terras, seus títulos da “Companhia” antes de conhecê-lo? Os guardas de pé na porta não vão contar para você — aliás, eles mesmos não sabem quantos títulos ele tem! Mas vire-se como puder para ficar conhecendo o rico babu, abrindo caminho a cotoveladas, ou pulando por cima do muro, não interessa. Então ele mesmo lhe falará de seus imóveis, seus terrenos e suas ações, e além disso você terá direito ao profundo salam (saudação) dos guardas da porta (risos).

Um devoto — E agora vamos nos virar para encontrar o rico babu! (risos).

SR — É exatamente para isso que trabalhamos! Não adianta nada ficar sentados dizendo “Deus existe”. É preciso conseguir aproximar-se dEle, de qualquer jeito. Vão rezar por Ele na solidão, peçam-Lhe que lhes dê Sua visão, chorem de desejo! Tanta gente faz loucuras pelo sexo e o dinheiro, façam um pouco de loucura por Deus. Que as pessoas digam: “Fulano ficou louco procurando Deus”. Por alguns dias deixem tudo de lado e procurem só por Ele.

Dizer “Deus existe” e ficar sem fazer nada, com o que vamos comparar isso? Na lagoa de Haldarpukur há peixes grandes. Será que vamos pescá-los simplesmente ficando sentados tranqüilos na margem? Não, precisamos preparar a isca e espalhá-la na superfície da lagoa. Então os peixes grandes sobem das profundezas e a água estremece. Como ficamos felizes! Talvez avistemos um peixe enorme, talvez até vejamos um deles pulando e caindo de volta com grande ruído! Então a felicidade é maior ainda.

Colher o creme do leite, depois batê-lo e a manteiga no final.

(A Mohima) — Que tristeza ver isso! “Mostre-me Deus, porque eu quero ficar sentado sossegado. Bata o creme e coloque-me a manteiga na boca”. Bonito, não? “Pesque os peixes e ponha-os na minha mão” (risos).

Um homem queria ver o rei. Havia sete muralhas no palácio. Logo na primeira porta o homem perguntou: “Onde está o rei?” Não! É preciso transpor as sete portas, uma após a outra.

Mohima — E o que se deve fazer para vê-Lo?

SR — Não, não é assim. Não podemos dizer que vamos encontrá-Lo fazendo isso e não fazendo aquilo. O que precisamos é conseguir Sua graça. Precisamos desejá-Lo e trabalhar para alcançá-Lo. O desejo atrai Sua graça.

E também existem as circunstâncias favoráveis. A companhia dos sadhus, a inteligência, um guru experiente. Talvez um irmão mais velho que tomou a família a seu cargo. Talvez uma esposa muito religiosa, de influência iluminadora19. Ou talvez até mesmo a recusa do casamento, dos laços do mundo. Tudo isso são vantagens.

Um homem tinha em sua família um doente grave, a ponto de morrer. Alguém20 lhe disse: “Você precisa de água de chuva caída sob a influência da estrela Svati e misturada com o veneno de uma serpente numa taça feita de um crânio humano. A serpente precisa perseguir uma rã, a rã precisa pular de lado e o veneno precisa cair no crânio. Se você der isso para o doente beber, ele viverá”. O homem procurou num almanaque o ascendente da estrela Svati e saiu no dia propício, com um grande desejo de sucesso. Orava a Deus sem parar: “Senhor, podes reunir todas essas coisas, se for de Tua vontade”. Caminhava olhando de todos os lados e nisso avista no meio do capim um pedaço de crânio humano. Justamente naquele momento o céu se cobre e cai um aguaceiro, enchendo o crânio de água! Então o homem diz: “Ó Gurudeva21, já tenho o crânio e a água da estrela Svati. Senhor, concede-me a graça de encontrar o resto”. Ele espera e vê uma serpente venenosa aproximando-se. O homem sente uma grande alegria, tão intensa que seu coração bate disparado. Reza a Deus com fervor: “Ó Gurudeva, aqui está a serpente, tudo está como esperado! Senhor, concede-me o resto!” Enquanto ainda rezava, eis que surge uma rã; a serpente a persegue e bem no momento em que se lança sobre ela para mordê-la a rã dá um pulo para o lado e o veneno cai no crânio! O homem começa a dançar de alegria, batendo palmas.

Por isso eu lhes digo que com um desejo intenso podemos conseguir tudo.

 

4  Para alcançar Deus, é necessária uma total renúncia interior. Um sadhu não deve acumular: o pássaro e o dervixe não devem guardar nada22. Não posso caminhar carregando alguma coisa, nem mesmo areia para limpar as mãos, nem mesmo um saquinho de bétel para fazer um pan. Quando Hridê me fazia sofrer daquele tanto, pensei em ir embora para Benares. Pensei: “Posso levar uma roupa, mas como levar o dinheiro?” E a viagem para Benares não aconteceu (risos). (A Mohima) — Para vocês é diferente, vocês estão no mundo e têm o direito de ficar com “isso” e “aquilo”, o mundo e a religião.

Mohima — Depois “daquilo”, como ficar com “isso”?

SR — Eu estava à beira do Ganges em frente ao panchavati. Peguei terra numa mão e uma moeda na outra, e pensei: “Que diferença existe entre o dinheiro e o barro? O barro é como o dinheiro e o dinheiro é como o barro”, e joguei tudo junto no Ganges. Depois fiquei preocupado: talvez eu tivesse ofendido Lakshmi23 ao jogar o dinheiro? E se ela me cortasse os suprimentos? Então combinei um jeitinho à moda de Hazra, e disse a Lakshmi: “Mãe, por favor, vem morar no meu coração”. Uma vez alguém praticou austeridade e agradou à Deusa, que lhe concedeu um desejo. Então aquela pessoa disse: “Gostaria de comer numa baixela de ouro com meus netos”. Num único voto obteve a longevidade, a descendência e a riqueza! (risos).

Se vocês tiram “o sexo e o ouro” da mente, esta se volta espontaneamente para Deus e se fixa nEle. Essa mente acorrentada pode ser libertada. Ela mesma se acorrenta ao afastar-se de Deus. Olhem uma balança de ourives: os dois ponteiros ficam juntos, exceto quando o ourives coloca ouro no prato.

Por que a criança recém-nascida grita? “Eu estava tão bem na matriz, lá eu estava em yoga, meditando aos pés de lótus de Deus, e onde estou agora?” Aí está por que ela chora.

Dessa forma, vocês devem renunciar interiormente, ficando no mundo sem se prender a ele.

Mohima — Mas uma vez que a mente subiu a Deus, ela pode descer de volta para  mundo?

SR — E por que não? Aliás, o que significa deixar o mundo? Existe um lugar fora do mundo? Tudo o que eu vejo ao meu redor é a Ayodhya25 de Rama. O próprio mundo é a Ayodhya de Rama. Depois de ter recebido as instruções26 de seu guru, Rama declarou: “Vou deixar o mundo”. Então Dasharatha o enviou a Vashista. Este logo viu que Rama estava tomado por uma renúncia ardente e disse-lhe: “Responda primeiro a minha pergunta, depois você abandonará o mundo. Diga: o mundo fica fora de Deus? Se a resposta for sim, então abandone-o”. Rama ergueu os olhos e viu que o próprio Deus havia tomado a forma dos objetos e dos seres viventes ao seu redor. A realidade de Deus lhes conferia realidade. Rama permaneceu em silêncio.

A vida no mundo é uma guerra contra a luxúria, a cólera e outras paixões, uma guerra contra todo tipo de desejo, uma guerra contra o apego. Para essa guerra é bom ter uma fortaleza. O lar é uma fortaleza: ali você encontra seu alimento, ali você é ajudado de muitos modos por sua esposa. Em nossa Era de Ferro a vida depende do alimento. Ao invés de ir mendigá-la em sete lugares diferentes, você a encontra em um só. Portanto, faça sua guerra a partir de sua fortaleza.

Fiquem no mundo como folhas que serviram como pratos, foram deixadas ali e levadas por uma rajada de vento. O vento levou uma para dentro de casa, outra para um monte de lixo. Deixem-se levar conforme o vento, ora para um lugar bom, ora para um lugar ruim. No momento você está no mundo? Muito bem, fique aí onde está. Tiram você daí para colocá-lo num lugar melhor? Ora, deixe acontecer o que tiver que acontecer.

Já que Deus colocou você no mundo, o que você pode fazer? Ofereça-Lhe tudo. Ofereça-Lhe seu próprio ser. Então não haverá mais desordem nem confusão. Considere como proveniente de Deus tudo o que lhe acontecer. Como a história de “Rama quis assim”.

Alguém — Conte-nos essa história.

SR — Em certa aldeia morava um tecelão. Era um homem muito religioso, todos o respeitavam e estimavam. Quando ia ao mercado vender seu tecido e um cliente lhe perguntava o preço, ele dizia: “Rama quis que eu comprasse o fio por uma rúpia, Rama quis que minhas despesas fossem de quatro anás, Rama quis que eu ganhasse dois anás. Rama quer que eu venda o tecido por uma rúpia e seis anás”. Ninguém nunca tentava pechinchar. Ele tinha muita devoção. Cada noite após o jantar, dirigia-se a um pavilhão diante do templo e ali ficava por muito tempo meditando em Deus e recitando seus louvores.

Uma noite, aquele homem estava sem sono e ali ficou até bem tarde, sentado fumando. No caminho passou um bando de ladrões que iam roubar. Como precisassem de um carregador, arrastaram o homem com eles. Depois cometeram um roubo em uma casa e puseram-lhe sobre a cabeça tudo o que haviam pegado. Nisso chegou a polícia. Os ladrões fugiram e só ficou o tecelão com seu fardo sobre a cabeça. A polícia o prendeu e levou para a cadeia.

No dia seguinte conduziram-no perante o magister saheb. Todas as pessoas da aldeia tinham vindo testemunhar: “Excelência! Este homem não pode ter cometido um roubo! É impossível!” O saheb disse ao tecelão: “Explique-se”. O tecelão disse: “Excelência, aconteceu o seguinte. Rama quis que eu jantasse. Depois do jantar, Rama quis que eu fosse ao pavilhão em frente ao templo. Rama quis que eu meditasse e cantasse louvores até tarde da noite. Rama quis que passasse um bando de ladrões. Rama quis que me arrastassem consigo. Rama quis que arrombassem uma casa. Rama quis que pusessem seu saque sobre minha cabeça. Rama quis que a polícia chegasse. Rama quis que eu fosse detido. Rama quis que me colocassem na prisão. Tudo é a vontade de Rama, e agora Ele quis que eu me encontrasse perante Vossa Excelência”. O saheb viu bem que aquele homem era inocente e deu ordem para que o soltassem. Ao sair dali, o tecelão disse aos seus amigos: “Rama quis que me libertassem”.

Quer vocês sejam chefe de família ou monge, tudo é a vontade de Rama. Então coloquem tudo em Suas mãos e façam seu dever. De qualquer modo, vocês não têm outra escolha.

Um certo empregado foi colocado na cadeia. Depois que o libertaram, ele ficou dando pulos? Não, simplesmente voltou ao seu trabalho.

Um liberto-vivo (jivanmukta) não tem dificuldade para viver no mundo. Ele atingiu o Conhecimento e tanto se lhe dá estar aqui ou acolá. Não importa. O que está aqui também está acolá.

A primeira vez que vi Keshob Shen no jardim, eu disse: “Só ele perdeu a cauda”. Todo mundo caiu na gargalhada, mas Keshob disse: “Não, não riam, ele sabe o que está dizendo, vamos perguntar-lhe”. E eu lhes disse: “Enquanto o girino tem cauda precisa ficar na lagoa, não pode ir para a terra firme. Assim que perde a cauda, sobe para a margem e desde então pode tanto nadar quanto saltitar aqui e ali fora da água. A mesma coisa acontece com o ser humano: a cauda representa a ignorância. Aquele que atingiu o conhecimento pode agir como desejar e voltar ao mundo se o desejar”.

 

5  Mohimachoron e os outros devotos estavam sentados imóveis, cativados pelo ensinamento de Sri Ramakrishna27. Cada um colhia o que podia daquelas jóias multicoloridas na aba de sua roupa, que logo ficava tão cheia que não podia mais ser erguida. Mísero receptáculo! Ali estavam resolvidos os problemas que atormentam os homens desde a criação do mundo. Os pandits mais eruditos, Padmalochan, Narayan Shastri, Gouri, Dayananda Sarasvati28, tinham ficado estupefatos. Quando Dayananda viu Sri Ramakrishna e testemunhou seu êxtase (samadhi), lamentou: “Nós falamos muito dos Vedas e da Vedanta, mas este santo atingiu o objetivo que eles propõem. Os pandits revolvem as Escrituras e só tiram o soro, enquanto os santos como ele comem toda a manteiga”. Mas os pandits à moda inglesa como Keshob Shen também estavam estupefatos e pensavam: “Como é que um homem sem instrução pode falar assim? Isso parece as palavras de Jesus Cristo. Ele fala uma linguagem interiorana, ensina com parábolas e se faz compreender por todos. Homens, mulheres e crianças podem seguir o que ele diz. Do mesmo modo como Jesus era louco por Deus e O chamava seu Pai, este aqui é louco por Deus e O chama Mãe. Sua provisão de sabedoria é inesgotável: embora ele tire baldes cheios do amor de Deus, o nível nunca baixa. Assim como Jesus, ele renunciou a tudo e tem uma fé ardente, por isso suas palavras têm tanta força. Quando as pessoas comuns falam, sua palavra é ineficaz, por falta de renúncia e fé”. Keshob Shen e seus colegas também diziam uns aos outros: “O mais espantoso é que um homem sem instrução possa ser tão aberto. Ele não tem inveja nem hostilidade para com ninguém. Respeita todas as religiões e nunca polemiza”.

Um certo discípulo29 tentou resumir por si mesmo a conversa de hoje entre o Mestre e Mohimachorn: por um lado o Mestre não pede que renunciemos ao mundo. Ao contrário, ele pensa que a família é uma fortaleza a partir da qual se pode combater a luxúria, a cólera etc. Ele disse também: onde você poderia ir que não fizesse parte do mundo? E ainda: quando um empregado é libertado da prisão, ele simplesmente volta ao seu trabalho. Assim, a pessoa pode ser um liberto-vivo (jivanmukta) no seio do mundo. Talvez como Keshob Shen, “o único que se livrou da cauda”? Mas por outro lado ele também disse que precisamos nos retirar na solidão tanto quanto possível, que é necessário cercar a árvore jovem, que precisamos primeiro adquirir conhecimento e amor e só depois poderemos viver no mundo sem perigo.

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Tendo assim falado de Keshob, Sri Ramakrishna evocou outros devotos que viviam no meio do mundo.

SR — Uma vez fui ver Debendro Thakur30 junto com Sejobabu. Eu havia dito a Sejobabu: “Parece que Debendro Thakur pensa em Deus constantemente. Gostaria de conhecê-lo”. Sejobabu me respondeu: “É fácil, baba31: vou levar você à casa dele. Nós éramos da mesma classe no Colégio Hindu e continuamos bons amigos”. Algum tempo depois Sejobabu me levou à casa de Debendro. Ao vê-lo, Debendro disse: “Você mudou muito, criou barriga!” Sejobabu falou de mim: “É um louco por Deus, pensa nEle o tempo todo e queria conhecer você”. Eu queria ver quais eram os sinais dele e disse a Debendro: “Então me mostre seu corpo”. Debendro tirou sua camisa e vi que ele tinha a pele clara semeada de pontinhos vermelhos32. Naquele tempo seus cabelos ainda eram pretos.

À primeira vista notei nele um pouco de vaidade. Mas como poderia ser diferente? Ele tinha sabedoria, riqueza, e fama. Eu perguntei a Sejobabu33: “Na sua opinião o orgulho provém do conhecimento ou da ignorância? Aquele que atingiu o conhecimento pode pensar ‘Eu sou sábio’, ‘Eu sou rico’?

Enquanto falava com Debendro, encontrei-me de repente num certo estado. Então posso ver o que as pessoas são por dentro. Senti o riso subindo. Quando entro nesse estado, toda a sabedoria se torna palha para mim. Os pandits sem renúncia nem discriminação ficam como palha e capim aos meus olhos. Como abutres planando lá no alto, à espreita das carniças no chão.

Vi que Debendro aproveitava dos dois lados ao mesmo tempo: da religião e dos prazeres da vida34. Tinha muitos filhos, bem pequenos ainda. Aliás, o médico acabara de sair. Era um grande jñani e no entanto cuidava de sua família o tempo todo35. Então eu lhe disse: “Você é o rei Janaka de nossa Era36; Jonok aproveitou dos dois lados, bebendo o leite a copos fartos37. Vim vê-lo porque me disseram que você tem a mente voltada para Deus mesmo estando no mundo. Fale-me um pouco de Deus!

Então ele nos falou citando os Vedas38. Comparou o mundo a um candelabro, sobre o qual os homens são como lâmpadas acesas. Meditando aqui no panchavati eu havia tido a mesma visão, e aquilo me fez pensar que Debendro era alguém realmente grande. Pedi-lhe que explicasse. Ele respondeu: “Deus criou o homem a fim de que este manifestasse Sua glória. Senão, quem conheceria este mundo39? Se as lâmpadas estivessem apagadas, tudo ficaria nas trevas, nem se veria o candelabro”.

A conversa continuou por muito tempo, e Debendro ficou satisfeito. Disse-me: “Vamos ter uma festa no Brahmosamaj. O senhor precisa ir”. Eu respondi: “Se Deus quiser que eu vá, irei. Vai depender da minha condição. Nunca sei em que estado Deus me colocará”. Ele disse: “Não, precisa ir, mas não vestido assim: vai precisar colocar um dhoti e um xale. Se você40 for vestido de qualquer jeito as pessoas vão zombar e isso vai me magoar”. Eu respondi: “Isso eu não posso. Não posso me transformar num babu”. Debendro e Sejobabu caíram na risada.

Mas no dia seguinte Debendro escreveu a Sejobabu proibindo-me de ir à festa. Seria errado eu ir sem cobrir um pouco o meu corpo! (risada geral).

SR (a Mohima) — Mais um personagem: o Capitão41. Ele vive no mundo, mas é um grande devoto. Você deveria conhecê-lo. Ele sabe tudo na ponta da língua: os Vedas, a Vedanta, o Bhagavata, o Guita, o Adhyatma Ramayana. Você precisava mesmo falar com ele! Que devoção! Quando ando na rua em Boranogor, ele segura um guarda-sol por sobre minha cabeça. E se desmancha em atenções quando vou à sua casa: me abana, massageia minhas pernas42 e me alimenta com todos os tipos de comida. Um dia entrei em êxtase no lugar onde se fazem as necessidades e ele, que é tão rigoroso em matéria de limpeza, me carregou no colo, dando um salto. E, embora respeite todas as prescrições rituais, fez aquilo sem denotar repulsa!

Ele é muito generoso também. Sustenta seus irmãos que moram em Benares. No começo sua mulher era muito avarenta, não sabia o que fazer com tantas despesas. Ela me contou que ele tem dificuldade em suportar o mundo e freqüentemente lhe fala que gostaria de abandonar tudo.

Ele descende de uma linhagem de devotos. Seu pai era militar. Dizem que no decorrer de uma batalha lhe aconteceu celebrar o puja de Shiva com uma mão, segurando a espada com a outra.

O Capitão é um hindu muito ortodoxo. Quando fui à casa de Keshob Shen, ficou emburrado comigo um mês inteiro. Dizia que Keshob Shen é um pervertido, que come com os ingleses e casou sua filha com um homem de outra casta, e que aliás perdeu sua própria casta. Eu lhe respondi: “Que me importa isso?” Keshob repete o nome de Hari, vou à casa dele para vê-lo e ouvi-lo falar de Deus. Eu como a fruta, não me preocupo com os espinhos. Mas ele não desistiu. Dizia: “Você não precisa ir à casa dele”. Então fiquei um pouco bravo e lhe disse: “Pelo menos não vou à casa dele por dinheiro, mas para ouvir falar de Deus. E você, não vai à casa do vice-rei? São pessoas sem casta43. Explique-me isso. Só então se acalmou44.

Mas ele realmente tem devoção. Quando celebra o puja, ao balançar a chama da cânfora para o arati, ao sentar-se na cadeira do celebrante para recitar os hinos, transforma-se em outro homem, profundamente absorto.

 

6  SR (à Mohima) — Segundo a Vedanta, o mundo é o efeito de maya: uma ilusão à moda dos sonhos. A natureza do Ser Supremo (Paramatman) é a do mero espectador, testemunha dos três estados de vigília, sonho e sono profundo. Tudo isso está de acordo com o seu modo de ver: a vigília e o sonho têm exatamente o mesmo grau de realidade. Aqui está uma história que expressa o seu ponto de vista45.

Em certa aldeia morava um camponês que tinha adquirido o Conhecimento46. Cultivava a terra, tinha uma esposa e lhes veio um filho tardio, chamado Haru. Seu pai e sua mãe o amavam carinhosamente, era a jóia da família. Esse camponês era muito religioso e todos o estimavam na aldeia. Um dia em que estava trabalhando no campo, veio alguém procurá-lo: Haru estava com cólera. Voltou para casa, procurou cuidar dele tão bem quanto possível, mas o menino morreu. Todos da casa ficaram esmagados pela dor, exceto o camponês, que nada deixou transparecer. Disse aos demais: “Para que afligir-se?” E foi trabalhar no campo. Quando retornou, a esposa em lágrimas lhe disse: “Você não tem coração. Nosso filho morreu e você nem está chorando”. O camponês respondeu-lhe calmamente: “Será que devo dizer por quê? Ontem tive um sonho bem longo. Eu era rei e tinha oito filhos. Era muito feliz, depois acordei. E agora isso está me preocupando: por quem devo chorar, pelos oito filhos do meu sonho ou pelo seu Haru que era um só?”

Como o camponês era um jñani, sabia que o estado de vigília é uma ilusão no mesmo grau que o sonho: a única realidade é o Ser (Atman).

Mas eu aceito tudo: o Absoluto (turiya) e também o estado de vigília, o sonho, o sono profundo. Aceito esses três estados. Brahman e maya, os seres vivos, o mundo, aceito tudo. Se não contamos tudo, o peso fica pequeno demais!

Alguém — Como assim, um peso pequeno demais? (risos).

SR — O mundo e os seres vivos são os atributos do Uno (Brahman). Começamos alcançando-O pela eliminação de Seus atributos através da negação. Mas enquanto subsiste a consciência do “eu”, percebemos o Uno que Se transforma no múltiplo: Deus tomando a forma dos vinte e quatro princípios cósmicos.

O valor da fruta da bilva está na polpa, por isso tiramos as sementes e a casca. Mas quando se trata de pesar a fruta da bilva, não basta pesar a polpa: precisamos juntar a polpa, as sementes e a casca. Senão falta peso. A fruta comporta as três partes: polpa, sementes e casca. A mesma coisa é o Absoluto (o Eterno: Nitya) e o Relativo (o Jogo: Lila). Aquele que é o Absoluto é também o Relativo. Eu aceito os dois. Não vou mandar o mundo às favas pela idéia de que ele é uma ilusão (maya). Se fizesse isso, ia me faltar peso.

Mohima — É totalmente satisfatório: do absoluto ao relativo, do relativo ao absoluto.

SR — Os jñanis consideram que tudo é um sonho, mas os bhaktas aceitam tudo. Os jñanis só dão leite gota a gota (risos). Há vários tipos de vaca. As que não aceitam bem a forragem dão leite gota a gota, as que são fáceis e comem de tudo dão leite aos baldes. Os bhaktas que chegaram ao topo aceitam o absoluto e o relativo. Quando sua mente desce do plano do absoluto eles podem desfrutar do relativo. Os bhaktas dão leite aos baldes.

Mohima — É, mas o leite deles pode ter um gosto bem esquisito! (risos).

SR (rindo) — Pode acontecer, mas então é preciso fervê-lo um pouco, colocá-lo no fogo: aqueçam o leite no fogo do conhecimento e ele perderá o gosto (risos).

 

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SR (a Mohima) — Para explicar a sílaba AUM47, o senhor explica os sons A-U-M separadamente?

Mohima — Sim, A representa a criação, U a preservação, M a dissolução.

SR — Eu a compararia ao som de um sino: t-o-o-o-m-m. Ela parte do relativo e se funde no Absoluto. Os três corpos48, grosseiro, sutil e causal, fundem-se na Causa Única. A vigília, o sonho e o sono profundo se fundem no estado de unidade (turiya). Ou então, quando o sino soa é como um objeto caindo no oceano ilimitado e ali criando uma onda. O Absoluto cria então o relativo, da Causa única procedem os três corpos — grosseiro, sutil e causal — do estado de unidade saem a vigília, o sonho e o sono profundo. E a seguir a vaga do oceano ilimitado se enfraquece pouco a pouco. O Absoluto engendra o relativo, depois o relativo retorna ao Absoluto. Por isso uso essa comparação com o som de um sino. Eu mesmo vi tudo isso. Contemplei esse oceano de consciência sem limites. Vi o modo como todo o Jogo saía dali e depois retornava. Milhares de seres emergindo desse oceano espiritual*, desaparecendo de novo em seguida. Não foi nos seus livros que aprendi isso.

Mohima — Aqueles que viram isso não escreveram livros. Como o teriam podido? Estavam perdidos em sua visão. Para escrever é necessário uma mente um tanto calculadora. Junto dos videntes havia pessoas que os ouviam e redigiam as Escrituras.

SR — Os mundanos perguntam por que o apego ao sexo e ao dinheiro se vai com tanta dificuldade. Mas logo que sentimos a bem-aventurança de Brahman, os prazeres dos sentidos, a riqueza e a fama perdem seu atrativo e a mente deixa de correr atrás deles. Quando a mariposa avista uma lâmpada, não volta mais para a escuridão. Diziam a Ravana: “Você tomou múltiplas formas para seduzir Sita, mas não tentou tomar a forma de Rama”. Ele respondeu49: “Quando penso em Rama, até mesmo a condição de Brahma50 me parece insignificante, quanto mais a conquista de uma mulher”.

É por isso que praticamos as disciplinas e os rituais. Quanto mais pensamos em Deus, mais as satisfações que o mundo nos oferece parecem-nos triviais. Se você obtiver a devoção aos pés de lótus de Deus, seu interesse pelos negócios do mundo e o conforto físico diminuirá. Você passará a considerar as mulheres em geral como sua mãe e sua própria esposa como um companheiro no caminho para Deus. As paixões animais se afastarão e você adquirirá o modo divino de ver. Finalmente, perderá o apego pelo mundo e poderá caminhar por ele a seu bel-prazer, como um liberto-vivo (jivanmukta). Foi assim com os discípulos de Chaitanya, que viviam sem apego no meio do mundo.

(Dirigindo-se a Mohima) — Você pode tentar mil raciocínios vedânticos com um verdadeiro devoto, dizer-lhe que o mundo é um sonho, mas não conseguirá arrancar-lhe a devoção. Você pensa que ela se foi e ei-la de volta, como o pilão que causou a ruína dos Yadavas51!

Aquele que nasce sob a influência de Shiva torna-se um jñani, considera o mundo como uma ilusão e Brahman como a única realidade. Aquele que nasce sob a influência de Vishnu52 torna-se um bhakta, busca a devoção estática e não se deixa desviar pelos raciocínios. Pensamos que a devoção tinha desaparecido e, veja só, lá está ela!

 

7  Na varanda a leste do quarto de Sri Ramakrishna estava sentado o Sr. Hazra, praticando japa53 com seu rosário. Tinha cerca de 46 anos e vinha da mesma região que o Mestre. Há muito tentava levar uma vida ascética, ora errando aqui e ali, ora voltando para seu lugar de origem. Lá possuía um pouco de terra, que devia sustentar sua esposa e seus filhos, mas ele tinha também uma dívida de cerca de mil rúpias, que o preocupava constantemente. Procurava alguém que lhe desse o dinheiro, e por isso ia com freqüência a Calcutá visitar Ishan Mukhopadhyay, que o considerava um santo homem e o tratava com muito respeito. O Mestre suportava-o pacientemente, arranjava-lhe uma roupa nova quando a dele ficava rasgada, preocupava-se com sua saúde e esforçava-se para guiá-lo no caminho de Deus. Mas Hazra gostava de altercar, e quase todas as conversas terminavam em brigas. Passava seus dias na varanda com o rosário na mão, praticando o japa.

A venerável mãe do Sr. Hazra ficara doente lá em sua terra. Quando Ramlal estava para voltar de lá, ela lhe suplicara muito, segurando-lhe as mãos, para que informasse ao seu tio (SR) sobre a situação dela, a fim de que ele lhe mandasse de volta seu filho Protap, que ela queria rever pelo menos uma vez. O Mestre disse então a Hazra: “Volte para casa para ver sua mãe. Ela o pediu por meio de Ramlal. Será que alguém pode orar a Deus causando dor à sua própria mãe? Vá vê-la e depois volte”.

Quando os visitantes se espalharam, Mohima foi procurar Hazra e trouxe-o até o Mestre. M testemunhou a cena.

Mohima — Senhor, permita-me intervir por Hazra. Por que o senhor o está mandando de volta à sua casa? Ele não deseja retornar ao mundo.

SR — Sua mãe se queixou para Ramlal. Então eu lhe disse: “Vá ficar com sua mãe por apenas três dias e depois volte”. O que podemos esperar das disciplinas espirituais se estamos afligindo nossa mãe54? Eu tinha pensado em instalar-me em Brindabon55, mas me lembrei de minha mãe. Pensei “Isso vai fazê-la chorar”, e então voltei com Sejobabu. Além do mais, por que um jñani como Hazra temeria o mundo?

Mohima (rindo) — O senhor está zombando!

SR — De forma alguma! Hazra é um verdadeiro jñani. Ele só tem um pouco de apego pelo mundo, alguns filhos e uma dividazinha. Como diz o outro: “Minha tia vai bem, só está um pouco doente” (risos).

Mohima — Senhor, que tipo de conhecimento tem Hazra?

SR — Como? Você não sabe? Todo mundo fala: “O Sr. Hazra, que mora no templo de Rashmoni é alguém”. O nome daqui56 quem é que menciona57? (risos).

Hazra — O senhor é incomparável. Ninguém pode comparar-se ao senhor. Por isso ninguém pode compreendê-lo.

SR — Justamente: ninguém tem o que fazer com o incomparável, então por que mencionar o nome daqui?

Mohima — Senhor! O que é que ele sabe? Diga-lhe o que deve fazer e ele o fará.

SR — Você acha? Pergunte-lhe então. Uma vez ele me disse: “Você e eu não devemos nada um ao outro”.

Mohima — Ele discute sem parar.

SR — Sim, e me dá aulas de vez em quando (risos). Quando discutimos eu me zango com ele. Depois, quando estou na cama, penso no que fui capaz de lhe dizer e isso me atormenta. Levanto-me, vou ao seu encontro e me prosterno diante dele. Isso me dá paz novamente. (A Hazra) — Veja, você fala por exemplo do Ser não-condicionado (Atman), chamando-o “Deus” (Ishvara). O Ser não-condicionado é inativo, testemunha dos três estados: vigília, sonho e sono profundo. Quanto Àquele que age na criação, preservação e destruição, eu O chamo “Deus” (Ishvara). O Ser não-condicionado é como um ímã, que atrai o ponteiro à distância ao mesmo tempo que permanece imóvel.

 

Nas lembranças de Latu (Swami Adbhutananda) está escrito: “Após a morte do Mestre, Hazra imaginou que era um avatar, e maior que o Mestre”.

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A noite estava prestes a cair. O Mestre caminhava de um lado para o outro. Vendo M sentado sozinho a refletir, disse-lhe de repente com afeição: “Você não quer me comprar uma ou duas camisas de algodão, bem simples? Você sabe que eu não uso roupas oferecidas por qualquer pessoa. Tinha pensado em falar com o Capitão, mas é melhor que sejam dadas por você”. M levantou-se e disse: “Com prazer”.

A noite chegou. Queimaram incenso no quarto do Mestre. Este se prosternou diante das imagens do Senhor, recitou mantras58, cantou os Nomes de Deus. Lá fora reinava uma extraordinária beleza. A pura luz da lua iluminava os templos de um lado e do outro a superfície do Ganges, calma e ao mesmo tempo levemente palpitante, como a respiração de uma criança adormecida. A maré estava no seu ponto mais alto. O som do culto vespertino mesclava-se ao murmúrio contínuo das águas, parecia prolongar-se muito longe e esvanecer-se no espaço. O arati estava sendo celebrado nos templos de Kali, no de Vishnu e nos doze pequenos templos de Shiva. Via-se o celebrante sair de um e entrar no seguinte, segurando uma sineta na mão esquerda e uma lamparina na direita, acompanhado de seu acólito, que carregava um gongo. Do pavilhão de música, na extremidade sul do jardim, ouvia-se o doce concerto das ragas vespertinas.

O culto perpétuo da Mãe dispensadora da bem-aventurança (anandamayi) nos lembra que ninguém pode ser privado da bem-aventurança59. Neste mundo de prazer e dor, onde quer que estejamos situados, saibamos que a Mãe do Universo existe, nossa mãe. Então alegremo-nos! O filho da criada pode ser mal alimentado, mal vestido, desabrigado, mas tem uma mãe, e isso põe força em seu peito. Basta que sua mãe o tome nos braços. A Mãe não é uma madrasta, mas nossa verdadeira mãe. Quem quer que eu seja, de onde quer que venha, o que quer que me aconteça, onde quer que vá, a Mãe o sabe. O que quer que eu pense, Ela o sabe, minha Mãe, que me criou dando-me o corpo, a mente, o sopro da vida e a mais profunda alma. Não quero preocupar-me com minha própria vida; a Mãe me fará saber o que eu preciso saber. Ó vós, Seus filhos, alegrai-vos todos!

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Como a lua inundava tudo lá fora com sua luz, o interior do quarto onde estava sentado Sri Ramakrishna irradiava a alegria de Deus. Ishan chegara de Calcutá e a conversa religiosa havia recomeçado. Ishan tinha uma fé intensa. Dizia: “Se eu saio de casa invocando o Nome de Durga, Shiva vem pessoalmente me proteger, com o tridente na mão. Não tenho nada a temer”.

SR (a Ishan) — Você tem uma grande fé. Eu não tenho tanta assim (risos). Quem tem fé alcança Deus.

Ishan — Sim, senhor.

SR — Você pratica todos os rituais: a repetição dos mantras, o culto diário, o jejum, os sacrifícios. Está ótimo. Quando uma pessoa sente uma atração verdadeira por Deus, Deus a faz realizar todas essas obras. Se as realizamos sem apego pelo seu fruto60, elas levam a Deus.

As Escrituras indicam muitas obras a serem realizadas. Isso se chama “devoção prescrita” (vaidhibhakti). Do desejo de Deus, do amor puro, nasce uma forma de devoção mais alta (ragabhakti), à maneira de Prahlada61 . Quando vem essa devoção, as obras prescritas não têm mais razão de ser.

 

9  No final da tarde62 , M perambulava refletindo. A parábola de “Rama quis” agradava-lhe muito. Parecia-lhe que reconciliava as idéias de predestinação63 e livre-arbítrio. “Rama quer” que os ladrões passem; “Rama quer” que eu esteja ali fumando; Rama quer que eu participe de um roubo, que a polícia me prenda. “Rama quer” que eu me torne um sadhu. Certamente posso orar: “Senhor, faz que eu esteja sempre vigilante, Senhor, faz que eu não roube”. Mas também isso, “pela vontade de Rama”: o bem por Sua vontade, o mal por Sua vontade. Mas então existe um problema: por que os maus desejos? Por que desejar cometer um crime? O Mestre responde: Ele criou animais como o tigre, o leão, a serpente; criou árvores venenosas; o mesmo ocorre entre os homens. Por que isso, quem o dirá? Quem pode compreender Deus?

Mas se Deus decide tudo, vai desaparecer o senso das responsabilidades? Não, de forma alguma! Enquanto não temos conhecimento de Deus, enquanto não alcançamos Sua visão, não temos o direito de dizer realmente que tudo se faz “pela vontade de Rama”. Pensamos nisso de vez em quando, depois esquecemos. Ora, enquanto não atingimos a perfeição nessa fé, o mal e o bem subsistem, a responsabilidade subsiste. O Mestre nos ensinou que não se deve dizer “Rama quis” apenas com a boca, com a fé do papagaio. Enquanto eu não realizar Deus, enquanto minha vontade não se tornar uma com a Sua, enquanto eu não puder dizer com sinceridade “Eu sou Teu instrumento”, Deus me deixará a consciência dos pares de opostos, pecado e virtude, puro e impuro, bem e mal. E também subsistirá o senso das responsabilidades. Senão, como o Seu universo poderia continuar?

Quanto mais eu penso nas afirmações do Mestre sobre a devoção, mais o admiro. Ele ouve dizer que Keshob Shen canta o Nome de Deus, medita em Deus, e logo procura conhecê-lo e já o considera como um de seus parentes. Ele rejeita as objeções do Capitão: que Keshob viajou para o estrangeiro, come com os ingleses, infringe as regras de casta, etc. O que diz o Mestre? “Eu como a fruta, não me preocupo com os espinhos”. Ele não faz diferença entre os adoradores do Deus com forma e do Deus sem forma, entre hindus, muçulmanos e cristãos, entre pessoas de alta ou baixa casta. Glória apenas ao amor!

Glória a ti, antes de mais nada, Sri Ramakrishna, tu que és rico de amor! Trouxeste à nossa religião64 esse espírito universal que encarnas pessoalmente. Parece-me que daí vem a atração que exerces. Para ti o amor é a pedra de toque. Acolhes todos os homens religiosos como amigos íntimos: o hindu se vês amor nele, o muçulmano se ele ama Alá, o cristão se ele ama Jesus. Não fazes diferença entre eles, apenas observas se existe amor a Deus. Tu nos ensinaste que todos os rios, nascidos de fontes diferentes, vão lançar-se no mesmo oceano, esse oceano que é a meta de todos nós.

O Mestre não diz que este mundo é um sonho — senão, diz ele, faltaria peso. Ele não é um monista puro, mas antes um partidário do monismo moderado65. Ou seja, o mundo e os seres não são uma ilusão, uma construção da mente. Deus é real, mas o mundo é real, o homem é real. O mundo e os seres vivos são os atributos de Brahman. Para que a fruta da bilva seja completa, é necessário incluir a casca e as sementes.

Ele nos disse como a multidão dos seres nasce do infinito oceano do espírito e a ele retorna. Uma onda erguendo-se desse oceano e nele se perdendo pouco a pouco. As ondas do jogo atravessando o oceano de bem-aventurança. Onde começa esse jogo? Onde termina? A linguagem é incapaz de dizê-lo e a mente de concebê-lo. O homem é pouca coisa, sua inteligência pouca coisa.

Ensinaram-me que os grandes santos contemplaram no samadhi esse eterno Purusha Supremo66 — Hari em pessoa, o mestre desse jogo eterno. Acredito nisso sem hesitar, pois Sri Ramakrishna diz a mesma coisa. Mas não são os nossos olhos de carne que podem ver isso, é um olhar divino, creio eu. O olhar pelo qual os sábios (rishis) de outrora contemplaram o Atman, pelo qual Arjuna viu a forma divina de Vishnu, pelo qual Jesus contemplou seu Pai celestial dia após dia. Como chegar a uma tal visão? Ouvimos o Mestre dizer que podemos obtê-la pela força do anelo. E como vem esse anelo? É necessário renunciar ao mundo? O Mestre hoje nos disse que não.

_______________

 

DIÁLOGO 17*

NA CASA DE BALARAM, DEPOIS NA DE GIRISH:

11 DE MARÇO DE 1885

 

Este diálogo — o último deste volume antes da doença de Ramakrishna, ao qual resta pouco mais de um ano a viver — apresenta também o último de seus grandes discípulos: Girish Chandra Ghosh. Autodidata, escritor e ator célebre, renovador do teatro bengali; libertino, beberrão, afeito ao ópio; violento e provocador, mas generoso; desrespeitoso mas atormentado e sincero, em alguns meses ele acaba de ser revirado pelo avesso como uma luva por Ramakrishna, porque este lhe dedicou uma afeição que Girish jamais conhecera e o aceitou tal como era — sem sequer lhe pedir para renunciar à bebida.

Com a mesma ousadia que o levava a enfrentar a opinião pública, Girish começa a proclamar que o guru que teve o poder de o converter é um Deus, um avatar. No hinduísmo tradicional, aquilo poderia passar1, mas uma parte dos discípulos vem do Brahmosamaj, outros são puros vedantistas, e acontecem discussões apaixonadas2. O chefe da oposição é o iconoclasta Narendranath (Vivekananda), que resistirá quase até a morte do Mestre e manterá sempre uma atitude reservada. Ramakrishna diverte-se contando os pontos e, embora defenda a doutrina ortodoxa do avatar, admira a combatividade de seu bem-amado Naren.

A teologia do avatar é própria do hinduísmo, mas a experiência perturbadora da grande santidade é comum a muitas religiões. A tendência a divinizar um homem — não pela natureza, como aqui, mas de certa forma pela transparência — pode manifestar-se nos personagens do profeta, do santo, do tsaddik, do cheikh. E a oposição a essa idéia traduz-se pelos mesmos argumentos que aqui: a recusa de que o Infinito possa ter uma relação concreta com o finito, a recusa de igualar as palavras de um ser humano à voz das Escrituras ou da Razão, ou simplesmente a recusa de ajoelhar-se diante de um ser criado.

 

Estamos na quarta-feira, 11 de março de 1885. Por volta das dez horas da manhã, Sri Ramakrishna, acompanhado por Latu e alguns outros discípulos, foi à casa de Boloram em Calcutá para receber o prasad de Jagannath.

Que felicidade a tua, Boloram! Mais uma vez tua casa é o palco onde se realiza o jogo do Mestre, essa casa onde ele já capturou tantos novos fiéis nos laços do Amor Divino, onde tantas vezes ele já dançou e cantou na companhia dos devotos. Ela se tornou a casa de Shrivas onde Sri Chaitanya distribuía o amor a quem desejasse. O Mestre amava os devotos como sua família mais próxima. O desejo de atraí-los do meio do mundo atormentava-o no templo de Dakshineswar. Ele não conseguia dormir, chorava e implorava: “Ó Mãe, atrai aqueles que realmente Te amam! Faz com que eu os conheça! Trá-los aqui! Se não for possível, leva-me ao encontro deles!” Era isso que o fazia ir à casa de Boloram em Calcutá. Ele dizia às pessoas: “Boloram é um devoto de Jagannath, a comida que servem na sua casa é muito pura”. Convidava à casa de Boloram os que vinham a ele3, e dizia a Boloram: “Será um grande mérito para você convidar Norendro, Bhobonath, Rakhal e os outros. Não são rapazes comuns, eles nasceram de Deus; alimentá-los é como um sacrifício ao próprio Narayana”. Assim, o primeiro encontro entre o Mestre e o Sr. Girish Gosh ocorrera na casa de Boloram. Lá sempre era organizado um grande kirtan para a festa do Carro. Quantas vezes fora aberta ali, “na praça do mundo, a loja do Amor Divino”?

A escola onde M dava aula não ficava longe. Ele sabia que o Mestre estaria na casa de Boloram a partir das dez da manhã e aproveitou o intervalo do meio-dia para ir até lá receber o seu darshan. Ao chegar, prosternou-se diante dele. O Mestre estava descansando após a refeição, sentado na sala, comendo de vez em quando alguma especiaria ou guloseima de um saquinho. Estava cercado de discípulos bem jovens.

SR (afetuosamente) — Você está aí? Não há aula?

M — Sim, estou vindo da escola. Tive um momento de folga.

Alguém — Não é verdade, senhor! Ele está cabulando aula (risos).

M pensou: “Ai, ele não sabe como está dizendo a verdade! É como se me puxassem para cá”. O Mestre pareceu refletir um pouco, depois fez M sentar bem perto e começou a falar com ele: “Por favor, torça minha toalha e ponha minha camisa para secar. Estou com as pernas doendo. Você não quer me massagear4 um pouco?” M nunca aprendera a fazer aquilo e então o Mestre lhe explicou como era. Imediatamente M iniciou sua tarefa com entusiasmo. Enquanto M lhe massageava as pernas, o Mestre lhe falava de todo tipo coisas.

SR — Sabe o que vem me acontecendo há algum tempo? Não consigo tocar nenhum objeto de metal5. Se o faço, sinto como que a picada de uma aranha-do-mar, o braço inteiro dói. Mas não se pode viver sem pote d’água e então eu pensei que segurando-o com a minha toalha daria certo. Mas assim que pus a mão no pote, senti uma dor terrível como antes. Então orei: “Mãe, perdoa-me desta vez, não o farei mais”.

Ouça, o pequeno Noren6 tem vindo me visitar. Você acha que vão castigá-lo em casa? Ele é muito puro e nunca teve contato com moças.

M — É um “grande receptáculo7”.

SR — Sim, ele diz também que tudo o que ouve a respeito de Deus fica gravado em sua memória. E diz: “Quando era criança eu chorava porque Deus não Se mostrava para mim”.

Falaram longamente do pequeno Noren. Entre os devotos, alguém disse: “Bom, professor, está na hora de voltar para a escola!”

SR — Que horas são?

Alguém — Dez para a uma.

SR — Vá logo, você vai se atrasar. Volte depois do trabalho. (Dirigindo-se a Latu) — Onde está Rakhal?

Latu — Embora! Casa8!

SR — Como? Foi embora sem me dizer nada?

 

2  Terminada a aula, M voltou. O Mestre estava sentado na sala de visitas de Boloram, com os devotos ao seu redor. Sorria docemente e aquele sorriso refletia-se nos outros rostos. Indicou a M, que se prosternava, um lugar ao seu lado. Estavam presentes os senhores Girish Gosh, Suresh Mittro, Boloram, Latu, Chunilal9 e outros.

SR (a Girish) — Você deveria discutir tudo isso com Norendro e ver o que ele diz.

G (sorrindo) — Norendro diz que Deus é infinito. Não temos nem sequer o direito de dizer que o que nos rodeia — os objetos, as pessoas — faz parte de Deus. O infinito não tem partes.

SR — Seja Deus infinito ou tão grande quanto você queira, nada pode impedi-Lo de manifestar sua essência por meio de um homem, se Ele assim o deseja. Nenhuma comparação é capaz de fazer compreender que Deus possa tornar-Se um avatar. É necessário captar isso diretamente, pela experiência. As comparações só podem dar uma vaga idéia. Se você toca os chifres de uma vaca, você tocou a vaca. Da mesma forma, se você toca as patas ou a cauda, você tocou a vaca. Mas para nós o interesse da vaca vem do seu leite e o leite vem do ubre. O avatar é semelhante ao ubre da vaca10. De tempos em tempos Deus vem morar num corpo humano a fim de ensinar aos homens a devoção e o amor extático (prema).

G — Norendro diz que nunca se poderá conceber Deus em sua totalidade, já que Ele é infinito.

SR — Quem está falando de concebê-Lo na totalidade? Não se pode fazer uma idéia dEle, nem em geral nem em particular. Mas que necessidade temos de idéias? Basta conhecê-Lo pela experiência. Quem vê o avatar vê o próprio Deus. Um homem que desce à beira do Ganges e põe a mão na água tem o direito de dizer “Eu toquei o Ganges”, e não precisa levar a mão pelo rio desde Hardwar até a embocadura (risos). Se eu tocar seus pés, será você mesmo que eu terei tocado (risos). Até mesmo o oceano, se eu puser a mão nele vou poder dizer “Toquei o oceano”. O elemento “fogo” está presente por toda parte, porém está mais presente na lenha11.

G (sorrindo) — Estou em busca do fogo, vou procurá-lo onde ele existir.

SR (sorrindo) — Devemos buscar o elemento “fogo” na lenha e o elemento “Deus” no homem. O homem é a mais alta manifestação de Deus. Se você vê um homem louco por Deus, transbordando de amor extático, então você pode estar certo de que Deus desceu12 nesse homem. (Olhando M) — Ele está por toda parte, mas sua Força (Shakti) manifesta-se muito aqui e pouco ali. É no avatar que Ela Se manifesta mais. Em certos casos ela aparece em estado puro. É a Energia de Deus (Shakti) que Se manifesta no avatar.

G — Norendro diz que Ele está “além da palavra e do pensamento13”.

SR — Não. É verdade que Ele está fora do alcance desta mente, mas a mente purificada pode atingi-Lo, fora do alcance desta inteligência14, mas a inteligência purificada pode alcançá-Lo. Quando a apego pelo sexo e o dinheiro se vai, a mente (manas) e a inteligência (buddhi) tornam-se puros. Mente e inteligência se unem e tornam-se capazes de captá-Lo (apreendê-Lo). Os videntes (rishis) não o captaram? Aquele que é Consciência fez-Se presente em suas consciências.

G — O senhor me deu razão! Ganhei de Norendro!

SR — Não. Norendro me disse: “Girish Ghosh tem tanta fé no avatar! Não quero discutir com ele. Não se deve abalar uma fé como aquela”.

G — Senhor! Estamos todos aqui discutindo e nos inflamando, só o professor está de boca fechada. Em que estará pensando? Hein? O que o senhor acha?

SR — Como diz o provérbio, “devemos desconfiar da língua que corre, da boca costurada, do manjericão15 na orelha, do véu muito longo, da água coberta de lodo” (risos). Ah, mas ele não é assim, é só um homem sério! (risos).

G — Explique-nos esse provérbio, senhor!

SR — São coisas perigosas: a língua que corre e procura enganar, o silêncio sob o qual se escondem pensamentos tais que um mergulhador não encontraria o fundo; o homem que quer fazer acreditar que é religioso e enfia um ramo de manjericão sagrado na orelha; a mulher que quer passar por casta e se enrola num véu comprido; a água escondida pelo capim, que é gelada e dá tifo (risos).

Chunilal — As pessoas falam dele (isto é, de M). O jovem Noren e Baburam são seus alunos, e também Narayon, Poltu, Purno, Tejchondro16, todos alunos seus. Dizem que ele os traz aqui e que depois negligenciam seus estudos. As pessoas dizem que é culpa dele.

SR — Mas quem vai acreditar nelas?

Enquanto se falava justamente disso, Narayon entrou e se prosternou diante do Mestre. Tinha aproximadamente dezessete anos, tez clara. Sri Ramakrishna tinha muita afeição por ele, gostava de vê-lo e dar-lhe de comer17. Em Dakshineswar chegava a chorar ao pensar nele; em Narayon ele realmente via a presença de Narayana.

G — Ora, é você? Quem o informou? Foi o professor outra vez que contou o segredo (riso geral).

SR (rindo) — Chega, já basta! Já falaram bastante mal dele!

______________

 

A conversa girou em torno de Norendro.

Alguém — Como é possível que ele não esteja conosco?

SR — “Quando seu estômago geme, Kalidasa esquece o sânscrito” (risos).

Boloram — Ele vai muito à casa de Onnoda Guho, o filho de Shiv Guho.

SR — É verdade. Norendro, Onnoda e outros vão à casa de um certo funcionário, que organiza serviços do Brahmosamaj.

Alguém — Ele (o funcionário) se chama Tarapod.

Boloram (sorrindo) — Os brâmanes dizem que Onnoda Guho é muito arrogante.

SR — Se a gente tivesse que acreditar em tudo o que os brâmanes contam! Para eles os que fazem oferendas são bonzinhos e os outros maus. Eu conheço Onnoda: é uma pessoa de bem18.

 

3  O Mestre desejou ouvir cânticos. A sala se enchera de pessoas que o fixavam, ávidas por vê-lo e ouvi-lo. O Sr. Tarapod começou a cantar19:

 

Ó Keshava, concede Tua graça

A Teus servidores aqui na terra,

Tu que vagueias pelos bosques,

Madhava que tocas flauta

A fim de enfeitiçar os corações.

(Cantemos todos o Nome de Hari,

                 Cantemos alto o Nome de Hari).

Tu és o adolescente do Braj,

O destruidor de Kaliya,

E o libertador dos fracos,

Krishna, cujas sobrancelhas se erguem,

Sob o arco da pluma de pavão.

O amor único de Radha,

Tu que levantas o Govardhan,

Tu que Te enfeitas com flores dos bosques,

Que quebras o orgulho de Kamsa,

Tu, o Azul, a esperança das gopis.

                (Cantemos todos o Nome de Hari,

                 Cantemos alto o Nome de Hari).

 

SR (à Girish) — Ah! Muito bem! Você escreveu essa canção inteira?

Alguém — Escreveu. Ele escreveu todas as canções de sua peça Chaitanyalila.

SR — É uma belíssima canção. (Ao cantor) — Você pode cantar para nós alguma coisa sobre Nitai20?

No cântico seguinte, Nitaï convidava as pessoas a compartilhar o amor de Radha:

 

Radha é a fonte de amor, vinde saciar vossa sede!

O amor se escoa por cem riachos, de onde se tira água à vontade!

Radha é toda feita de amor, compartilhá-lo é a vida para nós,

(Com Radha cantemos Hari, repitamos o Nome de Hari).

Vós tereis a embriaguez do amor, sobre suas ondas dançareis.

                (Com Radha cantemos Hari, repitamos o Nome de Hari).

Para comprar o amor, vinde de todas as partes, apressai-vos!

 

Finalmente, cantaram em louvor a Gouranga:

 

Quem és Tu, ó Gour de tez dourada, cuja visão me refrigera a alma?

No oceano do amor fizeste erguer-se a tempestade.

O orgulho de casta e a vergonha são varridos para sempre.

(Ó minha alma, deixa-te levar por Gour)

És Tu que outrora vagueavas pelos caminhos de Braj21,

Vestido como pastor, apascentando os rebanhos,

Tu que enfeitiçavas as pastoras com Tua flauta,

Tu que salvaste Vrindavan erguendo Govardhan,

Tu também que soubeste arrepender-Te, cheio de remorso,

Aos pés das pastoras que havias ofendido.

                (Ó minha alma, deixa-te levar por Gour)

 

Todos pediram a M: “Cante alguma coisa para nós”. M era um pouco tímido e cochichou que o deixassem tranqüilo.

G (rindo) — Senhor! Não há meio de fazer o professor cantar!

SR (zangado) — Talvez na escola ele mostre os dentes, mas aqui tem vergonha de cantar.

M permaneceu em silêncio22.

O Sr. Suresh Mitro estava sentado no fundo da sala. Sri Ramakrishna sorriu e disse-lhe afetuosamente, mostrando Girish: “Olhe, esse aí ganha de você23!” Suresh riu e respondeu: “É verdade, senhor. Girish é meu irmão mais velho”. Todos riram.

G — Veja o senhor: eu nunca fui à escola e no entanto as pessoas me consideram um homem instruído.

SR — Mohima Chokrobortti passa seu tempo estudando as Escrituras. Ele conhece um bocado.

Dirigindo-se a M, disse: “Não é?” e M respondeu: “É sim, senhor”.

G — Já vi demais esse tipo de erudição. Isso não me interessa.

SR — Sabe como vejo as coisas24? Os livros, as Escrituras e todo o resto estão aí para indicar o caminho. Uma vez estando no caminho certo, não precisamos mais deles. Temos que trabalhar e avançar.

Um dia um homem recebeu uma carta de sua casa, com uma lista de presentes a serem oferecidos num casamento. No momento de ir comprá-los, não achava mais a carta. Começou a procurá-la ansiosamente. Outros procuraram também por muito tempo e acabaram achando-a. O homem ficou todo feliz, abriu-a impacientemente e leu: cinco libras de doces, uma peça de tecido e mais isso e aquilo. Pôs a carta de lado e saiu apressado para comprar os doces e o tecido. Para que serve a carta? Para explicar o que se deve fazer. Depois, mãos à obra! As Escrituras nos explicam o meio de alcançar Deus. Mas uma vez conhecidas, é preciso agir, e que tudo aquilo se torne real.

A erudição dos pandits não tem nenhuma eficácia. O teólogo pode falar sânscrito e citar as Escrituras, mas não conseguirá captar seu sentido se estiver preso ao mundo, com a mente voltada para o desejo do sexo e do dinheiro. Ele perde seu tempo lendo os textos sagrados. O almanaque prediz a chuva, mas não solta água se você o torce. Ele fala de água, mas não contém uma gota sequer! (risos)

G (rindo) — É mesmo, senhor? Nem torcendo bem forte? (risos).

SR — O pandit faz grandes discursos, mas o que busca o seu olhar? O sexo e o ouro, a riqueza e o conforto. O abutre plana muito alto no céu, com os olhos fixos nas carniças (risos). Fica espiando os animais doentes, as carcaças, os cadáveres. (Dirigindo-se a Girish) — Norendro é realmente excepcional. Sabe cantar e tocar instrumentos, vai bem nos estudos. Mas por outro lado controla suas paixões, tem discriminação e renúncia. Fala sempre a verdade. Quantas qualidades ele tem! (Dirigindo-se a M) — Você concorda? Ele é excepcional, não é? M assentiu: “Sim, senhor, excepcional”.

SR (baixo, para M) — Veja como ele (Girish) é apaixonado e que fé ele tem.

M não disse nada mas olhou atentamente para Girish. Fazia tão pouco tempo que Girish visitava o Mestre e no entanto este o tratava como se o tivesse conhecido desde sempre, como um membro de sua própria família. Os devotos do Mestre eram para ele como pérolas com as quais fazia um colar.

______________

 

Narayon — O senhor não vai cantar hoje?

Com sua voz que tocava o coração, o Mestre cantou. Primeiro os louvores à Mãe25:

 

Em meu coração quero guardar

A imagem de Shyama, a Mãe.

Vem, ó minha alma, contemplemos ambos,

E que ninguém mais se intrometa.

Vê, o prazer é uma miragem,

Partamos para um lugar solitário,

Que a língua nos acompanhe

Para chamar “Mãe, Mãe”.

(Sim, que ela chame sem cessar).

Pensamentos feios ou pensamentos baixos,

Que nenhum deles ouse mostrar-se.

Conhecimento, monte guarda,

Em vigilante sentinela.

 

Depois ele se colocou no lugar de uma alma aflita com os sofrimentos do mundo, reclamando para a Mãe:

 

Ó Mãe, fonte de alegria, não me recuses a alegria.

Em que tábua de salvação me agarrarei senão em Teus pés de lótus?

O Juiz dos Mortos ameaça, que lhe responderei?

Eu pensava que invocando-Te atravessaria o mar;

Nem mesmo em sonho eu teria pensado que me abandonarias.

Neste oceano sem praia, dia e noite eu Te chamo,

E no entanto, ao meu redor as dores se acumulam.

Se me matas, ó Durga, quem Te louvará neste mundo?

 

Finalmente, ele cantou para a Mãe Eterna26 um canto sobre a alegria do Absoluto:

 

Shiva e Kali são levados numa festa sem limites,

Embriagam-se de néctar. Ela se ergue vacilante.

Seu companheiro está a seus pés. O universo treme com sua dança.

Parecem um casal de loucos, desprovidos de temor e vergonha.

 

Todos os presentes ouviram-no imóveis, cativados, bebendo com os olhos a imagem extraordinária do Mestre, embriagado a cantar.

O canto cessou. Houve um silêncio, depois o Mestre disse: “Não cantei bem hoje. Eu me resfriei”27.

 

4  A tarde caiu pouco a pouco, sobre os oceanos cujo azul se une ao do espaço infinito, sobre as florestas profundas, sobre os cumes das montanhas a tocar o céu, as ribanceiras dos rios fremindo ao vento, as planícies abertas até o horizonte. Nessa hora a mente das pessoas muda e as faz sentir-se pequenas. As crianças, naturalmente filósofas, perguntam-se para onde foi o sol que iluminava o universo, e se perdem em suas reflexões. Chegou a noite. Que coisa admirável! Quem dispôs assim? Os pássaros se reúnem nas árvores e fazem um grande ruído antes do silêncio da noite. Entre os homens, aqueles cuja consciência está desperta voltam-se para Aquele que os poemas antigos denominam o Homem Cósmico (Purushottama), a Causa das causas, e invocam Seu Nome.

A obscuridade veio enquanto falávamos e cada um ficou sentado em seu lugar, enquanto o Mestre começava a recitar suavemente a litania dos Nomes. Todos o olhavam e escutavam com toda a atenção.Nunca se ouvira rezar com tal emoção, como uma chuva purificadora. Ele orava como uma criancinha que chama sua mãe com amor. M se lembrou28 da comparação da vaca e seu ubre. O céu e o oceano, as montanhas, as florestas e as planícies, não seriam senão os chifres e as patas da vaca, enquanto o ubre se encontrava ali mesmo naquela sala? Como fazia ele para dar paz aos agitados, banhar de alegria os atormentados? Por que todos os seus rostos expressavam a alegria e a paz? Deus infinito havia de fato tomado a forma atraente daquele renunciante incomparável? Não se podia ali mesmo saciar a sede com o leite da vaca? M pensou: “Avatar ou não, eu coloquei minha alma a seus pés e não vou retirá-la. Fiz dele a estrela polar da minha vida. Seu coração é um grande lago, onde se reflete a imagem de Deus”.

Assim pensavam certos discípulos, com os ouvidos atentos para escutar o Mestre recitando os Nomes divinos, ora Hari, ora Kali. A seguir o Mestre orou, como se Deus em pessoa tivesse vindo ensinar aos homens como rezar. Ele dizia:

 

Mãe, eu me refugio junto a Ti, tomei abrigo no lótus de Teus pés. Não peço saúde, não peço glória, não quero os oito poderes miraculosos. Dá-me apenas um amor puro a Teus pés. Mãe, faz também que eu escape da Tua maya que enfeitiça o universo inteiro! Da Tua maya vem a atração pelo mundo, o sexo e o dinheiro: que isso nunca aconteça comigo! Mãe, eu só tenho a Ti! Não tenho nada de meu, nem rituais, nem disciplina espiritual, nem conhecimento, nem devoção. Por Tua graça, concede-me a devoção ao lótus de Teus pés.

 

Moni29 pensou: “Por que ele faz assim a oração vespertina? Não precisa para si mesmo. A oração se escoa dele sem cessar, como um fio de óleo”. Moni compreendeu então que o Senhor se encarnara para ensinar aos seres humanos — como Chaitanya, que veio para ensinar a força do Nome do Senhor.

Girish havia convidado o Mestre para ir à sua casa naquela mesma noite. Sri Ramakrishna perguntou: “Não vai acabar muito tarde?” Girish respondeu: “Não, vocês irão embora quando quiserem. Eu mesmo tenho que passar no teatro esta noite para acertar uma questão”.

 

5  Por volta das nove horas da noite, chegou o momento de ir para a casa de Girish. Boloram mandara preparar a refeição do Mestre. Ao partir, para não magoar Boloram, o Mestre lhe pediu que a enviasse à casa de Girish.

Enquanto descia a escada, foi tomado em êxtase. Cambaleava como um homem embriagado. Narayon e M o acompanhavam, Ram e Chuni seguiam, depois os outros. Alguém perguntou: “Quem cuida dele?” Ele respondeu: “Posso caminhar sozinho”. Mas quanto mais descia, mais perdia a consciência. Receando um passo em falso, Narayon quis segurar sua mão, mas ele a retirou com um jeito zangado. Um pouco depois disse-lhe: “Se você segurar minha mão as pessoas vão pensar que estou bêbado, tenho que caminhar sozinho”. Ao chegar no cruzamento de Boshpara, não longe da casa de Girish, por que ele começou a andar muito depressa, deixando todos para trás? Quem compreenderá o estado divino em que se achava? Os Vedas descrevem aquele Ser (Purusha) como além da palavra e do pensamento. Seria por ver Aquilo que ele caminhava como um louco? Justamente, acabara de dizer na casa de Boloram que aquele Ser não está fora do alcance da mente e da inteligência purificadas. Talvez ele captasse Aquilo, vendo que “tudo o que é, é Tu mesmo30”.

Aí vem Norendro ao seu encontro. Ele que repetia como louco “Norendro, Norendro”, acha-se agora diante dele e não lhe dá a menor atenção. As pessoas chamam isso de êxtase (bhava) e dizem que Sri Gouranga (Chaitanya) freqüentemente ficava nesse estado — mas quem compreende o que é? Ao entrar na ruela onde morava Girish, ele recobrou a fala e disse afetuosamente a Norendro: “Tudo bem, meu filho? Antes eu não podia falar com você”. Ainda nem tinham acabado de chegar e ele disse, olhando para Norendro: “Escute, por um lado existe  isso e por outro aquilo”. Como interpretá-lo? “Isso” é a alma e “aquilo” o universo? O que havia ele captado em seu êxtase? Só ele sabia, e de vez em quando nos dizia algumas palavras a respeito, como os oráculos dos Vedas, como uma revelação. Poder-se-ia comparar aquilo com um homem que, caminhando numa praia, crê distinguir algumas palavras no rumor eterno do oceano.

 

6  Girish estava à porta para acolher Sri Ramakrishna. Logo que o viu chegando com os discípulos, prosternou-se de corpo inteiro. O Mestre o fez levantar-se, Girish tomou o pó de seus pés e o levou a uma sala do andar superior, onde ele foi sentar-se. Os discípulos acorreram todos para sentar-se o mais próximo possível, a fim de ouvi-lo melhor. No momento em que se sentava, o Mestre avistou um jornal. Aos seus olhos os jornais eram impuros, pois vinham cheios de assuntos mundanos, intrigas e maldades. Com um sinal de cabeça, mandou que o levassem embora e depois sentou-se. Nittogopal31 veio prosternar-se diante dele.

SR — Ah, você está aí?

Nit. — Estou. Em Dakshineswar eu não pude. Doente. Sofri muito32.

SR — E como você vai indo?

Nit. — Não muito bem.

SR — Você deveria descer um degrau ou dois33.

Nit. — Não dá certo com as pessoas. Tudo o que elas contam. Me dá medo. De vez em quando me sinto mais forte.

SR — Com certeza. Quem mora com você?

Nit. — Tarok34. Ele está sempre comigo. Às vezes, mesmo com ele não dá certo.

SR — Nangta35 contava que em seu monastério havia um asceta realizado. Caminhava sempre com os olhos erguidos para o céu. Mas quando seu companheiro Gonesh Gorji se foi, ele sentiu uma grande tristeza. E com isso perdeu a paz.

Enquanto falava assim, Sri Ramakrishna mudou de estado. Ficou absorto, depois disse: “Você está aqui? Eu estou aqui também”. Quem poderia compreender aquelas palavras? Seria a linguagem dos deuses?

 

7 Muitos devotos tinham vindo. Perto de Sri Ramakrishna estavam sentados Norendro, Girish, Ram, Horipodo, Chuni, Boloram, M e vários outros.

Norendro não admitia que Deus pudesse tomar a forma humana do avatar. Girish, ao contrário, tinha aquela fé ardente em que Deus incarna de tempos em tempos e desce em nossa terra dos mortais. O Mestre desejava muito ouvi-los discutir. Por isso disse a Girish: “Discutam um pouco em inglês vocês dois, eu vou ficar ouvindo”.

A discussão começou, mas em bengali, com um pouco de inglês de vez em quando. Norendro disse: “Deus é infinito. Não somos capazes de concebê-Lo. Ele está presente em cada um de nós. Não se pode admitir que esteja presente apenas em uma determinada pessoa”.

SR (afetuosamente) — Totalmente de acordo! Deus está em toda parte. Mas falta um detalhe: a Energia (Shakti) manifesta-se de maneira diversa. Ora como obscuridade (avidyashakti), ora como luz (vidyashakti)36. Além do mais, um recipiente contém pouca Energia e outro contém muito. Por isso os seres humanos não são iguais.

SR (parecendo irritado) — Sim, sim, é interessante.

G (a Noren) — Como você sabe que Ele não pode descer em um corpo?

N — Porque Ele é dito “além das palavras e da mente”.

SR — Não. Ele pode ser alcançado pelo intelecto (buddhi) purificado. A pura inteligência (buddhi) é o mesmo que o Ser (Atman). Purificando-se e purificando sua inteligência, os sábios (rishis) chegaram a contemplar o Ser.

G (a Noren) — Se não existe avatar, quem é que vai nos revelar tudo? Ele toma um corpo para trazer o conhecimento e a devoção aos seres humanos. Senão, quem poderia ensinar?

N — Por quê? Ele pode nos fazer conhecer tudo pelo nosso interior.

SR — Muito bem! Ele ensina como nosso guia interno.

A discussão continuou com paixão: será que a Infinity admite partes? E o que diz Hamilton? E Herbert Spencer? E mais Tyndall, Huxley? E assim por diante.

SR (a M) — Isso está me cansando. Eu vi tudo isso. Então para que discutir? Eu vejo que Deus é tudo, que Ele tomou todas essas formas. Eu sei que “isto” é verdade, mas que “aquilo” também é verdade. Existe um momento em que a mente e a inteligência ficam impotentes diante do infinito. Quando vejo Norendro minha mente se perde no infinito. (A Girish) — O que você tem a dizer sobre isso tudo?

G (rindo) — É realmente a única coisa que eu não sei explicar! (risada geral).

SR —  Mas eu não consigo falar enquanto não desço um degrau ou dois. Existe a Vedanta como Shankara37 a ensina, e também o monismo temperado (vishishta advaita) de Ramanuja.

N — O que é o monismo temperado?

SR — É o ponto de vista de Ramanuja. Os seres vivos e o mundo são Brahman munido de atributos. Devemos tomar o todo conjuntamente. É como a fruta do bel38. Distinguimos a casca, a polpa e as sementes. Mas se quisermos saber quanto a fruta pesa, não podemos pesar só a polpa, precisamos pesar também a casca e as sementes. No início rejeitamos a casca e as sementes para chegar ao essencial, que é a polpa. Depois compreendemos que a polpa, a casca e as sementes têm a mesma natureza. Da mesma forma, raciocinamos “isto não é o Essencial, aquilo também não” — Ele não é o mundo, não é os seres vivos — para chegar a discriminar Brahman, que é real, de todo o resto que é irreal. Mas a seguir percebemos que o que é a polpa é também a casca e as sementes, Aquele que é Brahman é também os seres vivos e o mundo, Aquele que é o Eterno (Nitya) é também o Jogo (Lila). Por isso Ramanuja dizia que os seres vivos e o mundo são Brahman provido de qualidades, e sua doutrina é chamada “monismo temperado39”.

 

8  SR (a M) — Eu vi de modo direto, então para que preciso raciocinar? Vejo que foi Ele mesmo que tomou todas estas formas, os seres vivos e o mundo. Mas não podemos captar a Consciência universal sem antes despertarmos nossa própria consciência. Discutimos enquanto não fazemos nossa própria experiência. Eu vejo que Ele mesmo se transforma em tudo isto. Alcançamos esta consciência pela Sua graça. Quando a atingimos, ocorre o êxtase (samadhi), esquecemos nosso corpo por alguns momentos, desprendemo-nos do sexo e do dinheiro e não podemos mais suportar ouvir falar de outra coisa que não Deus. Ouvir uma conversa mundana torna-se um sofrimento. O despertar da consciência permite reconhecer a Consciência.

No final da discussão, SR disse a M: “Observei o seguinte: um certo tipo de conhecimento vem pelo raciocínio, outro pela meditação, mas quando Deus se faz conhecer diretamente é uma coisa totalmente diferente! Se Ele mesmo se revela, se Ele nos concede discernir Seu jogo sob forma humana (o que chamamos avatar), então não há mais necessidade de discurso nem de explicações. Você sabe como? Assim que riscamos um fósforo no escuro, a obscuridade desaparece de uma vez. Se Deus concede esse clarão, todas as dúvidas se vão num instante. Não se pode obter isso pelo raciocínio”.

O Mestre fez Norendro sentar-se perto de si e afetuosamente fez-lhe perguntas para saber como as coisas estavam indo.

N — Meditei vários dias em Kali, sem nenhum resultado.

SR — Isso vai vir pouco a pouco. Diga para si mesmo que Kali não é nada mais que Brahman40. Aquele que é Brahman também é Kali. Ela é a Energia primordial (Shakti). Quando Deus está inativo, nós o chamamos Brahman. Quando age criando, preservando e destruindo, nós o chamamos Shakti ou Kali. Aquele que você chama Brahman, eu chamo Kali. Não há diferença. Como o fogo e seu poder de queimar: quando pensamos no fogo, pensamos em seu calor. Quem aceita Kali tem de aceitar Brahman, e quem aceita Brahman tem de aceitar Kali. Não existe diferença entre ambos.

Agora era noite fechada. Girish disse a Horipodo41: “Vou precisar ir ao teatro. Você vai buscar um carro?”

SR (rindo) — E ai de você se não for!

H (sorrindo) — Claro que vou! Estou indo.

G — Lamento deixá-lo, senhor, mas preciso voltar ao teatro.

SR — Precisa sim, você segura as duas pontas, como o rei Janaka, que aproveitou dos dois lados, tomando o leite a copos cheios42 (risos).

G — Tenho muita vontade de abandonar tudo, deixando o teatro para os jovens.

SR — Não, não. Está bom assim. Você presta serviço a muita gente.

Noren (em voz baixa) — Ele pode chamá-lo de avatar e Deus, mas esquece-o para voltar ao seu teatro43.

 

9  Sri Ramakrishna fez Norendro sentar-se bem perto e olhou-o intensamente; de repente deslocou-se para aproximar-se mais ainda. Norendro não aceitava o avatar, mas que importava? O amor do Mestre transbordava. Pousou a mão sobre ele, recitando44: “Ó Radha, foste ferida em teu orgulho, e nós juntamente contigo45”.

SR (a Noren) — Enquanto raciocinamos é que não O encontramos ainda. Eu não saboreei a discussão de vocês agora há pouco. Um banquete46 faz muito barulho enquanto não estamos sentados comendo. Assim que trazem os luchis e os legumes o ruído diminui em três quartos (risos), e na sobremesa só se ouve sup, sap. Depois cada um faz a sesta. Assim, quando estamos saciados de Deus o ruído das discussões cessa. E a sesta é o êxtase, o samadhi.

Dizendo aquilo, acariciou Norendro, depois tocou seu rosto afetuosamente, dizendo “HARI OM, HARI OM, HARI OM”. Por que fazia aquilo? Seria por ver nele o próprio Narayana?

Seria o que se chama ver Deus no homem? Que coisa estranha! Enquanto o olhava, o Mestre perdeu consciência pouco a pouco. Talvez seja isso o que se chama “consciência parcial” na vida de Sri Gouranga? De repente, ele tocou como que furtivamente os pés de Norendro47, e depois seu corpo. Seria um culto prestado a esse Deus?  Ou seria para transmitir-lhe força? Seu estado se transforma novamente. E ele se dirige a Norendro, com as mãos juntas: Canta-me alguma coisa48 — Isso me curará — Senão, como me erguerei? — Ó, turbilhão do amor de Gouranga! — Ó meu Nitai!

Um momento depois, ei-lo imóvel e silencioso, como uma estátua. A seguir fala de novo: Toma cuidado, ó Radha — Para não te afogares no rio — Louca de amor como estás. Novamente o silêncio, depois ele recita ainda: Ó minhas amigas — Como fica longe essa floresta — Onde está o bem-amado? — Daqui sinto seu perfume — Mas não consigo mais caminhar.

Ele esqueceu o mundo que o rodeia. Não percebe mais nada. Norendro está à sua frente, mas ele não lhe dá atenção. Não sabe mais onde está. Sua mente e sua alma se foram para Deus. Levanta-se de repente repetindo: Ó, turbilhão do amor de Gour. Depois se senta e diz: “Estou vendo a luz. Mas de que lado está vindo? Eu não sei”.

Norendro começou a cantar:

 

Teu rosto apaga todas as dores, encanta a alma

Ao Te contemplar, os sete mundos esquecem seus pesares

Que direi então de mim, pobre miserável, Senhor!

 

Ao ouvir aquilo, o Mestre entrou novamente em êxtase, com os olhos fixos e o corpo imóvel. Voltou um pouco a si e disse “Quem vai me levar?”, como uma criança que perdeu seus companheiros e está sozinha no escuro.

Agora é noite profunda, sem lua. O Mestre dirige-se para o carro que vai levá-lo de volta ao templo de Dakshineswar. Os devotos, de pé ao lado do carro, ajudam-no a subir com cuidado, pois ele ainda está como um homem embriagado.

O carro afasta-se. Os devotos se vão, cada qual para seu lado.

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O final do diálogo é uma defesa ardente de M a favor do avatar, omitida como sempre na tradução de Swami Nikhilananda. Também o é na tradução inglesa do próprio M. Por quê? Será que ao fim ele a teria achado desajeitada? Seja como for, essa meditação nos faz conhecer melhor M e sua devoção apaixonada por seu mestre, e merece ser traduzida.

 

10  Caminhando pelas largas avenidas de Calcutá, sob o céu brilhante de estrelas, guardando no coração a imagem extraordinária do Mestre, na memória a reunião dos discípulos, nos olhos aquela quermesse do amor como a marca de um sonho feliz, os devotos voltavam para suas casas. Alguns, com os pulmões cheios da brisa da primavera, retomavam a canção de Norendro49: Teu semblante apaga todas as dores, encanta a alma...

Moni refletia enquanto caminhava. Será que Deus pode realmente tomar um corpo humano? Existe realmente o avatar? O infinito pode tornar-se finito, reduzindo-se aos poucos côvados de um homem? Acabamos de discutir longamente, mas a discussão não nos fez avançar um passo sequer.

Nosso mestre Sri Ramakrishna disse muitas vezes que nós raciocinamos enquanto não temos a experiência direta, enquanto não realizamos Deus. É verdade, nossa inteligência é limitada, como então nos permitiria compreender Deus? Um recipiente de um litro poderá conter quatro litros de leite? Mas como vem a fé no avatar? O Mestre nos disse que se Deus o quer ela aparece como um relâmpago. Goethe em seu leito de morte disse: “Luz, mais luz50”. Se Deus concede essa iluminação, então todas as dúvidas são eliminadas de uma só vez. Foi assim para os pescadores sem instrução que seguiam Jesus na Palestina, para Shrivas e os outros devotos que souberam reconhecer em Chaitanya um avatar.

Mas se Deus não me concedeu essa iluminação, como fazer? Quanto a mim, acredito no que Sri Ramakrishna diz. Ele nos falou várias vezes: a fé, a fé, a fé nas palavras do guru. Ora, eu fiz dele a estrela polar de minha vida, para encontrar minha rota neste oceano...” Graças a Deus tenho fé em suas palavras. Acreditarei também nesse caso, e os outros que façam como quiserem. Como poderia eu renunciar a uma fé tão preciosa? Basta de discussões. Será que a atração pelo conhecimento vai fazer de mim um Fausto? Mas Fausto, sozinho em seu quarto escuro, olhando a lua pela janela, reconhece dolorosamente que estudou tudo em vão, a filosofia, a ciência, e que não aprendeu nada, que esta vida não vale nada, e então pensa em se envenenar. Quanto ao herói do poema de Shelley, “Alastor”, incapaz de carregar o fardo da ignorância, pousa a cabeça sobre uma pedra e deixa-se morrer. Não, eu receio imitar esses homens demasiado sábios, que tentam penetrar o mistério com seu intelecto limitado. Que um recipiente de um litro não possa conter quatro litros de leite, isso não merece a morte. Existe um remédio: acreditar nas palavras do guru. Ó, Senhor, dá-me a fé e não me deixes vagar na escuridão. Não me faças buscar o que não é necessário. Como disse o Mestre: “Dá-me uma devoção pura a Teus pés de lótus, sem mancha, sem volta a mim mesmo, e não deixes que me perca em Tua maya que enfeitiça o universo inteiro”. Por Tua graça, concede-me esta bênção.

Assim, Moni retornava naquela noite sem lua, caminhando no meio da rua, repetindo para si mesmo essas palavras do Mestre, cheias de um amor incomparável. E então refletiu sobre o amor do Mestre por Girish. Este o avisa que irá para o teatro, mas mesmo assim o Mestre vai à sua casa. E mais do que isso: não exige nada dele. Ele não lhe diz: “Renuncie! Para me seguir deixe sua casa, sua família, suas ocupações e torne-se um sannyasin51”. Ele sabe que essa ruptura é dolorosa quando não se espera o tempo de maturação e a manifestação da renúncia intensa. Sempre diz que se tentamos tirar a casca de uma ferida logo que ela se forma, dói e sai sangue, mas se tivermos paciência a crosta seca e cai por si mesma. Um guru qualquer, sem penetração espiritual, ter-lhe-ia dado a ordem de renunciar imediatamente. Mas o Mestre é o verdadeiro guru, o oceano de misericórdia; não é em si mesmo que ele pensa dia e noite, mas no bem de todos.

Mas também, que fé o Girish tem! Já no seu segundo encontro com o Mestre, ele proclamou: “Senhor, tu és Deus em pessoa, tomaste forma humana para me libertar”. Girish dissera naquela noite que se Deus não tomasse forma humana, não haveria ninguém para instruir os homens, ensinar-lhes que Deus é real e todo o resto irreal, levar pela mão os infelizes habitantes desta terra, devolver a consciência de sua imortalidade aos seres humanos, reduzidos à condição de animais pelo apego ao sexo e ao dinheiro. E enfim, se Ele não viesse compartilhar a existência humana, como poderiam sobreviver neste mundo aqueles cuja alma está voltada para Deus e não pode amar nada a não ser Ele? Como diz o Guita (IV.8):

 

Para a proteção dos justos, para a destruição dos maus,

Para restabelecer o reto caminho52, encarno-me de tempos em tempos.

 

E que amor por seus discípulos! Ele entra em êxtase por Noren, chora por Narayon. Que diz? “Esses meninos, e também os outros, Rakhal, Bhobonath, Purno, Baburam etc., são Deus personificado53, vieram todos para me acompanhar”. Não se encontra um amor assim entre os homens, eu o considero como proveniente do próprio Deus. Esses rapazes têm uma alma pura, não tocam uma mulher nem sequer em pensamento; comportam-se sem inveja, orgulho ou maldade. Por isso Deus se manifesta neles. Mas quem é capaz de compreender isso? O Mestre distingue o que as pessoas trazem dentro de si, conhece-as a fundo: quem é apegado ao mundo, quem é direito e generoso, e quem é devoto de Deus. É por isso que ele serve humildemente àqueles que considera como Deus personificado. Preocupa-se com o banho deles, com seu repouso; chora pela necessidade de vê-los; corre para Calcutá a fim de encontrá-los; convence as visitas a trazê-los de Calcutá em seu carro; sempre diz aos discípulos chefes de família “Convidem-nos, dêem-lhes de comer, isso lhes trará um grande mérito”. Esse afeto provém de maya ou do amor puro para com Deus? Achamos normal prestar culto a Deus numa imagem de argila, então por que não no ser humano puro? São os companheiros do Jogo do Senhor, eles O acompanham de nascimento em nascimento.

Ao olhar para Norendro, ele perdeu a consciência do mundo externo; pouco a pouco, deixou de ver o Norendro físico, o homem aparente, e seu olhar penetrou até o homem real. Sua mente submerge no Absoluto (Satchidananda) sem limites e, então, ora ele fica imóvel e mudo, ora diz “OM, OM”, ou então chama “Mãe, Mãe”, como uma criança. O que Norendro é por dentro manifesta-se-lhe então. Por isso ele diz “Norendro, Norendro” como um louco.

Norendro rejeita a idéia do avatar, mas o que importa? O olhar do Mestre vê claramente dentro dele e compreende que a causa disso é o orgulho ferido. Essa Mãe que é o ser mais próximo de nós, nossa verdadeira Mãe, não uma mãe substituta, por que lhe recusa Ela o clarão que de um só golpe dissiparia a escuridão? Talvez por isso ele lhe tenha dito “Ó Radha, teu orgulho foi ferido e nós fomos feridas contigo”. Ele, que ultrapassou tudo isso, compartilha teus sentimentos, fica aborrecido como tu. Não o faria por qualquer um. Feliz és tu, Norendro, por ser amado a esse ponto! Tua visão basta para submergi-lo em Deus.

Assim, revolvendo em sua mente os acontecimentos da noite, os discípulos voltavam para suas casas naquela noite profunda.

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A Vida de Swami Vivekananda, de Swami Nikhilananda54 contém o seguinte excerto de uma carta enviada por Swami Vivekananda dos Estados Unidos para a Índia em 14 de abril de 1896.

 

Que Ramakrishna Paramahamsa tenha sido Deus — e todas as idéias desse gênero — não significa nada em países como este. M tem a tendência de impor essas idéias a todo mundo; mas isso faria de nosso movimento uma pequena seita. Evitem tais esforços. Ao mesmo tempo, se alguém adora Ramakrishna como Deus, isso não tem inconveniente. Não encorajem nem desencorajem a coisa. As massas vão preferir sempre a pessoa, a elite pensante o princípio. Nós queremos os dois. Mas os princípios são universais; as pessoas não. Atenham-se portanto aos princípios que o Mestre ensinou e deixem cada um pensar o que quiser de sua pessoa.

 

O próprio M talvez tenha se inclinado diante desses argumentos, já que eliminou de sua própria tradução o final do diálogo. Mas a religião dos princípios em detrimento da religião das pessoas pode levar também à atitude do pandit, denunciada por Ramakrishna com um vigor que lembra a condenação dos fariseus. Entre Ramakrishna e o Ocidente monoteísta ou agnóstico, os “princípios” são um Himalaia intransponível para as caravanas motorizadas de teólogos, mas que um passeador solitário pode atravessar colhendo as gencianas aqui e ali. As atitudes religiosas são tão universais quanto os princípios, e a de M merece toda nossa atenção.

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DIÁLOGO 18*

EM SHYAMPUKUR COM O DR. SARKAR: 22 DE OUTUBRO DE 1885

 

Os Diálogos da doença comportam um novo ator, o doutor Mahendralal Sarkar, o homeopata que tenta combater o câncer na garganta de Sri Ramakrishna. É um médico famoso1, tão interessado por seu paciente, tanto do ponto de vista científico quanto simplesmente do humano, que passa horas a fio com ele, (sem exigir pagamento e negligenciando sua clientela). Segundo Shivanath, ele é crente, mas ainda mais teísta que os brahmos; rejeita todas as religiões estabelecidas, o culto das imagens, a bhakti em geral e a teoria do avatar em particular. É natural que mestre e discípulos dêem importância a esse visitante paramentado pelo prestígio medicinal, caloroso e inteligente (embora embevecido por si mesmo e nem sempre muito fino) e tentem convertê-lo2. Por outro lado, o doutor, como um verdadeiro bengali, gosta de discutir, é sensível à música e à emoção religiosa.

Talvez nos admire que o doutor trate Ramakrishna por você. Mas o você informal do bengali é menos familiar que o do brasileiro, e além disso o doutor é mais velho. De qualquer forma, dizer você a um sadhu é desrespeitoso. Isso faz parte do personagem do doutor — quer ele se posicione assim com seu gênio forte, quer com sua superioridade médica. Em todo caso, Ramakrishna não fica chocado em absoluto.

 

1  Estamos na quinta-feira 22 de outubro de 1885, alguns dias após o Durga Puja; Sri Ramakrishna encontra-se agora em Calcutá, no bairro chamado Shempukur. Está gravemente enfermo, com um câncer na garganta. Levaram-no à casa de Boloram para ser examinado pelo médico tradicional Gongaproshad Kobiraj. Quando o Mestre lhe perguntou se sua doença tinha cura ou não, ele não quis responder nada, permanecendo em silêncio. Então os discípulos procuraram o doutor Shorkar.

Alugou-se um sobrado para o Mestre e seu quarto foi arrumado no primeiro andar. Ali está ele em sua cama. Estão presentes o Dr. Shorkar, Ishanchondro Mukhopadhyay3 e outros devotos, sentados por todos os lados. Ishan é muito generoso, ajuda as pessoas com o dinheiro de sua pensão, ou até mesmo endividando-se, e mantém o tempo todo a lembrança de Deus. Ao ficar sabendo que o Mestre está doente, veio vê-lo. O Dr. Shorkar está cuidando do Mestre e sente tanto amor e respeito por ele que chega a passar seis ou sete horas seguidas aqui. Comporta-se com os discípulos como um amigo muito próximo.

São sete horas da noite e lá fora a lua cheia derrama cascatas de luz sobre a cidade. Dentro da casa o quarto iluminado por lamparinas está cheio de visitas. Muitas pessoas vieram para o darshan do santo famoso e toda a atenção está voltada para ele, à espera do que vai dizer ou fazer. O Mestre fala dirigindo-se a Ishan4.

SR — Um chefe de família que cumpre todos os seus deveres e que ao mesmo tempo conserva sua devoção aos pés do Senhor é realmente bendito. É um herói. É como um homem que vai assistir a um casamento carregando um fardo pesado sobre a cabeça. O peso não o impede de olhar a festa. Para isso é preciso muito força. Ele parece o peixe do lodo cujas escamas permanecem brilhantes, ou o alcatraz que mergulha o tempo todo mas sacode as gotas de água de suas asas.

Mas para viver no mundo sem se sujar é necessário praticar disciplinas espirituais, passar algum tempo solitário. Um ano, seis meses, três meses ou mesmo um mês. Nessa solidão é preciso pensar em Deus, orar a Ele com grande desejo para adquirir a devoção, dizendo sem cessar: “Neste mundo não tenho nada nem ninguém que me pertença. Os que chamo de meus são meus por um ou dois dias5 apenas. Só o Senhor me pertence. Ele é o meu único bem. Ai, como vou fazer para encontrá-lo?”

Pode-se viver em família depois de ter conseguido a devoção, assim como se pode partir a fruta da jaqueira sem colar os dedos depois de esfregar óleo nas mãos. O mundo é como a água e o espírito como o leite. Se despejarmos o leite na água não poderemos mais separá-los. Por isso primeiro deixamos o creme decantar na solidão. A seguir recolhemos o creme e fazemos a manteiga. A manteiga, depois de pronta, não se mistura mais com a água. Ela flutua sem ficar molhada.

Os brahmos me diziam: “Senhor, nós somos como o rei Janaka. Como ele viveremos no mundo sem nos sujar”. Eu respondia: “É muito difícil viver no mundo sem se macular. Não basta falar para se tornar como o rei Janaka. O rei Janaka praticou muitas austeridades, de cabeça para baixo e com as pernas para cima! Vocês não precisam fazer tanto assim, mas de qualquer forma devem praticar uma disciplina. É necessário ficar só e voltar ao mundo apenas depois de obter conhecimento e devoção. É preciso deixar o creme decantar na calma. Se você agita o pote o tempo todo, o creme não se separa do leite”.

Janaka era tão impecável que o chamavam “o sem corpo6”; passava pelo mundo sem se apegar, como um liberto-vivo (jivanmukta). Mas livrar-se da consciência do corpo não está ao alcance de qualquer um; isso exige muito esforço. Janaka era um grande herói. Manejava as duas espadas: a do conhecimento e a da ação.

Se vocês me perguntarem qual é a diferença entre dois jñanis dos quais um é monge e o outro chefe de família, eu lhes direi que não existe diferença. Este é um jñani e aquele também. É a mesma coisa. Mas aquele que permanece no mundo deve ficar prudente, porque vive no meio da sensualidade e do dinheiro, não está totalmente em segurança. Se moramos num cômodo cheio de fuligem, mesmo prestando muita atenção acabaremos por nos sujar um pouco de preto.

Se depois de fazer a manteiga nós a colocamos numa vasilha nova, ela não rança. Mas se a colocarmos num recipiente que tinha soro, não se sabe o que pode acontecer (risos).

Quando fritamos o arroz para fazer pipoca, sempre pulam alguns grãos para fora da frigideira. Eles são perfeitos, brancos como flores de jasmim. Os grãos que ficam na frigideira são bons também, mas não são como flores, eles tem uns queimadinhos. Da mesma forma, um sannyasin que adquire o conhecimento pode ser imaculado como a flor de jasmim, enquanto um mundano conserva em seu corpo as pequenas queimaduras deixadas pelo desejo (risos).

Uma monja errante (bhairavi) apresentou-se diante do rei Janaka. Este baixava o olhar na presença das mulheres. Vendo isso, a monja disse: “Ó, Janaka, ainda receias as mulheres! Se tivesses obtido o conhecimento perfeito, serias como um menino de cinco anos, para o qual não há diferença entre mulheres e homens”.

Seja como for, se um mundano atinge o conhecimento, essas pequenas manchas têm tão pouca importância quanto as manchas da lua, que não a impedem de clarear o mundo. Alguns obtêm o conhecimento e permanecem no mundo para ensinar, como Janaka ou Narada. Para isso é preciso muita força. Os sábios (rishis) de outrora buscavam o conhecimento para si mesmos, vagando pelo país. Narada e os outros são verdadeiros heróis7.

Um pedacinho de madeira flutuante afunda ao peso de um pássaro, mas um majestoso tronco de árvore suporta o peso de uma vaca, de um homem ou até mesmo de um elefante. Um vapor flutua sozinho e ainda carrega uma multidão. Os mestres como Narada são grandes troncos de árvore, ou barcos. Existem pessoas que comem sozinhas e limpam bem a boca para que ninguém perceba, e outras que quando cortam uma manga não só comem como também oferecem ao redor de si. Da mesma forma, Narada e seus semelhantes, mesmo depois de obter o conhecimento, mantêm a atitude da devoção para o bem da humanidade.

 

2  Doutor — O conhecimento deixa o homem sem voz, seus olhos se fecham e as lágrimas escorrem. Assim nasce a devoção8.

SR — A devoção (bhakti) é mulher, tem permissão de entrar na parte íntima da casa. O conhecimento (jñana) tem que ficar de fora9 (risos).

Dr. — Temos que proibir a entrada de certas mulheres na área íntima, por exemplo as prostitutas. Para isso precisamos de conhecimento10.

SR — Se alguém não tem conhecimento e ignora o caminho, mas tem amor por Deus e deseja chegar a Ele, alcançá-lo-á unicamente pela força de sua devoção. Um grande bhakta pôs-se a caminho de Puri para receber o darshan de Jagannath. Não conhecia o caminho e ao invés de ir para o sul foi para o oeste. Ele se enganara, é claro, mas sua impaciência o fazia interrogar as pessoas, que lhe disseram “Não é por aqui, pegue tal estrada”. Finalmente ele chegou a Puri e viu Jagannath. Está vendo? Mesmo se você não tiver o conhecimento alguém poderá informá-lo.

Dr. — Mesmo assim, ele perdeu tempo!

SR — É verdade, mas acabou chegando.

Alguém perguntou: “Deus tem uma forma (sakar)ou é sem forma11 (nirakar)?”

SR — Ambas as coisas. Certo monge foi ao darshan de Jagannath. Na presença da imagem teve uma dúvida: Deus tem forma ou não? Estava segurando seu bastão na mão e estendeu-o na direção do ídolo, pensando: “Se eu puder tocá-lo, então Deus tem12 forma, senão é sem forma”. Primeiro ele passou o bastão da esquerda para a direita, assim, sem sentir nada, depois repassou-o da direita para a esquerda, assim, e tocou o ídolo. Dessa forma o monge compreendeu que Deus é ao mesmo tempo com forma e sem forma.

Mas é muito difícil representar isso. Antes de mais nada apresenta-se uma dúvida: como o Sem-Forma pode tomar forma? E depois, por que todas essas formas diferentes?

Dr. — Já que Ele criou todas as formas, Ele é Deus-com-forma, e já que criou o espírito, Ele é Deus-sem-forma. Ele pode ser tudo ao mesmo tempo.

SR — Não se pode compreender isso sem ter tido a experiência de Deus13. Ele se mostra sob muitos aspectos, por amor àqueles que O buscam.

Um tintureiro tinha só uma tina de tintura. Pessoas de todos os tipos lhe traziam seus tecidos para tingir. Ele lhes perguntava: “Que cor você quer?” Se lhe diziam “Quero vermelho”, ele mergulhava o tecido na tina e o tirava dizendo “Olhe, aqui está o vermelho”. Se lhe diziam “Quero amarelo”, ele o mergulhava na mesma tina e o tirava dizendo “Olhe, aqui está o amarelo”. O mesmo para o azul ou qualquer outra cor: a tina dava tudo o que se desejava. Um homem estava ali olhando aquela coisa espantosa. O tintureiro lhe perguntou: “E você, que cor vai querer?” O homem disse: “Por favor, irmão, da cor que você mesmo colocou aí14” (risos).

Um homem entrou num bosque para satisfazer uma necessidade15, e avistou um bonito animalzinho numa árvore. Depois encontrou um homem e disse-lhe: “Irmão, acabo de ver em tal árvore um animalzinho vermelho”. O homem respondeu: “Eu também vi, mas por que vermelho? Ele é verde”. Um outro disse: “Não, verde não, amarelo”. E assim foram todas as cores e houve uma discussão. Então eles entraram no bosque e encontraram um homem sentado debaixo da árvore, o qual lhes disse: “Eu vivo aqui e conheço bem o animal de que vocês estão falando. O que cada um de vocês está falando é verdade, ele é ora vermelho, ora verde ou amarelo, tudo o que quiserem, e às vezes não lhe vejo cor alguma”. Assim, aquele que vive na presença de Deus pode conhecer Sua natureza, e sabe que Ele se manifesta sob múltiplas formas, múltiplos aspectos, que pode ser provido de atributos ou sem atributos. Os outros só sabem discutir.

Ele tem formas e Ele é sem forma. Sabem como? Pensem no oceano de Satchidananda. Ele não tem margens. Em alguns lugares o frio faz a água congelar e assim lhe dá a forma do gelo. Do mesmo modo, por amor a Seus devotos Deus toma forma e se deixa ver. Mas o sol do conhecimento quando se levanta derrete esse gelo.

Dr — Quando o sol se levanta derrete o gelo, mas sabem que ele pode também transformar a água em vapor invisível?

SR — Isso significa “Brahman é a única realidade, o universo é uma ilusão”. Quando se compreende isso, vem o êxtase (samadhi) e as formas se vão como fumaça. Então não é mais possível considerar Deus como uma pessoa. O que Ele é a boca não pode dizer. Aliás, quem poderia? Aquele que o saberia desapareceu também, não consegue mais encontrar seu “eu”. Só resta o Absoluto, Brahman16 sem atributos. Ele é Consciência captada pela consciência; a mente e a inteligência não conseguem apreendê-lo. Ele é o desconhecido e o incognoscível17.

Compara-se a devoção à lua, o conhecimento ao sol. Disseram-me que existem oceanos muito longe ao norte e ao sul, e que lá faz tanto frio que esses oceanos ficam congelados; os navios não passam mais e não se pode ir até lá.

Dr. — É o caminho de bhakti que termina em impasse!

SR — Concordo, mas não se morre por isso. Não esqueça que essa água e esse gelo são o oceano do ser, do conhecimento e da bem-aventurança (Satchidananda). Se você deseja continuar discriminando, dizendo que “Brahman é real e o resto ilusão”, é um direito seu. Então o sol do conhecimento derreterá o gelo. O importante é que seja aquele oceano, o de Satchidananda. Quando o conhecimento termina o trabalho o samadhi vem, o eu e todo o resto desaparecem. Mas não é fácil! O eu não quer ir embora e enquanto está presente temos que renascer neste mundo.

A vaca diz “moh, moh”, isto é, “meu, meu” (eu, eu) e é por isso que ela sofre tanto. O dia inteiro no arado, sob o sol e a chuva, depois vem o esfolador, mas ainda não é o descanso: seu couro é transformado em sapatos. Finalmente, de suas tripas faz-se a corda do arco de cardar, que canta docemente “tumm, tumm” — “tu, tu”. Então vem a paz. Quando o homem diz “Eu não sou nada, és Tu que ages, eu sou Teu servidor”, então obtém a paz, obtém a libertação.

Dr. — Sim, mas teve que passar pelas mãos do cardador (risos).

SR — Se o “eu” realmente não quer ir embora, então que esse malandro se torne o “eu servidor” (risos). Depois do êxtase (samadhi), resta em alguns um pouco do “eu”, o “eu do servidor”, o “eu do devoto”. Shankara conservou o “eu de luz” para ensinar aos homens. Essas três formas de “eu” podem ser consideradas “maduras”. Você conhece o “eu verde”? É aquele que diz “Eu sou poderoso, eu sou de família ilustre, eu sou instruído, eu sou rico”. Uma pessoa desse tipo, quando pega um ladrão, primeiro lhe toma tudo de volta, depois manda bater nele18, depois o entrega à polícia dizendo: “Como? Ele não sabe quem ele roubou?”

Aquele que conheceu Deus torna-se como uma criança de cinco anos19. O “eu maduro”, como o “eu da criança”, não é dominado por nenhum dos três modos: está além de sattva assim como de tamas e rajas. Veja como escapa de tamas: agora mesmo estava bravo com seus amigos, em plena briga, depois tudo ficou esquecido ele passa o braço ao redor do pescoço deles e começa a brincar. Escapa de rajas: prepara a casinha de bonecas no seu quarto, prepara a brincadeira, depois deixa tudo e corre para junto de sua mãe. Ou então ele se exibe com um dhoti novo em folha. Um momento depois já o desfez e deixou cair. Esqueceu que ganhou uma roupa bonita e sai passeando nu (risos).

Imaginemos que alguém diga a essa criança: “Olhe, que roupa bonita! De quem é?” Ela responde: “É minha! Meu pai me deu”. Se você lhe disser “Dê para mim, meu amor!” ela responde “Não, é minha, meu papai me deu, não é para você”. Um momento depois, ela esqueceu tudo e troca aquela roupa de cinco rúpias por uma boneca ou uma flautinha. Mas uma criança de cinco anos também não está submetida a sattva. Brinca com seus amigos do bairro e não consegue ficar um instante sem vê-los, mas se seus pais se mudam ela faz novos amigos e esquece completamente os velhos. Não tem nenhum sentimento de casta20. Se sua mãe lhe diz “Este é o seu tio”, imediatamente ela acredita cem por cento que é de fato seu tio, e os filhos de um brâmane e os de um ferreiro estão prontos para comer no mesmo prato. Ela ignora a diferença entre o puro e o impuro e coloca na boca todo tipo de sujeira. Não tem nenhum respeito humano e mostra seu traseiro em público perguntando: “Eu me limpei bem?”

Existe também o “eu do velho” ( o doutor ri). Quanto mais velhos somos mais acorrentados ficamos: o espírito de casta, a suscetibilidade, o respeito humano, as inimizades, o medo, as preocupações materiais, a mentalidade calculista, a astúcia. Os rancores de um velho não se apagam, duram até o fim. A isto se acrescenta o orgulho do saber ou da riqueza. O “eu do velho” também é um “eu” não maduro. (Dirigindo-se ao doutor) — Há vários tipos de pessoas que nunca chegam ao conhecimento de Deus: as que têm o orgulho da inteligência, o orgulho do saber, o orgulho da riqueza. Nunca obtêm o verdadeiro conhecimento. Quando dizem a essas pessoas “um sadhu chegou em tal lugar, você vai vê-lo?”, elas encontram sempre boas desculpas, mas a verdadeira razão é “eu sou muito importante para me incomodar com isso”. O orgulho pertence ao modo tamas. O orgulho vem da ignorância, de tamas portanto.

Lemos nos Puranas que em Ravana dominava o modo rajas, em Kumbhakarna o modo tamas e em Vibhisana o modo sattva21. Por isso Vibhisana conseguiu ver Rama. Um outro sinal de tamas é a ira. A ira não consegue mais distinguir o bom caminho. Hanuman em seu furor pôs fogo em Lanka, sem pensar que podia queimar a cabana de Sita.

Outro sinal de tamas é a luxúria. Girindro Ghosh de Pathuregatha dizia que não se pode suprimir as paixões, como a ira, a luxúria, mas que se pode orientá-las para Deus. Saboreie o prazer de Deus. Faça amor com Satchidananda! Se a ira não desaparecer, fique furioso: “Como! Eu invoquei Durga e ainda não fui libertado? Onde estão o meu pecado e as minhas cadeias?” Seja ávido por alcançar a Deus. Embriague-se com a beleza de Deus, estoure de orgulho por ser seu servidor, seu filho. Se você precisa de orgulho, que seja esse. Assim você mudará o curso das seis paixões.

Dr. — Mas é muito difícil conter os sentidos. Temos que colocar antolhos nos cavalos, e às vezes precisamos até vendar completamente seus olhos.

SR — Mas se alcançarmos a graça de Deus, se conseguirmos vê-Lo uma única vez, se uma única vez chegarmos a perceber o que é o Ser, então não teremos mais nada a temer. As seis paixões perderão seu poder. Narada, Prahlada e os outros santos (mahapurushas) sempre-livres não precisaram de vendas. Uma criança que caminha sobre as muretas por entre os arrozais segurando a mão de seu pai, pode se distrair, soltar a mão e cair na água. Mas se for o pai que lhe segura a mão, a criança não corre nenhum risco.

Dr. — Não é bom para ela que lhe segurem a mão.

SR — Ao contrário. Os santos têm a natureza de uma criança. São sempre as criancinhas de Deus, não têm orgulho. Sua força é a força de Deus, a força de seu Pai; por si mesmos eles não têm nada e estão absolutamente convencidos disso.

Dr. — Um cavalo sem antolhos não deseja avançar. Será que se pode alcançar Deus sem controlar as paixões?

SR — Isso que você está descrevendo é o caminho da discriminação, que se chama yoga do conhecimento. É verdade que ele leva a Deus. Os jñanis dizem que primeiro é necessário purificar a mente, praticar as disciplinas espirituais, e depois vem o conhecimento. Mas o caminho da devoção também leva a Deus, e se sentimos devoção aos pés de lótus do Senhor, se gostamos de cantar Seu Nome, então não precisamos nos cansar controlando as paixões. As coisas acontecem sozinhas. Um homem cujo filho acaba de morrer perde a vontade de brigar com os vizinhos, de atender um convite para jantar, de ostentar sua vaidade diante das pessoas ou de correr atrás do prazer. Se uma mariposa avista a luz, não volta para a escuridão.

Dr. (sorrindo) — Ela prefere jogar-se na chama e morrer!

SR — Claro que não! O devoto não é queimado como uma mariposa. A luz para a qual se dirige é como a luz de um diamante, brilhante mas suave e tranqüilizadora. Essa luz não queima o corpo, ela traz paz e bem-aventurança.

É verdade que a yoga do conhecimento leva a Deus, mas como é difícil! “Eu não sou o corpo, nem o intelecto; não sinto doença, nem tristeza, nem preocupação; minha natureza é a de Satchidananda, estou além do prazer e da dor, não sou dominado pelos sentidos”. É fácil dizer! Quando se trata de assimilá-lo e colocá-lo em prática é outra coisa. Um espinho me picou, minha mão está cheia de sangue, como afirmar “Qual espinho? Estou muito bem!” Não, primeiro é preciso queimar esse espinho na chama do conhecimento.

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Muitas pessoas acreditam que é necessário ler muitos livros para atingir a Verdade. Mas é melhor ouvir do que ler, e é melhor olhar do que ouvir. Ler um livro sobre Benares, ouvir alguém que está voltando de lá, ou ir até lá22 a gente mesma, são três coisas bem diferentes.

Os jogadores de xadrez concentrados numa partida nem sempre vêem as conseqüências de suas jogadas tão bem quanto os que observam sem jogar. Os mundanos pensam que compreendem tudo, mas estão com o nariz colados em seus negócios. Como eles mesmos estão jogando, não conseguem julgar corretamente. Mas aqueles que renunciaram ao mundo, os sadhus, não têm apego e compreendem melhor a partida. Eles próprios não jogam e têm mais capacidade de apreciar as jogadas.

Dr. (aos discípulos) — Esse homem (SR) nunca teria atingido uma tal sabedoria lendo livros. Faraday23 descobriu inúmeras verdades científicas graças à sua intuição direta da natureza. Não teria podido ir muito longe lendo livros. As fórmulas matemáticas só servem para confundir o cérebro24, colocando obstáculos na trajetória do pesquisador original25.

SR (ao doutor) — Quando era jovem, eu rolava na poeira do panchavati suplicando “Mãe, faz-me conhecer o que as pessoas conseguem praticando os ritos, o que elas conseguem praticando yoga, o que conseguem pela discriminação”. Como dizer tudo isso a vocês? Ah, em que estado eu me encontrava na época! O sono tinha me abandonado!

O pamahamsa cantou essa canção de Ramprasad26 :

 

Meu sono acabou. Não dormirei mais.

Nas chamas da yoga eis-me despertado.

Devolvi o sono à Senhora do sono,

Fiz dormir o próprio sono.

 

Não li nenhum livro, não fiz outra coisa senão repetir o Nome da Mãe e vejam, todos me respeitam. Shombhu Mollik dizia de mim: “Aqui está Shantiram Singh27, sem espada nem escudo” (risos).

A seguir, falou-se da peça que o Sr. Girish Ghosh escrevera sobre a vida de Buddha. Ele havia convidao o doutor, que a vira com grande prazer28.

Dr (a Girish) — O senhor é um malvado! Quer me fazer sair todas as noites!

SR (a M) — O que ele está dizendo? Eu não entendi.

M — Diz que gosta muito de teatro.

 

3  SR (a Ishan) — Diga algo ao doutor. Ele não acredita no avatar.

I — Desculpe-me, não estou com vontade de discutir. Não gosto dessas controvérsias.

SR (zangado) — E por quê? Você não encontra nada de bom para lhe dizer?

I (ao doutor) — É por causa do nosso orgulho que nos falta fé. O corvo Bushandi29 não queria reconhecer que Rama era um avatar. Para escapar da ira de Rama ele percorreu a terra, o mundo lunar, o mundo dos deuses e o monte Kailasha sem conseguir um abrigo. Então, entregou-se a Rama e tomou refúgio nEle. Rama pegou-o e engoliu, e Bushandi encontrou-se de novo em sua própria árvore, em seu próprio ninho. Uma vez despedaçado seu orgulho, compreendeu que Ramachandra tinha uma forma humana, mas que continha em si toda a criação. O céu, a lua, o sol, as estrelas, as montanhas, os homens, os animais, as árvores estavam contidos nEle.

SR — Não é fácil compreender que Ele seja ao mesmo tempo um e múltiplo, ao mesmo tempo o absoluto e o relativo. Dizer que Ele não pode se tornar um ser humano é afirmar algo que ultrapassa nossa mente limitada. Essa mente limitada é incapaz de apreender tudo isso. Uma jarra de um litro poderá conter quatro litros de leite? Devemos acreditar no que dizem os sadhus e os mahatmas que se aproximaram de Deus. Os sadhus têm a mente constantemente voltada para Deus, como os advogados para os processos. Você acredita na história do corvo Bushandi?

Dr. — Acredito naquilo que acho bom acreditar. Se Deus quiser me fazer acreditar mais, Ele me mostrará e minhas dúvidas desaparecerão. Como poderia eu considerar Rama como um avatar? Vejam como ele matou Vali30! Traiçoeiramente, à maneira de um ladrão. Isso não é a ação de um Deus, mas de um homem.

Girish — Ao contrário, senhor, só um Deus poderia fazer aquilo!

Dr. — E depois, quando ele repudiou Sita.

Girish — Um homem não teria podido fazer aquilo tampouco, senhor. Só Deus.

Ishan — Por que o senhor não aceita o avatar? O senhor mesmo disse que Aquele que criou as formas deve ter uma forma, mas Aquele que criou a mente deve ser sem forma. O senhor disse que na criação de Deus tudo é possível.

SR (rindo) — Ele nunca viu nos seus livros de sayence31 que Deus possa tomar forma humana. Então como é que vai acreditar nisso? (risos).

Ouçam uma história. Um homem entra e diz: “Ouçam, acabo de ver uma casa desabando com um barulho terrível!” O outro sabe inglês e responde: “Um instante, passe-me o jornal”. Percorre o jornal e nem uma palavra sobre casas desabadas. Então diz: “Você está nos contando lorotas! Não está no jornal” (risada geral).

Girish (ao doutor) — O senhor pelo menos deve considerar Sri Krishna como Deus. Ele em todo caso não é um homem. O senhor deve me dizer se é um Deus ou um demônio32.

SR — É necessário simplicidade para adquirir rapidamente a fé. É muito difícil quando se está impregnado pela mentalidade mundana, que traz consigo diversas formas da dúvida, e diversas formas do orgulho, o orgulho da riqueza, do saber, etc. — mas ele (o doutor) é simples.

Girish — Então, o que é que o senhor diz? Uma mente complicada poderá atingir o conhecimento?

Dr. — Claro que não!

SR — Como Keshob era ingênuo! Levaram-no para visitar o templo de Kali cerca de quatro horas da tarde e ele perguntou quando iam servir os hóspedes e os mendigos33.

A fé e o conhecimento crescem juntos. As vacas que se fazem de difíceis  dão leite gota a gota34, enquanto aquelas que engolem tudo o que se lhes dá, as folhas dos legumes, as cascas, a palha do arroz, o soro, dão leite aos baldes (risos).

Não se pode alcançar a Deus sem ter a fé de uma criança. Se sua mãe lhe diz “Este é seu tio”, a criança acredita imediatamente que é mesmo seu tio. Se ela lhe diz “Tem um bicho papão aqui”, a criança fica convencida de que existe um bicho-papão no quarto. Quando Deus vê tamanha fé de criança, fica tocado em Sua misericórdia. Mas a mente mundana não consegue atingi-Lo.

Dr. (aos discípulos) — O leite dessas vacas que comem qualquer coisa não vale nada. Há tempos deram-me esse leite e fiquei muito doente. Precisei de muito tempo para descobrir a causa, uma vaca alimentada com resíduos de cereais etc. Que problema! Tive que ir me refazer em Lucknow e isso me custou ao todo doze mil rúpias35! (risada geral).

Nem sempre é fácil descobrir as causas das doenças. Chamaram-me para cuidar da filhinha de sete anos dos babus de Pakpara, que estava com coqueluche. Eu não conseguia de jeito algum encontrar o motivo, quando fiquei sabendo que a jumenta que fornecia o leite tinha se resfriado!

SR — Que história é essa! “Meu carro parou debaixo de um pé de tamarindo e agora estou com acidez no estômago” (o doutor e os discípulos riem).

Dr. (rindo) — Um dia o capitão de um navio estava com dor de cabeça. Os médicos fizeram uma junta e colocaram um cataplasma no casco (risos).

SR (ao doutor) — É muito necessário visitar os sadhus. Trata-se de curar uma doença. É preciso fazer o que dizem os sadhus. Se nos limitamos a ouvir conselhos não acontece nada. Temos que engolir os remédios e seguir uma dieta. Ficar de regime.

Dr. — Ah sim, o regime é sempre o principal.

SR — Existem três tipos de médico36, os bons, os médios e os maus. O mau médico examina o doente e vai embora dizendo: “Tome direito seus remédios”. E não se informa se o doente os está tomando ou não. O médico regular explica ao doente por que deve tomá-los e lhe diz suavemente: “Se você não tomar seus remédios, não vai sarar; olhe essas pilulinhas bonitas, fui eu mesmo que preparei para você”. Mas um verdadeiro médico exige absolutamente que o doente os tome, e se for preciso o forçará pondo o joelho em seu peito.

Dr. — Mas com certos tratamentos não é preciso pôr o joelho no peito do doente. Por exemplo, a homeopatia.

SR — Não assusta ninguém se um bom médico lhe põe o joelho no peito. Da mesma forma existem três tipos de mestres espirituais. Os maus dão a instrução ao discípulo sem se preocupar se ele a seguirá. Os médios lhe dão também todo tipo de explicações, apresentam-lhe as coisas sob todos os ângulos, demonstram-lhe muita amizade. Mas o verdadeiro mestre procura ter certeza de que o discípulo esteja fazendo o que foi dito, e se necessário usa a força.

A renúncia ao sexo e ao dinheiro convém aos sannyasis. Um sannyasi nem sequer olha para o retrato de uma mulher. As mulheres são como picles de tamarindo; nem precisamos vê-las para ficar com água na boca. Mas isso não é para vocês. Vocês não são sannyasis. Precisam viver entre as mulheres, tanto quanto possível sem apego. De vez em quando precisam isolar-se para pensar em Deus, longe da companhia das mulheres. Quando se adquiriu fé e devoção, pode-se levar uma vida muito desapegada. Marido e mulher podem viver como irmão e irmã depois de ter um filho ou dois, e orar a Deus que lhes permita não ter outros e não correr atrás da satisfação dos sentidos.

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Girish (ao doutor, rindo) — E então? Já faz mais de três horas que o senhor está aqui. Quando é que vai cuidar de seus pacientes?

Dr. — Oh! A medicina e os doentes! Por causa do seu pamahamsa tudo passou para segundo plano.

SR — Cuidado! Existe um rio chamado Kormonasha37; é muito perigoso banhar-se nele. Quem mergulha ali torna-se incapaz de trabalhar (o doutor e os discípulos riem).

Dr. (aos discípulos) — Como vêem, tornei-me um de vocês. Não pensem que venho aqui só para cuidar de sua doença. Podem me considerar como um de vocês.

SR — Isso é o que se chama de amor desinteressado! Se for assim, é uma coisa magnífica. Prahlada amava a Deus assim. Os devotos desse tipo oram: “Ó, Senhor, não desejo nem riqueza nem fama, nem conforto. Dá-me apenas amor puro a Teus pés de lótus”.

Dr. — É verdade. Estive olhando as pessoas que se prosternam diante de Kali. Elas vêm cada uma com seus desejos: encontra-me um emprego, cura-me, etc. (Dirigindo-se a SR) — Falar muito não é bom para sua doença. Permito que você fale apenas com o médico (todos riem).

SR — Cure-me, por favor. Não posso mais cantar louvores a Deus.

Dr. — A meditação deveria ser o bastante para você.

SR — O que está dizendo? Que vida aborrecida! Quero comer o meu peixe preparado de todas as maneiras possíveis: com curry, tamarindo, ou frito. Quero celebrar o puja, repetir os Nomes do Senhor, cantar, meditar, dançar.

Dr. — Eu também não gosto de monotonia.

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SR — Teu filho Omrito não acredita no avatar. Não tem importância. A fé em Deus sem forma leva até Ele. Mas a fé em Deus com forma também leva. Só o que se precisa é crer, e entregar-se nas mãos de Deus. O homem é ignorante por natureza, tem o direito de se enganar. Uma jarra de um litro poderá conter quatro litros de leite? Então, qualquer que seja seu caminho, reze para Ele com fervor. Ele é o nosso guia interior, ouve imediatamente as orações sinceras. Seja pelo caminho do Deus com forma, ou do Deus sem forma, é a Ele que chegamos. Quer você coloque a manteiga de comprido ou de atravessado, o pão com manteiga tem o mesmo gosto. Seu filho é um bom rapaz.

Dr. — Ele se tornou seu discípulo.

SR (rindo) — Não existe ninguém neste mundo que seja meu discípulo. Eu é que sou discípulo de todos. Somos todos filhos de Deus, todos servidores de Deus. E eu também sou filho de Deus, servidor de Deus. O “Tio Lua” é tio de todas as crianças38!

Essas palavras provocaram o riso geral e alegraram a todos.

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DIÁLOGO 19*

EM SHYAMPUKUR: 25 DE OUTUBRO DE 1885

Este diálogo ocorreu três dias após o anterior. Ao invés de uma discussão teológica sobre o avatar, mostra a exaltação crescente dos discípulos ao redor de Ramakrishna doente, o que chega a contagiar até mesmo o próprio doutor. Na verdade, mais tarde, Narendra irá firmar sua autoridade para fazer baixar a emoção, pelo menos no grupo de jovens “permanentes” que optaram por se revezar para cuidar do Mestre, apesar das freqüentes pressões familiares1.

 

Estamos no domingo 25 de outubro. Sri Ramakrishna veio morar em Calcutá, no bairro de Shempukur, para cuidar de seu câncer na garganta. Hoje ele está esperando a visita do Dr. Shorkar.

O tratamento do Mestre estava nas mãos do Doutor. M era encarregado de informá-lo a cada dia sobre o estado do pamahamsa. Aquele dia, às seis horas da manhã, ele então chegou, prosternou-se diante do Mestre e pediu notícias suas. O Mestre respondeu: “Você vai dizer ao doutor que esta noite fiquei com a boca cheia de saliva, que estou tossindo, etc. Pergunte-lhe se posso tomar um banho”.

Às sete horas M chegou à casa do Dr. Shorkar e fez seu relatório. O doutor estava em companhia de seu velho professor e de alguns conhecidos. Dirigiu-se ao professor dizendo: “Senhor, estou preocupado com o pamahamsa. Acordei às três horas da manhã e não pude dormir de novo. Ainda agora estou com o pamahamsa na cabeça!”

Os outros riram. Um deles disse: “Senhor, parece que alguns consideram o pamahamsa como um avatar. O senhor o vê todos os dias. O que pensa dele?”

Dr. — Humanamente falando, tenho o maior respeito por ele2.

M (ao amigo do doutor) — O senhor doutor tem-nos feito o favor de visitá-lo com freqüência.

Dr. — Que favor!

M — Não quero dizer em relação a ele, mas a nós.

Dr. — O senhor não sabe a perda3 muito real que isso me causa. Cada dia tenho que renunciar a duas ou três visitas, e quando vou no dia seguinte não posso exigir pagamento, já que fui sem ser chamado.

Começaram a falar do Sr. Mohimachoron Chokrobortti4. Na véspera ele estava lá no mesmo horário que o doutor, e este o ouviu dizer ao Mestre: “Acho que o senhor decidiu ficar doente para aumentar mais a vaidade do doutor”.

M — Mohima Chokrobortti é um velho conhecido. Quando o senhor deu conferências sobre medicina em sua casa, ele veio ouvi-lo.

Dr. — É mesmo? Aquele homem é de um obscurantismo! Inclinei-me diante dele saudando o “terço inferior de Deus5”. Os três modos fazem parte de Deus, não é? Eu o ouvi dizer “O senhor quis esta doença para aumentar a vaidade do doutor”.

M — Mohima Chokrobortti está convencido de que, se o pamahamsa quisesse, poderia curar-se a si mesmo.

Dr. — Ah! Realmente! Curar-se a si mesmo! Nós médicos sabemos o que é de fato um câncer, e não podemos curá-lo. E ele que não sabe nada vai se curar sozinho? (Dirigindo-se a seus amigos) — Vocês estão vendo? A doença dele é incurável, mas eles o tratam com a atitude do devotee6.

 

2  M voltou conversando com o doutor. Depois do almoço, por volta das três horas, retornou à casa do Mestre, relatou-lhe a conversa com o doutor e disse-lhe que este parecia aborrecido.

SR — O que aconteceu?

M — Ele ouviu dizer que “o senhor quis ficar doente para aumentar a vaidade do doutor”.

SR — Quem disse isso?

M — Mohima Chokrobortti.

SR — E aí?

M — O doutor diz que, já que os três modos coexistem em Deus, então Mohima é “o modo obscuro de Deus” (o Mestre riu). Ele disse também que, por estar tão preocupado com o senhor, ficou acordado desde as três horas da manhã e às oito horas “ainda estava com o pamahamsa na cabeça”.

SR (rindo) — Com sua educação inglesa, não posso lhe dizer para meditar em mim, mas ele está fazendo isso por conta própria!

M — Ele também disse “as a man I have for him the highest regard” (como homem, tenho o maior respeito por ele) o que significa que ele não aceita a idéia do avatar, mas enquanto homem ele respeita o senhor tanto quanto é possível.

SR — E o que mais?

M — Eu lhe perguntei: “Quais são suas ordens para o tratamento hoje?” Ele respondeu: “Ainda não está claro em minha cabeça, vou ter que ir até lá” (o Mestre riu). Mas ele disse também: “Você não sabe quanto dinheiro isso me faz perder, dois ou três pacientes por dia”.

 

3  Um pouco mais tarde, o Sr. Bijoykrishno Gosshami chegou para visitar o Mestre, acompanhado por alguns brahmos7. Fazia muito tempo que Bijoy vivia em Dhaka; Acabava de chegar a Calcutá, voltando de uma grande peregrinação ao oeste. Ao entrar, prosternou-se diante do Mestre. Estavam presentes Norendro, Mohima, Nobogopal, Bhupoti, Latu, M, o pequeno Noren8 e muitos outros devotos.

Mohima (a Bijoy) — O senhor está voltando de uma peregrinação, visitou muitos lugares, diga-nos o que viu.

Bijoy — O que posso lhes dizer? Tudo o que se procura por lá pode-se encontrar aqui mesmo. São viagens inúteis! Corremos de um lugar para outro buscando a presença de Deus, aqui e ali encontramos um ou dois anás dEle9, ou até quatro em algum lugar, não mais. Mas aqui encontramos todos os dezesseis anás reunidos!

Mohima — O senhor tem razão, mas é Ele que nos faz viajar, Ele que nos faz parar.

SR (a Norendro) — Você vê como está o Bijoy agora? Seu rosto mudou, manifestou-se o que ele tem dentro de si. Eu sei reconhecer um pamahamsa pelo pescoço e a testa — sei dizer se um homem é um pamahamsa ou não.

Mohima  O senhor está comendo menos10?

Bijoy — Cada vez menos. (Dirigindo-se a SR) — Fiquei sabendo que o senhor estava doente e vim depressa. Lá em Dhaka...

SR — Então?

Bijoy não terminou sua frase e calou-se por um momento.

Bijoy — Eu não poderia acreditar se o senhor não tivesse me mostrado. Todos os dezesseis anás aqui mesmo!

SR — Kedar diz: “Noutros lugares eu não tinha encontrado o que comer, mas aqui enchi o estômago”.

Mohima — Encheu o estômago? Mais do que pode caber!

Bijoy (a SR, juntando as mãos) — Compreendi quem o senhor é! Não preciso mais de explicações!

SR (entrando em êxtase) — Se isso tem que ser, que seja!

Bijoy — Compreendi tudo!

Dizendo isso, lançou-se aos pés do Mestre e apertou-os contra o peito. Sri Ramakrishna estava em um êxtase profundo, inerte como uma estátua. As testemunhas da atitude de Bijoy, e daquela cena extraordinária, foram tomados de emoção. Alguns começaram a chorar, outros recitaram versículos de louvor em sânscrito. Contemplavam o Mestre em êxtase, cada um compreendendo-o a seu modo — como um devoto cheio de amor, como um sadhu, e alguns como um avatar do próprio Deus num corpo humano — cada um conforme seu ponto de vista.

Mohima estava com os olhos cheios de lágrimas. Cantarolava “Vejam, vejam esta imagem do amor”, ou então recitava, como se estivesse na presença do próprio Brahman, um versículo sânscrito: “eterno Satchidananda, para além do uno e do múltiplo”. Nobogopal chorava. Bhupoti começou a cantar11:

 

Glória a Ti, Brahman Supremo, inacessível e sem margens,

                mais alto que tudo e mais profundo.

Clarão da verdade, origem do amor e fonte de todo o bem.

Este mundo multicolorido é fruto de Teus pensamentos,

Tua altíssima poesia.

O sol e a lua, obedientes, aparecem com Tua ordem,

                com Tua ordem desaparecem.

As estrelas, as nuvens, são as letras

com as quais se escreve Teu poema no firmamento.

                A guirlanda das estações, desenrolada para Teu louvor,

                acompanha os prazeres.

As flores expressam Teu encanto, a água pura expressa

                Tua paz, e o raio Teu terror.

Os sábios, de século em século, contemplam sem se cansar

                Tua essência inexprimível.

A ronda dos universos, num turbilhão de alegria, rola-os

                a Teus pés.

Homens, mulheres, anjos e deuses, em uníssono se maravilham

                ao ver Teu esplendor.

Ó fonte de todos os dons, dá a sabedoria, o amor,

dá a paz e o refúgio.

 

Bhupoti cantou ainda:

 

No oceano de Consciência erguem-se as ondas do amor divino,

O grande êxtase, jogo de amor; de doçura pode-se morrer.

Prazeres diversos, aspectos jamais ouvidos do amor,

Mergulhar, voltar à tona, flutuar, brincar. Imagens sempre novas.

                (Ó Hari, Hari, digam Hari!)

Na grande união tudo se funde num só,

Tempo e lugar, distância e razão, tudo se apaga.

Embriagada de alegria, dize “Hari”, ó minha alma!

E dança de braços erguidos!

 

E mais12:

 

Destruídos medo e moral, obras e ritos,

E rejeitado o orgulho de casta ou de família,

Onde estou? E onde Hari? Roubaste minha alma,

E agora, amigo, Tu me deixaste.

(Por que me aproximei do oceano de amor?)

Meu coração transborda de êxtase, nada o sacia.

Premdas sorri e diz: “Ouçam, monges e mundanos,

Este é o novo caminho!

Não receiem nada, não, não receiem nada!

 

Após um longo momento, Sri Ramakrishna voltou ao estado normal.

SR (a M) — Que crise eu tive! Depois sinto vergonha. Como um homem possuído por um fantasma — como se não fosse mais eu. Quando saio desse estado não sei mais contar, e se tento sai 1-7-8 ou qualquer coisa assim.

Norendro — É porque tudo é um, não é?

SR — Não, além do um e do dois.

Mohima — É isso mesmo, “além do um e do múltiplo”.

SR — Aos diabos todos esses cálculos! Não se chega a Deus pelo raciocínio. Ele está além das Escrituras, dos Vedas, Puranas e Tantras. Quando vejo um jñani segurando um livro, eu o considero apenas como um rajarshi13. Um brahmarshi não traz nenhum sinal externo. Sabem para que servem as Escrituras14? Alguém escreveu uma carta para pedir cinco libras de doces e um corte de tecido. Outra pessoa a recebeu, leu e foi comprar os doces e o tecido, depois jogou fora a carta. Para que guardá-la?

 

Bijoy — Eu sou testemunha de que os doces realmente chegaram.

SR — Deus pode descer em forma humana. Ele está presente em todos os lugares e mentes, mas só o avatar satisfaz os desejos dos seres humanos e corresponde às suas necessidades. Sabem como? Pensem numa vaca15. Se vocês tocam qualquer parte de seu corpo, estão tocando a vaca. Tocar o chifre é tocar a vaca, mas o leite só vem do ubre. (risos).

Mohima — Se queremos leite, podemos até tentar colocar o chifre na boca. Mas é preciso sugar o peito (risos).

Bijoy — Mas o bezerro dá cabeçadas aqui e ali antes de encontrar o peito.

SR (rindo) — Sim, mas quando o vemos fazendo isso nós lhe damos o peito (risos).

 

4  No meio dessa conversa o doutor chegou para examinar o Mestre e sentou-se. Disse: “Esta noite a partir das três horas fiquei acordado pensando em você. Dizia comigo mesmo ‘Pode ser que ele tome friagem’, e outras idéias do gênero”.

SR — Tossi e senti uma sede terrível. Hoje de manhã eu estava com a boca cheia de saliva, e sentia um espinho na garganta.

Dr. — Fui informado hoje de manhã.

Mohimachoron fizera grandes viagens por todo o país. Contou que no Ceilão não se vê ninguém rindo16. O doutor disse “É mesmo? Vou fazer uma pesquisa”, e todo mundo riu. Depois falou-se da profissão de médico.

SR (ao doutor) — A medicina é considerada uma profissão muito nobre. Quando se cuida das dores dos outros por compaixão, sem receber dinheiro, é de fato um trabalho magnífico. Mas de tanto fazer isso por dinheiro, a pessoa pode tornar-se muito dura. E ganhar a vida examinando a urina e a cor dos excrementos das pessoas é uma profissão inferior17.

Dr. — Se fosse apenas isso, seria de fato uma profissão ruim, mas... Enfim, não vou me vangloriar em sua presença.

SR — Ah sim, praticar a medicina de modo desinteressado, para ajudar o próximo, é muito bonito.

De toda maneira, qualquer que seja sua profissão, os mundanos têm grande necessidade da companhia dos sadhus. Aqueles que têm devoção buscam-na por si mesmos. Eu sempre digo que um fumante de haxixe18 procura seus semelhantes, despreza os que não compreendem seu prazer e foge deles, mas se encontra um outro fumante ambos se regozijam. Caem nos braços um do outro e se beijam (risada geral). O abutre se regozija na companhia de outros abutres.

Dr. — Mas os abutres evitam os corvos... Na minha opinião, não deveríamos cuidar apenas dos homens, mas de todos os seres vivos. Eu sempre dou pão para as andorinhas. Faço bolinhas de pão e as andorinhas vêm em bandos para comê-las no terraço.

SR — Muito bem! São belas idéias. Alimentar os animais é uma ocupação dos sadhus. Eles dão açúcar para as formigas.

Dr. — Ninguém vai cantar hoje?

SR (a Norendro) — Então, cante alguma coisa para nós.

Norendro cantou, acompanhado pela tanpura e o tambor.

 

Como é belo o Teu Nome, ó refúgio dos humildes,

Doce chuva que acalma a audição, encanta a alma,

Ele é o único tesouro, portador da eternidade.

Aquele que O canta se torna imortal,

Dissipando imediatamente as tristezas acumuladas.

A doçura do Teu Nome ao chegar aos ouvidos

Leva o coração a cantar, cheio de felicidade.

Ó Dono dos corações, essência de vida e de alegria.

 

Norendro cantou ainda:

 

Ó Mãe, enlouquece-me com Teu amor,

Para que preciso compreender e raciocinar?

Teu amor é um vinho poderoso, perderei a cabeça ao tomá-lo.

Ladra de almas, mergulha-me nesse oceano!

No asilo em que os colocaste, alguns choram e alguns riem,

Alguns não param de dançar, cheios de felicidade.

Chaitanya, Moisés, Jesus, perdidos no êxtase.

Mãe, quando me deixarás juntar-me a eles?

Os loucos entram no paraíso, mestre e discípulos reunidos,

O jogo do amor quem compreenderá?

E Tu mesma, não és a coroa da loucura?

Por uma migalha do tesouro, Premdas mendiga a Teus pés.

 

Esse cântico teve um efeito extraordinário. Todos ficaram em estado de exaltação. O pandit19 levantou-se de repente, esquecendo sua dignidade, repetindo “Mãe, enlouquece-me com Teu amor”. Bijoy levantou-se primeiro, como que louco de êxtase. De pronto o Mestre se ergueu, esquecendo inteiramente sua terrível doença. O doutor, à sua frente, levantou-se também. Doente e médico haviam esquecido tudo! O jovem Noren entrou em êxtase (bhava samadhi) assim como Latu. Os estudos científicos não haviam preparado o doutor para aquele espetáculo, que ele olhava estupefato. Via aquelas pessoas tomadas pelo êxtase, privadas de consciência externa, rígidas. Ao sair do êxtase, alguns riam, alguns choravam. Dir-se-ia uma reunião de bêbados.

 

5  Após esses acontecimentos, cada um voltou ao seu lugar. Deviam ser oito horas da noite. Começaram a falar novamente.

SR (ao doutor) — Então, o que diz a sua sayence (ciência) sobre o que você acaba de ver? Você acha que é uma impostura?

Dr. — Já que todas essas pessoas o sentiram, penso que se trata de algo natural20, e não uma comédia. (Dirigindo-se a Norendro) — Quando você cantou “Mãe, enlouquece-me ...”, não pude me conter e me levantei. Depois controlei meus sentimentos com muita dificuldade. Creio que não se deve mostrá-los.

SR (rindo) — Você é sólido e imutável como o monte Sumeru (risada geral). Você é um espírito profundo. Não mostra nenhuma emoção, do mesmo modo que Rupa e Sanatana21. Quando se lava um elefante num poço, toda a água fica agitada, mas num grande lago quase nem aparecem ondas. Alguns nem sequer têm emoção visível. Radha dizia à sua amiga Brindé “A partida de Krishna fez vocês chorarem tanto, minhas amigas, e eu que sou tão dura, meus olhos não derramaram uma lágrima!” Brindé respondeu: “Eu sei por que não há lágrimas em seus olhos. Em seu coração o braseiro da separação queima sem parar e secou todas as suas lágrimas”.

Dr. — A gente sempre perde quando discute com você (risos).

Pouco a pouco mudaram de assunto. O Mestre contou seus primeiros êxtases e falou sobre como conseguir livrar-se da ira, da luxúria, etc.

Dr. — Ouvi dizer que uma vez você estava em êxtase e um homem malvado o encheu de pontapés.

SR — Foi o professor que contou isso para você! Era Chondro Haldar, o sacerdote de Kalighat22. Ele vinha ver Sejobabu com freqüência. Uma vez que eu havia sido tomado pela embriaguez de Deus, estava estendido no chão numa sala escura. Chondro Haldar pensava que eu era um impostor procurando ser bem visto pelo babu. Ele entrou e me deu chutes no escuro. Meu corpo ficou coberto de manchas roxas. Todo mundo queria que me queixasse para Sejobabu, mas eu proibi que lhe contassem.

Dr. — Tudo isso é o jogo de Deus. Isso ensina às pessoas como se consegue dominar a cólera e o que é de fato o perdão das ofensas.

Enquanto isso, os devotos e Bijoy estavam conversando entre si.

Bijoy — Sinto como se alguém me acompanhasse sem parar e me mostrasse tudo o que acontece em lugares muito distantes.

Norendro — Como um anjo da guarda23.

Bijoy — Eu o vi (SR) em Dhakka! Cheguei a tocar seu corpo!

SR (rindo) — Devia ser outra pessoa!

Norendro — Eu também o vi muitas vezes. (A Bijoy) — Então como poderia lhe dizer que não acredito no senhor24?

_____________

 

DIÁLOGO 20*

EM SHYAMPUKUR: 26 DE OUTUBRO DE 1885

 

Este diálogo ocorreu um dia após o anterior e contrapõe o doutor Sarkar, espírito moderno, defensor do livre-arbítrio e da responsabilidade social, aos discípulos partidários do servo-arbítrio. Determinismo religioso do Todo Poderoso e determinismo “científico” do karma atacam juntos o doutor, que se inclina diante da força numérica dos opositores sem ficar convencido, e finalmente se vê absolvido pelo próprio Ramakrishna. As grandes controvérsias da vida religiosa, que agitaram a história intelectual do Ocidente, são retomadas aqui à maneira dos Irmãos Karamazov entre um homeopata e um ator, numa mistura um tanto cômica de bengali e inglês — e sob o olhar do mais alto “starets” da Índia.

 

O doutor Shorkar, encarregado de cuidar do Mestre, vinha vê-lo quase todos os dias, e depois de se informar sobre a doença, ficava conversando com ele e seus discípulos.

Estamos no outono, alguns dias depois do Durga Puja. Para os discípulos, a alegria da grande festa havia-se mesclado à dor. Há três meses eles sabiam que o Mestre estava com câncer na garganta, e o Dr. Shorkar e os outros médicos os haviam informado de que aquela doença era incurável. Os discípulos transtornados ofereceram silenciosamente a Deus, de todo o coração, o sacrifício de suas lágrimas. Quando o Mestre veio morar em Shempukur, eles se dedicaram a servi-lo. Nessa época, Norendro e os outros jovens discípulos começaram a galgar a escada da renúncia “ao sexo e ao dinheiro”.

A terrível doença não impedia a multidão de acorrer para conseguir seu darshan. Cada qual encontrava junto dele a paz e a alegria. Sri Ramakrishna era um oceano de misericórdia, que dava sem contar. Preocupava-se com o bem-estar de todos e conversava com eles tanto tempo quanto necessário. Finalmente, os médicos, e em particular o Dr. Shorkar, proibiram-no absolutamente de ensinar — mas o próprio Dr. Shorkar acabava passando de seis a sete horas seguidas em sua companhia. Dizia: “Eu proíbo você de falar com quem quer que seja, a não ser comigo”. Os discursos do Mestre haviam cativado inteiramente o doutor.

Hoje, 26 de outubro de 1885, M chega por volta das dez horas e pede notícias para fazer seu relatório ao doutor. Conversa com Sri Ramakrishna.

SR (a M) — Estou me sentindo muito melhor. Deve ser o último remédio que me fez bem. Eu poderia tomar de novo agora mesmo.

M — Vou ver o doutor para informá-lo e ele dirá o que o senhor deve fazer.

SR — Ouça, Purno não tem vindo há vários dias e minha mente não fica em paz.

M — Kali, você quer ir buscar o Purno?

Kali1 — Estou indo.

SR (a M) — O filho do doutor é um ótimo rapaz. Diga-lhe para trazê-lo mais uma vez.

 

2  M encontrou o doutor na companhia de alguns amigos. O doutor lhe disse: — Estávamos falando justamente de você há um minuto. São mais de dez horas, você está atrasado e eu estava pensando “O que estará acontecendo? Contanto que não lhe tenha acontecido nada”. (Dirigindo-se a um de seus amigos) — Ah, cante essa canção para nós. E o amigo cantou:

 

Canta Seu Nome sem trégua, enquanto tiveres fôlego,

Ele cuja glória resplandecente, luz do universo,

Espalha-se por todas as partes, dando felicidade a todos os seres,

Ele cujo amor transborda, enchendo de alegria os corações,

Ele cuja graça em um instante lava todas as tristezas.

Em cima, em baixo, na terra, no abismo e nos céus,

Todos os seres se esgotam na busca de Seus limites.

Morada da consciência, pedra filosofal, olhar imóvel,

Solidão inviolada, quem o vê esquece todo sofrimento.

 

Dr. — Essa canção é bonita, não? Principalmente “todos os seres se esgotam na busca de Seus limites”.

M — É verdade, tem muito encanto. E nos faz sentir o infinito.

Dr. (afetuosamente) — Já está tarde. Você comeu alguma coisa? Eu primeiro como, aí pelas dez horas, depois saio para visitar os doentes. Sair sem comer é ruim para a saúde. Ouça! Eu gostaria de convidar todos vocês um dia2.

M — Isso nos daria um grande prazer, senhor.

Dr. — Aqui, ou lá? Como vocês quiserem.

M — Aqui ou lá estaria ótimo, senhor. Ficaremos todos muito felizes.

Falou-se do culto de Kali.

Dr. — Parece que Kali não é mais que uma velha feiticeira dos Shontals3.

M (estourando de rir) — Onde o senhor foi encontrar isso?

Dr. — Ouvi em algum lugar.

M riu novamente. A seguir falaram da cena da véspera, em que o doutor assistira ao êxtase de Bijoy e alguns outros.

Dr. — Pois é, testemunhei o êxtase. Mas me pergunto se tanto êxtase é uma boa coisa.

M — O pamahamsa diz que não existe excesso quando se trata do êxtase proveniente da consciência de Deus. Esse êxtase não prejudica. Ele o compara à luz de uma jóia, que não queima o corpo mas refresca-o.

Dr. — A luz de uma jóia — ou seja, uma luz refletida4.

M — Ele diz também que um homem que mergulha no oceano de ambrosia não se afoga: é o oceano da imortalidade. Mergulhando ali o homem não se aniquila. Ao contrário, torna-se imortal, com a condição de manter a fé em Deus.

Dr. — Sim, concordo.

O doutor levou M de carro até a casa do pamahamsa, detendo-se no caminho para ver alguns doentes. A conversa prosseguiu. O doutor voltou à questão da “pretensão de Chokrobortti”.

M — Ele convive com o pamahamsa, portanto, mesmo que tenha vaidade, dentro de algum tempo ela desaparecerá. A vaidade não se mantém em sua presença, fica reduzida a migalhas. Nele mesmo não resta mais ego, então quando se encontra em sua presença o ego se vai. Veja o Sr. Biddashagor, um homem tão célebre, com que humildade, com que cortesia ele o tratou. O pamahamsa fora vê-lo em Badurbagan. No momento de partir, cerca de nove horas da noite, Biddashagor o acompanhou da biblioteca até o carro, carregando ele mesmo a lanterna. Ajudou-o a subir e permaneceu de mãos juntas até o momento em que o carro se afastou.

Dr. — O que o Sr. Biddashagor pensa sobre ele?

M — Naquele dia demonstrou muito respeito. Mas ao falar comigo mais tarde, disse-me que não gostava muito do que os vishnuístas chamam de êxtases, etc. Exatamente como o senhor!

Dr. — Ficar de mãos juntas, pousar a cabeça nos pés de alguém, todas as coisa desse gênero me desagradam. Para mim a cabeça e os pés são a mesma coisa. Mas enfim, se alguém é de outra opinião nessa questão dos pés, eu não me oponho.

M — O senhor não aprecia os êxtases, etc. Mas o pamahamsa o qualificou como tendo um “espírito profundo”, o senhor se lembra? Ontem ele nos disse que quando um elefante se banha num poço toda a água fica agitada, enquanto que a água de um grande lago quase não se mexe. Um “espírito profundo” não se agita quando vem o êxtase, e ele diz que a sua é uma dessas.

Dr. — Não mereço o cumprimento. O que é o êxtase? Sentimentos. O que é a devoção e o resto? Sentimentos. Quanto mais os guardamos para nós mesmos, melhor. Alguns o conseguem, outros não.

M — Alguns também têm explicações para tudo, e outros não. O senhor sabe? O êxtase, a devoção e as outras coisas não são mercadoria banal. Na sua biblioteca eu vi o livro de Stebbing sobre o Darwinismo. Stebbing diz de qualquer modo que a mente humana conceba o mundo, explicando-o pela evolução ou por outra forma, o mundo não deixa de ser maravilhoso. Ele faz uma comparação que me agrada: a teoria da luz — quer você conheça a teoria das ondas ou não, a luz não deixa de ser maravilhosa.

Dr. — Sim. E você vê que Stebbing é darwiniano sem negar Deus.

M trouxe a conversa de volta ao pamahamsa.

Dr. — É um adorador de Kali, não é?

M — O que ele chama de Kali é um tanto especial. O que os Vedas chamam de Brahman supremo, ele chama de Kali. O que os muçulmanos chamam Allah, O que os cristãos chamam God, ele O chama Kali. Ele não crê numa multidão de deuses, mas num só. O que os sábios antigos  chamavam Brahman, O que os yoguis chamam Atman, Aquele que os devotos chamam Senhor (Bhagavan), o pamahamsa chama Kali.

Eu o ouvi contar a história de um tintureiro5 que só possuía uma tina para tintura. Quando alguém lhe trazia um tecido para tingir, ele lhe perguntava: “De que cor?” Se a pessoa dizia “verde”, ele o mergulhava na tina e o devolvia dizendo: “Aqui está o seu tecido tingido de verde”. Se dizia “vermelho”, ele o mergulhava na mesma tina e dizia: “Aqui está, tingido de vermelho”. E da mesma forma para o amarelo, o azul, etc. Um homem admirava aquela coisa extraordinária. Quando o tintureiro lhe perguntou “E você, meu amigo, que cor deseja?”, ele respondeu: “A que você usa para si mesmo”. Assim, encontramos todas as atitudes no pamahamsa. As pessoas de todas as religiões recebem dele a paz e a alegria. Mas sua própria atitude, o que ele é em profundidade, quem poderá compreender?

Dr. — “Ele é tudo para todos”. Não gosto disso, embora tenha sido dito pelo apóstolo São Paulo.

M — Não se pode compreender o estado do pamahamsa. Eu também o ouvi dizer que um especialista em tecidos distingue ao primeiro olhar o fio nº 40 do fio nº 41, mas os outros não vêem nada. Um pintor julga imediatamente a arte de outro pintor6, mas os outros não vêem nada. O estado do santo é algo profundo. Para compreender o cristo é preciso assemelhar-se ao Cristo. O estado do pamahamsa corresponde talvez ao que o Cristo disse: “Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito”.

Dr. — Muito bem. Como vocês estão se organizando para cuidar dele?

M — Por enquanto, cada manhã um dos mais velhos de nós assume a responsabilidade do dia. Ora Girish Babu, ora Ram Babu, Shuresh Babu, ou então Nobogopal, Kali Babu, etc.

 

3  Algum tempo depois, o carro parou diante da casa de Shempukur onde morava o Mestre. Era aproximadamente uma hora. O Mestre estava sentado em seu quarto no primeiro andar e muitos devotos estavam também sentados ali, entre os quais Girish Ghosh, o jovem Noren, Shorot7, etc. Todos olhavam atentamente para o grande yogui, o santo cheio de bem-aventurança. Ora ficavam seduzidos como uma serpente encantada por um mantra, ora se regozijavam ruidosamente como o faz num casamento o grupo de amigos do noivo. O doutor e M saudaram o Mestre e se sentaram com os outros.

Ao ver o doutor, Sri Ramakrishna lhe sorriu e disse: “Hoje estou me sentindo muito bem”. Pouco a pouco a conversa retornou aos assuntos religiosos.

SR — De que vale a erudição do pandit por si só sem discriminação nem renúncia? Quando eu penso nos pés de lótus do Senhor eu entro num estado especial. A roupa que me cobre pode cair no chão. Algo sobe em mim dos pés à cabeça. Então tudo parece palha para mim. Quando vejo um pandit sem discriminação, sem renúncia, eu o considero como um fiapo de palha.

Certa vez o doutor Ramnarayon estava discutindo comigo. De repente entrei naquele estado e lhe disse: “O que você está falando aí? Você acha que vai compreendê-lo raciocinando assim? Vai compreender Sua criação? Sua mente é mesquinha como a de um tecelão8!” Então ele me agarrou os pés e começou a chorar.

Dr. — O doutor Ramnarayon é um hindu ortodoxo, que vai oferecer aos deuses flores e pasta de sândalo. Um puro hindu!

M pensou: o doutor me disse “Conchas e sinetas não foram feitas para mim”.

SR — Bonkim9 é outro de seus pandits. Ele veio me visitar e eu lhe perguntei: “Então, quais são os deveres de um homem?” Ele me respondeu: “Bom, comer, dormir e reproduzir-se”. Fiquei enojado quando ouvi aquilo10 e disse-lhe: “Que belo discurso! Por mais que você disfarce, aquilo que você pensa o dia inteiro, o que faz o dia inteiro acaba saindo pela sua boca! Quem come rabanete arrota rabanete!” Depois se falou longamente de religião. Houve um kirtan e eu dancei. Então ele me disse: “Gostaria de convidar o senhor para ir à minha casa”. Respondi: “Será como Deus quiser”. Ele disse: “Lá também há devotos, o senhor vai ver”. Comecei a rir e disse: “Que espécie de devotos? Daqueles que dizem Gopala, Gopala? Desse tipo com certeza!”

Dr. — Gopala, Gopala, o que é isso11?

SR (sorrindo) — Um ourives tinha uma loja. Era um devoto, um grande vaishnava, de colar no pescoço, marca na testa, e o rosário na mão para repetir o Nome de Hari. Um homem tão religioso inspira confiança e as pessoas acorriam a sua loja. Quando entravam, os clientes ouviam os operários trabalharem repetindo os nomes do Senhor. O primeiro dizia Keshava, Keshava. Outro respondia Gopala, Gopala. Um pouco mais longe um operário repetia Hari, Hari e o último Hara, Hara12. Ouvindo recitar tantos Nomes do Senhor, os clientes pensavam estar tratando com pessoas santas. Mas na realidade, aquele que dizia ke shob, ke shob estava perguntando quem é essa gente toda? O segundo respondia go pal, go pal, ou seja, apenas um bando de vacas (risos). Então perguntavam hori, hori, isto é, vamos roubá-los? E o último respondia hor, hor, quer dizer, roube, roube, já que são vacas (risos).

Uma vez Sejobabu me levou a certo lugar. Muitos pandits vieram discutir comigo. Eu não sou mais que um bobo (risos), mas entrei naquele estado e no final eles me disseram: “Senhor, tudo o que aprendemos, todo o saber dos livros, parece cuspe para nós depois dessa discussão. Acabamos de compreender que aquele que recebe Sua graça dispõe de uma sabedoria inesgotável. O tolo se torna sábio e o mudo se torna eloqüente”. Por isso eu digo que é inútil ler livros.

É verdade, aquele que recebe Sua graça sempre têm sabedoria. Olhe para mim, não sou mais que um bobo, não sei nada, então de onde me vem tudo o que digo? Esse reservatório de sabedoria é inesgotável. Na minha terra os camponeses medem o arroz13 a toda velocidade, Rame-Ram, Rame-Ram. O primeiro mede e quando seu monte termina o segundo lhe empurra outro. É seu trabalho empurrar continuamente o arroz, conforme vem vindo da sabedoria inesgotável de seu celeiro.

Deus manifestou-Se para mim quando eu era criança. Tinha onze anos, estava no arrozal e vi alguma coisa. As pessoas dizem que eu tinha perdido a consciência e não sentia mais nada. A partir daquele dia fiquei diferente. Comecei aperceber um outro dentro de mim. Muitas vezes, quando eu celebrava o puja14, minha mão, ao invés de ir para o Senhor dirigia-se para minha própria cabeça e colocava as flores sobre ela. O rapaz15 que morava comigo na época não ousava aproximar-se. Ele dizia: “Há como que uma luz em seu rosto e eu tenho medo de chegar muito perto”.

 

4  Eu sou realmente um ignorante, não sei nada, então quem diz todas essas coisas? Eu digo: “Ó Mãe, eu sou a máquina e Tu és o operário, eu sou a casa e Tu o habitante, sou o carro e Tu o condutor. Como me fazes fazer eu faço, como me fazes dizer eu digo, onde me fazes ir eu vou. Eu não, eu não, mas Tu, Tu”. Toda a glória a Deus! Eu sou apenas um instrumento. Quando puseram à prova a castidade de Radha e ela carregou o pote com mil buracos sem derramar uma gota d’água, todos se puseram a glorificá-la, a dizer que nunca se vira semelhante castidade. Mas ela disse: “Não sou eu que se deve glorificar. Digam vitória a Krishna, vitória a Krishna. Eu sou apenas Sua serva”.

Uma vez, naquele estado, pus o pé no peito de Bijoy — eu que respeito tanto Bijoy, pôr meu pé sobre seu corpo! O que você me diz disso tudo?

Dr. — Eu digo que para o futuro você vai precisar tomar cuidado.

SR (de mãos juntas) — Que fazer? Quando esse estado me toma perco a consciência, não sou dono do que faço.

Dr. — De nada serve juntar as mãos. É preciso prestar atenção.

SR — E por acaso eu posso fazer alguma coisa naqueles momentos? Aquele estado, o que você pensa? Se você acha que é comédia, eu lhe direi que a sua sayence (ciência) não é mais que cinza.

Dr. — Senhor, se eu pensasse que é comédia, será que viria tanto aqui? Abandono meu trabalho, não visito meus doentes e fico aqui seis ou sete horas seguidas.

SR — Eu dizia a Sejobabu: “Não pense que alcancei minha meta porque um homem rico como você demonstra respeito para comigo. Pouco se me dá que você me respeite ou não”. Há um provérbio que diz: “O homem põe e Deus dispõe”. Diante da força (Shakti) de Deus, o homem não é mais que palha.

Dr. — Não pense que eu o respeito porque um certo pescador16 lhe demonstrou consideração. Eu o respeito, é verdade, mas respeito enquanto homem.

SR — Eu lhe pedi para me respeitar?

Girish — Ele lhe pediu para respeitá-lo?

Dr. — O que você quer dizer? Que é a vontade de Deus?

SR — E o que mais? O que pode o homem fazer diante da força de Deus? No campo de batalha de Kurukshetra, Arjuna dizia: “Não lutarei, não massacrarei meus parentes”. Sri Krishna disse-lhe: “Ó, Arjuna! Terás que lutar, tua própria natureza te obrigará”. E Sri Krishna o fez ver que todos aqueles homens já estavam mortos no campo de batalha. Uma vez vieram alguns sikhs ao templo. De acordo com eles, cada folha do baniano se move pela vontade de Deus. Sem essa vontade até mesmo uma folha é incapaz de se mexer17.

Dr. — Se tudo vem pela vontade de Deus, então por que você é tão tagarela18? Para que todos esses discursos para transmitir o conhecimento às pessoas?

SR — Ele me faz falar, então eu falo: “eu sou a máquina, e Tu o operário”.

Dr. — É cômodo ser a máquina. Quer você fale, quer se cale, é sempre a vontade de Deus!

Girish — Pense o que o senhor quiser, o fato é que nós agimos como Ele nos faz agir. Quem poderia dar um único passo contra a vontade do Todo-Poderoso?

Dr. — Ele mesmo nos deu o livre-arbítrio19. Penso nEle se quero, senão não penso.

Girish — Na realidade, o senhor pensa em Deus ou faz tal ou tal boa ação porque isso lhe agrada20. O senhor não age, é o desejo que age por meio do senhor.

Dr. — Por quê? Eu também ajo por dever!

Girish — O senhor gosta de fazer o seu dever.

Dr. — Imaginemos que uma criança caia no fogo à minha frente. O senso do dever me impele a salvá-la.

Girish — Existe alegria em salvar uma criança e por essa alegria podemos nos jogar no fogo. É a alegria que o conduz. Certas pessoas comem ópio por causa dos petiscos que são servidos junto (risos).

SR — Para empreender algo, primeiro é preciso acreditar, depois sentir alegria em imaginá-lo, e finalmente começar o trabalho. Debaixo da terra existe um pote cheio de moedas de ouro; primeiro é preciso saber disso e acreditar. Imaginar esse pote e sentir alegria. Depois cavar. Ao cavar, esbarramos na jarra e a alegria aumenta. Depois avistamos as asas e ela aumenta mais. É assim para toda ação, a alegria cresce pouco a pouco. Eu mesmo, em Dakshineswar, via da varanda os sadhus cuja alegria aumentava enquanto preparavam seu haxixe21.

Dr. — O fogo não fornece só luz22, mas também calor. Gostamos da luz, é verdade, mas o calor queima o corpo. Fazer nosso dever não proporciona só alegria, mas também sofrimento.

M (a Girish) — “Barriga cheia e costas doloridas”: podemos suportar algumas pancadas par obter prazer. Podemos até encontrar alegria no sofrimento.

Girish (ao doutor) — O dever é seco!

Dr. — Como assim?

Girish — E atraente também (risos).

M — Outra vez, é comer ópio pelos petiscos!

Girish — Atraente. Senão, por que o cumpriríamos?

Dr. — Porque é uma inclinação23.

M (a Girish) — E aí está a natureza de novo! Se é uma inclinação, onde foi parar o livre-arbítrio?

Dr. — Eu não disse que somos inteiramente livres. Uma vaca amarrada numa estaca é livre nos limites de sua corda.

SR — Jodu Mollik usou a mesma comparação. (Ao jovem Noren) — Isso vem de um livro inglês?

(Ao doutor) — Ouça, é Deus que realiza tudo, “Ele é o operário e eu a máquina”. Aquele que realmente acredita nisso é um liberto-vivo (jivanmukta). Tu realizas todas as Tuas obras e os homens dizem “sou eu”. Sabe como? A esse respeito há uma comparação na Vedanta. Se você põe para cozinhar num caldeirão arroz, batatas, beringelas, etc., um instante depois os legumes dançam na água, como se dissessem “eu estou me mexendo, estou pulando”. As crianças pequenas pensam que as batatas, as beringelas, se mexem porque estão vivas. Mas os adultos lhes explicam que são legumes, que eles não têm vida, que sob o caldeirão existe um fogo que os agita — e se o fogo se apaga, os legumes não se mexem mais. Da mesma forma, o sentimento de que “sou eu que estou agindo” procede da ignorância. Toda ação provém da faculdade divina de agir (Shakti). Se tiramos a lenha, tudo se apaga. As marionetes dançam entre as mãos do exibidor, mas se ele retira suas mãos, nada mais se move.

Enquanto não temos a visão de Deus e não somos tocados pela pedra filosofal, temos a ilusão de agir por conta própria. Temos consciência de que “eu fiz o bem, eu fiz o mal”, e as outras diferenças. Essa consciência das diferenças é a maya de Deus. Graças a essa maya o mundo continua a girar. Aquele que se refugia no aspecto luminoso da maya, ela o faz seguir o caminho do bem, que leva a Deus. Aquele que realiza Deus, que vê Deus, pode então ultrapassar maya. Ele adquire a fé firme de que “eu não ajo, só Deus age”, e se torna um liberto-vivo (jivanmukta). Isso era o que eu dizia a Keshob Shen.

Girish — Como o senhor sabe que tem o livre-arbítrio?

Dr. — Por meio da razão. Eu o sinto.

Girish — Ora, eu e os outros sentimos exatamente o contrário (risos).

Dr. — Existem dois elementos no dever — primeiro fazer o que é obrigatório, depois encontrar alegria nisso. Mas a etapa inicial não tem o prazer como meta. Quando eu era criança, ficava olhando o sacerdote oferecer doces aos deuses. A alegria não estava imediatamente presente, no começo ele só pensava em afastar as formigas! (risos). Antes da alegria, existem todos os aborrecimentos.

M (à parte) — É muito difícil dizer se a alegria é o motivo ou o resultado da ação. Mas se a ação é o fruto do desejo, onde está o livre-arbítrio?

 

5  SR24 — O que o doutor acaba de descrever se chama “amor desinteressado”. Eu não peço nada a Mohendro Shorkar, não espero nada dele, mas me sinto feliz na presença de Mohendro Shorkar. Esse amor é dito desinteressado. O fato de que sentimos um pouco de felicidade não muda a questão em nada.

Ahalya dizia: “Ó Rama, não me importa renascer, mesmo como porco, a única coisa que Te peço é o puro amor a Teus pés de lótus”.

Narada veio a Ayodhya para lembrar a Rama que este descera à terra para destruir Ravana. Ao ver Sita e Rama, compôs um hino de louvor que agradou a Rama, o qual lhe disse: “Ó Narada, estou satisfeito com Teus louvores. Expresse um desejo e eu o concederei”. Narada disse: “Ó Rama, já que me concedes um desejo, dá-me o amor puro a Teus pés de lótus, e permite-me escapar de Tua maya que enfeitiça o universo”. Rama lhe disse: “Peça mais alguma coisa”. Narada disse: “Não tenho nada mais a pedir. Só quero o amor puro a Teus pés de lótus”.

Essa é a atitude do doutor. Orar a Deus unicamente para alcançar a Ele mesmo, sem pedir riqueza, felicidade, nem bem-estar físico. É o que se chama de amor puro.

Sentimos alegria, é verdade, mas não a alegria dada pelo mundo. A alegria da devoção, do amor extático. Shombu Mollik me dizia, na época em que eu ia com freqüência à casa dele: “Você vem me ver. Isso quer dizer que você fica feliz por estar comigo”. Sentimos esse tipo de alegria.

Mas existe um estado mais alto, comparável ao de uma criança, que vai sem objetivo definido, tentando talvez apanhar um gafanhoto.

(Aos discípulos) — Vocês compreendem o estado de espírito do doutor? É aquele em que oramos assim: “Senhor, dá-me bons desejos, a fim de que eu não seja arrastado para o mal”. Eu também passei por aí. Chamamos isso de atitude do servidor. Eu chorava tanto, repetindo “Mãe, Mãe”, que as pessoas faziam fila para me ver. Quando eu estava nesse estado, alguém25 introduziu uma prostituta26 em meu quarto, para me pôr à prova ou para curar minha loucura. Lá estava ela sentada, bonita, com aqueles belos olhos. Eu saí27 repetindo “Mãe, Mãe”, e chamei Holodhari: “Irmão, venha ver o que tem no meu quarto”. Depois de Hollodhari, contei o acontecido para todo mundo. Naquele estado eu chorava sem parar repetindo “Mãe, Mãe”, e chorando eu orava “Mãe, salva-me! Torna-me puro! Faz que minha mente não deslize do bem para o mal!” (ao doutor) — Sua atitude é boa, é a atitude da devoção, a do servidor.

Uma pessoa dominada exclusivamente pelo modo sattva só pensa em Deus; nada mais a atrai. De tempos em tempos nascem pessoas desse tipo, sob o efeito do karma residual28. Adquirimos o puro sattva com a prática da ação desinteressada. A mistura de sattva e rajas dispersa a mente em várias direções e ocasiona essa idéia orgulhosa de que se pode ajudar o mundo. Ajudar o mundo não está ao alcance das pessoas comuns. Mas é muito bom ajudar o próximo sem nada desejar para si próprio, o que se chama de ação desinteressada. É ótimo esforçar-se para consegui-lo. Mas é muito difícil e nem todos conseguem. Todo mundo precisa trabalhar. Apenas algumas raras pessoas podem renunciar ao trabalho. Também são raras as que manifestam o puro sattva. Quando se pratica a ação desinteressada, a mistura de sattva e rajas se transforma em puro sattva.

Depois de adquirir o puro sattva, consegue-se realizar Deus pela Sua graça29. As pessoas comuns não conseguem compreender o puro sattva. Hem30 me perguntava: “Qual é sua opinião, senhor sacerdote? O objetivo da vida não é o de alcançar a fama?”

________________

 

DIÁLOGO 21*

EM SHYAMPUKUR: 27 DE OUTUBRO DE 1885

 

A discussão desse diálogo com Shyam Basu (manifestamente um homem considerado, mas que não aparece em outros momentos) a respeito do ocultismo apresenta um grande interesse, tendo-se em vista o espaço que o ocultismo hindu (ou dito como tal) assumiu atualmente no Ocidente.

 

1  No dia seguinte, terça-feira, 27 de outubro, por volta das cinco e meia, na presença de Norendro, do doutor Shorkar, de Shem Boshu, Girish, o doutor Dokori, o jovem Noren, Rakhal, M e muitos outros. Ao chegar, o doutor tomou o pulso do doente e receitou os remédios.

Depois de cuidar da doença do Mestre, o doutor disse: “Você estava conversando com Shem Babu, então vou deixá-lo”. O Mestre e um dos devotos perguntaram ao mesmo tempo: “Como? Sem ouvir os cânticos?” O doutor respondeu: “Isso ainda vai fazer você dar cambalhotas! Você precisa controlar seus sentimentos”. Mas ele se sentou novamente e Norendro começou a cantar, acompanhado pela tanpura e a mridangam.

Norendro cantou1:

 

Na profunda obscuridade, ó Mãe, cintila Tua beleza sem forma,

Por isso os yoguis vão meditar nas grutas das montanhas.

No seio das trevas sem limites, levada pelas ondas do nirvana,

Flutua a brisa perfumada da paz suprema.

Tomando a forma do Destruidor, oculta nas dobras da escuridão,

Tu és a imagem solitária no fundo do templo do êxtase.

Do lótus de Teus pés que anulam o medo,

Jorram os clarões do amor,

E Teu rosto resplandece, explodindo num riso forte e terrível.

 

O doutor disse a M: “É perigoso para ele2”. Sri Ramakrishna perguntou: “O que foi que ele disse?” E M respondeu: “O doutor receia que o êxtase lhe faça mal”. Sri Ramakrishna já estava um pouco absorto. Olhando para o rosto do doutor, disse com esforço: “Não, não, que êxtase?”. E dizendo isso entrou num profundo êxtase (bhava samadhi). Com o corpo imóvel, mudo, olhos fixos, sentado como uma estátua de pedra, sem nenhuma consciência externa. Não era mais o mesmo homem.

Com sua voz cheia de doçura, Norendro cantou também:

 

Para que viver, se não posso como uma abelha

Saborear o mel no centro do lótus dos Teus pés?

De que serve possuir montes de riquezas,

Se o tesouro supremo está fora do alcance?

Não terei prazer no doce rosto de uma criança,

Se nele não encontrar os traços do Teu rosto.

A lua cheia não será mais que escuridão para mim,

Se Teu amor não iluminar o firmamento da minha alma.

Não me regozijarei com o amor de uma esposa fiel,

Se seu ouro não estiver ornado pelo diamante de Teu amor.

Que Te direi, Senhor, não Te tornaste

O puro tesouro do meu coração, a felicidade da minha vida?

 

Ao ouvir o verso Não me regozijarei com o amor de uma esposa fiel, o doutor disse “Ah, ah”, e seus olhos se encheram de lágrimas.

 

2  A seção de canto terminara. O Mestre havia recobrado a consciência externa e continuou sua fala, acessível e fascinante mesmo para os mais simples; para o erudito e o ignorante, a criança e o velho, o homem e a mulher. Reinava um silêncio completo. A terrível doença estava esquecida. O rosto do Mestre atraía o olhar como um lótus desabrochado, e parecia irradiar uma luz gloriosa. Dirigiu-se ao doutor e disse-lhe: “Você deve perder seu respeito humano. Que vergonha há em cantar o Nome de Deus?

 

Expulsa de teu coração

Desprezo, vergonha e medo.

 

“Sou um homem importante, vou dançar cantando Hari, Hari? Que vão pensar as outras pessoas importantes? Sabe que o doutor dançou cantando o Nome de Hari? Que ridículo!” Você precisa perder essa mentalidade.

Dr. — Não é o meu gênero. A opinião das pessoas me deixa completamente indiferente.

SR — Em absoluto, muito pelo contrário! (Risos). Escute, para encontrar Deus é preciso ir além do conhecimento e da ignorância. Conhecer uma quantidade de coisas é ignorância, na verdade. O orgulho do saber é ignorância. A certeza de que existe um Deus único presente em cada ser, isso é que é o conhecimento. Reconhecê-Lo em cada uma de Suas formas particulares é o conhecimento perfeito (vijñana). Quando temos um espinho no pé, pegamos um segundo espinho para retirá-lo e depois jogamos fora ambos. Assim, a ignorância é um espinho; para retirá-la usamos o espinho do conhecimento, depois rejeitamos os dois. Deus está além do conhecimento e da ignorância. Lakshman3 dizia: “Ó Rama, Que coisa extraordinária! O próprio Vashistha, um sábio tão grande está perturbado e chora pela morte de seu filho”. Rama lhe respondeu: “Irmão, se existe conhecimento, existe ignorância. Se um só é conhecido, a multiplicidade é conhecida também. Quem pensa na luz pensa também na escuridão. Mas o conhecimento de Brahman está além do conhecimento e da ignorância, da virtude e do pecado, do justo e do injusto, do puro e do impuro”.

Sri Ramakrishna recitou4 esse canto de Ramprasad5:

 

Venha para Kali, ó minha alma,

A árvore que satisfaz os desejos,

Nela encontramos os quatro frutos...

 

Shem Boshu — Quando jogamos fora os dois espinhos, o que resta?

SR — “A consciência eterna e imaculada”. Como fazer você compreender isso? Se alguém pergunta “qual é o sabor da manteiga”, como explicar-lhe? A manteiga tem gosto de manteiga e ponto final. Uma moça perguntava à sua amiga: “Que espécie de alegria você sente quando chega seu marido?” A outra respondeu: “Irmãzinha, você compreenderá quando for casada. Agora não posso lhe explicar”. Os Puranas contam como a Deusa6 nasceu como filha do rei Himalaia. Ela lhe mostrou todos os tipos de formas divinas e no final o rei lhe pediu que lhe mostrasse aquele Brahman de que falam os Vedas. Então a Deusa lhe disse: “Pai, se queres ter a visão de Brahman, terás de viver na companhia dos sadhus”.

O que Brahman é a boca não consegue dizê-lo. Alguém7 disse uma vez: “Tudo foi sujado pelos lábios, só Brahman é impoluto”. Isso significa que todas as Escrituras, Vedas, Puranas e Tantras, foram pronunciadas pelos lábios, e portanto sujadas como restos de alimentos. Mas o que Brahman é ninguém nunca conseguiu dizê-lo, e por essa razão Ele permanece puro. A alegria do jogo e da união com Brahman, ninguém pode explicá-la. Só a conhece aquele que a sentiu.

 

3  Sri Ramakrishna dirigiu-se novamente ao doutor: “Ouça, é preciso que o eu se vá para que venha o conhecimento8. “Eu, meu” é ignorância e “Tu, Teu” o conhecimento. O verdadeiro devoto diz “Ó meu Deus, és Tu que ages, Tu que fazes tudo, eu sou a máquina e Tu o operário, como me diriges eu vou. E tudo isso é Tua riqueza, Tua glória, Teu universo. Esta casa, esta família, não me pertencem. Sou um servidor às Tuas ordens. Meu único direito é o de Te servir”.

Depois que lêem alguns livros, as pessoas ficam transbordando de vaidade. Um dia tive uma discussão religiosa com Kalikrishno Thakur. Ele me disse: “Eu já sei tudo isso”. E eu lhe respondi: “Por acaso um homem que retorna de Delhi vai por toda parte vagloriando-se de ter visto Delhi? Um babu diz para todo mundo “Eu sou um babu?”

Shem — Mas Kalikrishno Thakur tem muito respeito pelo senhor.

SR — Que mais posso lhe dizer? No templo de Kali havia uma mulher da casta dos limpadores de latrinas que usava algumas jóias. Quando ela caminhava pela alameda e aparecia um grupo de pessoas à sua frente, gritava-lhes: “Ei! Afastem-se!” Se uma mulher de limpador de latrinas pode ter tanto orgulho, como serão as outras?

Shem — Senhor, se é Deus que faz tudo, como pode Ele punir o mal?

SR — Ora, você tem uma mentalidade de pesador de ouro!

Norendro — Ele quer dizer mentalidade calculista.

SR — “Ouça, Podo, coma suas mangas! Contar as centenas de árvores e os milhares de galhos e folhas não é da sua conta. Você veio para comer mangas, então coma!” (A Shem Boshu) — Você obteve um nascimento humano para buscar a Deus. Procure se esforçar para ter devoção a Seus pés de lótus. Deixe tudo isso de lado! Você não conseguirá nada com filosofia e raciocínio. Um copo de vinho basta para embriagá-lo, para que ficar contando os tonéis na loja?

Dr. — Ainda mais que Deus tem uma infinidade de tonéis. Seu vinho é inesgotável.

SR (a Shem) — Então dê procuração a Deus, entregue-Lhe seu fardo. Se você der poder a um homem de bem, ele não fará mau uso. Quanto a saber se os pecados serão punidos ou não, só Ele sabe.

Dr. — O que está em Seu pensamento só Ele sabe. Será que os cálculos do homem podem desvendá-lo? Ele está além dos cálculos.

SR (a Shem) — Vocês são todos iguais! As pessoas de Calcutá não deixam de acusar Deus de parcialidade, porque Ele tornou este feliz, aquele infeliz. Acham que o que eles têm na sua pobre cabeça é também o pensamento de Deus. Hem vinha a Dakshineswar, e dizia logo que me via: “Então, senhor sacerdote, a única coisa que importa neste mundo é a fama, não é?” O objetivo da vida humana é encontrar Deus, mas isso pouquíssimas pessoas dizem.

 

4  Shem — Alguém pode nos mostrar o “corpo sutil9” e fazer-nos ver como ele pode sair e se mover?

SR — Um verdadeiro bhakta certamente não vai perder seu tempo demonstrando isso para você! Ser honrado e não desprezado por qualquer imbecil, ou então colocar um homem rico no bolso, um bhakta não tem interesse em nada disso.

Sehn — Bom, mas qual é a diferença entre o corpo grosseiro e o corpo sutil?

SR — O corpo grosseiro é formado pelos cinco elementos. O corpo sutil é formado pelas faculdades interiores10: o intelecto, a vontade, o eu, etc. O corpo que sente a alegria do Senhor é chamado “corpo causal”, ou nos Tantras o “corpo da Deusa”. Acima de tudo isso encontra-se a grande Causa, o Absoluto do qual não se pode dizer nada. Mas de que servem essas discussões? Não se trata de discutir, mas de fazer alguma coisa. Acaso podemos embriagar-nos repetindo “haxixe, haxixe”? Mesmo se você esfregar o corpo inteiro com pasta de haxixe, não conseguirá a embriaguez. Você precisa ingerir o haxixe. Nenhum discurso o ensinará a distinguir o fio nº 40 do fio nº 41: você terá que praticar o ofício. Um homem do ramo  distingue-os ao primeiro olhar. Por isso eu lhe digo: pratique uma disciplina espiritual! Então o corpo grosseiro, o corpo sutil, o corpo causal, a grande Causa, tudo isso se tornará claro para você. Mas quando orar a Deus, peça-Lhe apenas devoção pura a Seus pés de lótus.

Quando Sri Ramachandra libertou Ahalya de sua forma de serpente, disse-lhe: “Pede-me o que desejares, eu te concederei!” Ahalya respondeu: “Ó Rama, se queres satisfazer meu desejo, aqui está ele: não me importa renascer sob a forma de um porco, mas faz que minha alma esteja sempre prosternada a Teus pés de lótus”. Eu só pedi amor à Mãe. Oferecia flores a Seus pés de lótus e dizia-Lhe com as mãos juntas: “Mãe, aqui está Teu conhecimento, aqui está Tua ignorância, toma-os de volta e dá-me um amor puro. Aqui está Tua pureza, aqui está Tua impureza, toma-as de volta e dá-me um amor puro. Aqui está Tua virtude, aqui está Teu pecado, toma-os de volta e dá-me um amor puro. Aqui está o bem, aqui está o mal, toma-os de volta e dá-me um amor puro. Aqui está a justiça, aqui está a injustiça, toma-as de volta e dá-me um amor puro”.

A justiça (dharma), são todas as boas ações, como a esmola etc. Mas quem diz justiça diz também injustiça, quem diz virtude diz também pecado, quem diz conhecimento diz também ignorância, quem diz pureza diz também impureza. Da mesma forma que a luz não se concebe sem a escuridão, a unidade não se concebe sem a multiplicidade. Quem tem consciência do bem também tem consciência do mal.

Glória àqueles que têm devoção aos pés de lótus do Senhor, mesmo que comam carne de porco! Quanto aos que comem o alimento mais puro, mas estão apegados ao mundo...

Dr. — São uns infelizes! Mas escute essa. Buddha comeu carne de porco e isso lhe deu cólica. Para curar sua barriga, tomou ópio. O ópio o fez perder a consciência e chamaram isso de Nirvana.

Essa bela explicação do Nirvana fez todo mundo rir.

 

5  Não há mal algum em viver no mundo, mas com a condição de manter a mente voltada para os pés de lótus de Deus. É preciso trabalhar sem desejo de proveito pessoal. Quando uma pessoa está com um furúnculo nas costas, pode falar com as pessoas que a cercam, ou então trabalhar, mas o tempo todo sua mente sabe que o furúnculo está ali. Devemos ficar no mundo como uma esposa infiel, que trabalha pensando em seu amante. (Aos devotos) — Vocês estão entendendo?

Dr. — Não muito bem. Isso nunca me aconteceu.

Shem — Ora, vamos, você até que está entendendo um pouco! (risos).

SR — Claro! Ele se preocupa com isso11 há anos.

Shem — O que o senhor acha da teosofia?

SR — Falando por alto, direi que as pessoas que correm atrás de devotos são pessoas de segunda categoria. Da mesma forma, aqueles que desejam adquirir poderes, como saber o que as pessoas dizem à distância, atravessar o Ganges caminhando sobre a água, etc. Esse tipo de pessoa dificilmente alcança o puro amor a Deus.

Shem — Mas os teósofos procuram restabelecer a religião hindu sobre bases firmes.

SR — Só tenho uma idéia vaga do que eles buscam.

Shem — Os teósofos sabem dizer o que é feito da alma após a morte — os mundos lunar, solar, estelar etc.

SR — Pode ser. Mas você sabe o que penso disso? Alguém perguntou a Hanuman: “Que dia é hoje?” Hanuman respondeu: “A data, a lua, as estrelas, não sei nada disso. Eu só penso em Rama”. Minha atitude é exatamente essa.

Shem — Os filósofos dizem também que existem mahatmas. O senhor acredita nisso?

SR — Se você tem fé em minhas palavras, muito bem, sim, existem mahatmas. Mas vamos acabar com isso. Quando eu estiver melhor, você voltará para me ver. E encontraremos um jeito de lhe dar paz, se você acredita em mim. E, aliás, eu não aceito dinheiro, eu não aceito presentes e não se faz coleta aqui: é por isso que vem tanta gente! (risos). (Dirigindo-se ao doutor) — Eu não queria fazer você ficar zangado, mas permita-me dizer-lhe o seguinte: o dinheiro, o prestígio, as conferências, você já teve tudo isso. Agora volte sua mente para Deus por alguns dias. E venha aqui de vez em quando, que lhe fará bem ouvir falar de Deus.

Logo depois, quando o doutor se levantava para despedir-se, Girish entrou, tomou o pó dos pés do Mestre e sentou-se. O doutor ficou tão feliz em vê-lo que voltou ao seu lugar.

Dr. — Claro, enquanto eu estava aqui ele não chegava e agora chegou justo no momento em que eu ia embora (risos).

O doutor e Girish começaram a conversar entre si sobre a Science Association12.

SR — Um dia vocês me levam lá?

Dr. — Se você for, certamente entrará em êxtase ao descobrir todas as maravilhas da criação!

SR — É mesmo?

 

6  Dr. (a Girish) — Façam tudo o que quiserem, mas não o adorem como a Deus13. Vocês estão virando a cabeça desse excelente homem.

G — Eu não posso fazer de outro modo para com aquele que me fez atravessar o oceano deste mundo e o oceano da dúvida. Mesmo seus excrementos são para mim diferentes dos de um homem comum.

Dr. — Isso não é nada. Eu também não sinto repulsa. Uma vez nos trouxeram o filho de um merceeiro e seus intestinos se soltaram. Cada um tapou o nariz com a barra da roupa. Mas eu não tapei o meu e cuidei da criança durante uma meia hora. E também não tapo o nariz quando os limpadores de latrinas passam com seu balde na cabeça. Eu sei que o limpador de latrinas e eu somos iguais, não sinto desprezo. Vocês pensam que não posso tomar o pó dos pés dele? Olhem! (O doutor toma o pó dos pés de Sri Ramakrishna14).

G — Que os anjos velem por este momento abençoado!

Dr. — Mas não há nada de extraordinário em tomar a poeira dos pés das pessoas! Posso fazer isso com qualquer um! Vejam! Vejam! ( O doutor toma o pó dos pés dos presentes).

Norendro — O senhor precisa compreender de que modo nós o consideramos como Deus. Entre a criação animal e a criação vegetal existe um ponto de contato em que é muito difícil dizer se se trata de um animal ou de uma planta. Ora, entre o mundo dos homens e o mundo de Deus há um ponto de contato. Não sabemos bem se se trata de um homem ou de Deus.

Dr. — Alto lá! Quando se trata de Deus as analogias não são permitidas.

Norendro — Eu não disse Deus, disse um homem semelhante a Deus15.

Dr. — Acho que devemos moderar nossas expressões. Dar livre curso aos nossos sentimentos não é bom. O que eu sinto ninguém sabe. Meus melhores amigos consideram-me um homem duro. Talvez um dia vocês mesmos irão me expulsar a pontapés16.

SR — Que idéia! Aqui todos o querem muito! Esperamos sua chegada como a do esposo num casamento.

G — Todo mundo aqui tem o maior respeito pelo senhor.

Dr. — Meu filho e mesmo minha esposa, todos me consideram um coração duro. Meu único crime é não demonstrar meus sentimentos diante de todo mundo17.

G — Mas, senhor, é bom abrir o coração. O senhor deveria fazê-lo pelo menos por amor a seus amigos18, caso contrário eles não conseguem compreendê-lo!

Dr. — Vocês acreditam? Meus sentimentos são intensos19. (A Norendro) — Chego a chorar quando estou só.

_________________

 

Dr. (a SR) — Ouça, não fica bem tocar as pessoas com seu pé quando você está em êxtase.

SR — Você acha que nesses momentos eu sei se estou ou não pondo meu pé em alguém?

Dr. — Acho que você percebe que não fica bem.

SR- O que é estar em êxtase eu não posso lhe explicar. Às vezes penso que foi por isso que fiquei doente. Pensar em Deus me enlouquece. E o que faço em estado de loucura está fora do meu controle.

Dr. — Aí está, ele reconheceu! Está expressando arrependimento pelo que fez. Comportar-se assim é pecado e ele está consciente disso.

SR (a Norendro) — Você que é inteligente, explique-lhe, por favor!

G — O senhor não o compreendeu corretamente. Ele não se sente culpado por ter feito isso. Seu próprio corpo é puro, sem mancha de pecado. É para o bem das pessoas que ele as toca. De vez em quando ele até pensa que esta doença lhe veio porque ele tomou para si os pecados delas. Quando o senhor era estudante e foi acometido de disenteria, contou-nos que mesmo assim passava a noite inteira estudando. Certamente não era sensato, mas será que se pode deduzir disso que é sempre ruim estudar à noite? Sri Ramakrishna pensa que o êxtase pode ter causado sua doença, e ele o lamenta, mas não se arrepende de tocar as pessoas para o bem delas.

Dr. — Está bem, você ganhou! Dê-me o pó de seus pés (inclina-se diante de Girish). (A Norendro) — Devo reconhecer que ele é muito bom.

Norendro — Agora ouça-me. O senhor reconhece que se pode dedicar a vida à descoberta científica. Face a isso a saúde e todo o resto não contam. Mas conhecer Deus é a mais alta de todas as ciências. Então por que ele não teria o direito de arriscar sua saúde nesse propósito?

Dr. — Todos os reformadores religiosos, Jesus, Chaitanya, Buddha, Mohammed, são afinal de contas cheios de orgulho, dizem “só eu possuo a verdade”. É inadmissível.

G — Mas é o que o senhor mesmo está fazendo! O senhor está aí sozinho tachando a todos como orgulhosos. Não é a mesma coisa?

O doutor não diz mais nada.

Norendro — O culto que lhe prestamos fica no limite do culto divino20.

O Mestre ri de alegria, como uma criança.

______________

 

DIÁLOGO 22*

EM COSSIPORE: 14 DE MARÇO DE 1886

 

Em dezembro de 1885, os discípulos alugaram para Sri Ramakrishna uma bela casa com jardim na periferia norte de Calcutá, onde o ar é mais puro que na cidade. A vida do Mestre irá acabar-se ali. O primeiro volume da edição bengali não comporta nenhum diálogo desse período, mas a tradução de M traz este que se segue. De qualquer maneira, o livro dos Diálogos pára no mês de abril. O doutor entrega as armas. Os discípulos estão enlutados, as conversas animadas terminaram, Ramakrishna passa por alternâncias de dor e bem-aventurança que desafiam qualquer descrição. Esse período é muito duro também para Naren, que tem a impressão de que todos atingiram a meta, exceto ele, dilacerado entre a miséria da família e seu desejo de renúncia.

Não conhecemos em detalhe o último período da vida de Ramakrishna, de maio ao êxtase final de 16 de agosto de 1886. M nunca teve a coragem de redigir essas notas. Na grande biografia de Swami Saradananda esse capítulo ficou inacabado. O belo canto místico que encerra este diálogo pode ao mesmo tempo concluir o livro e deixá-lo aberto para o infinito.

 

Sri Ramakrishna agora está morando na bela casa de Kashipur. É noite. O Mestre está doente. Em seu quarto no primeiro andar, ele está sentado na cama voltada para o norte. Norendro e Rakhal estão massageando-lhe as pernas, M está sentado bem perto. Através de sinais, o Mestre lhe pede para substituir um deles e M vai massagear-lhe as pernas.

Estamos no domingo 14 de março: no domingo anterior celebramos o puja por ocasião do aniversário do Mestre. Ainda no ano passado nós o havíamos celebrado com todo o brilho no templo de Kali. Agora o Mestre está doente e os discípulos estão mergulhados num oceano de dor. Certamente realizamos um puja, mas aquilo não merecia chamar-se festa.

Os discípulos estão presentes o tempo todo a serviço do Mestre. A Santa Mãe1 dedica-se a ele dia e noite. Vários jovens discípulos vieram morar na casa: Norendro, Rakhal, Nironjon, Shorot, Shoshi2, Baburam, Jogin, Kali, Latu3, etc. Os discípulos mais velhos dormem lá tão freqüentemente quanto possível, ou vêm todos os dias, ou pedem notícias. Tarok e Gopal de Sinthi4 passam o dia todo, assim como o jovem Gopal.

Hoje o Mestre está bastante mal5. Já passou da meia-noite, o jardim está banhado por um luar alegre, mas nenhuma alegria lhe responde no coração dos discípulos. A doença do Mestre agravou-se muito. Eles se sentem como numa cidade ainda intacta, mas sitiada pelo exército inimigo. Tudo está perfeitamente calmo, ouvem-se apenas as folhas agitadas pela brisa da primavera. No primeiro andar o Mestre está deitado, sofrendo, sem poder dormir. Um ou dois discípulos velam em silêncio. De vez em quando ele adormece um pouco. Ou pode ser apenas uma aparência de sono e ele se encontra em yoga, naquele estado em que “mesmo o mais duro sofrimento não o pode abalar” (Guita, VI.22).

Agora é M que está velando. O Mestre lhe faz sinal para vir bem perto. Seu sofrimento é arrasador. Ele diz a M bem devagar, com grande dificuldade: “Estou suportando tudo isso por vocês, para que não chorem. Se vocês todos me dissessem “Chega de sofrimento, que se acabe tudo isso”, eu poderia deixar esse corpo.

Ao ouvir aquilo, o coração de M se desmancha de compaixão. Aquele que é para eles pai, mãe e salvador os ama tanto! Pensa consigo mesmo: “Isso não é uma crucifixão6? A doação de seu corpo por amor aos discípulos?” O silêncio volta.

A noite é profunda. O sofrimento parece aumentar mais. Que fazer? Mandam buscar ajuda em Calcutá. Girish chega alta noite trazendo dois médicos, o Dr. Upendro e Nobogopal Kobiraj. A vigília continua. O Mestre parece estar um pouco melhor e diz: “O corpo está doente, é normal. Eu o estou vendo composto pelos cinco elementos”.

Ele olha para Girish e diz: “Vi com clareza algumas formas divinas e entre elas esta aqui”, e indica seu próprio corpo.

________________

 

2  No dia seguinte pela manhã, por volta de sete ou oito horas. O Mestre recobrou alguma força e fala muito devagar com os discípulos, muitas vezes com gestos. Estão presentes Norendro, Rakhal, M, Latu, Gopal de Sinthi e alguns outros. Todos calados. A lembrança daquela noite pesa sobre eles, mergulhando-os em profundo pesar.

SR (aos devotos, olhando para M) — Sabem o que estou vendo? Foi ele que tomou todas essas formas. Todos os seres vivos me parecem como figuras revestidas de pele e dentro é Ele que movimenta os braços e as pernas. Tive essa visão outrora: casas de cera, jardins, ruas, homens, vacas, tudo de cera; tudo feito de uma única substância.

Vejo que Ele é o sacrificador, Ele é a vítima e Ele é o cepo.

O que queria dizer o Mestre? Será que, comovido pelo sofrimento dos homens, oferecia seu próprio corpo para o bem de todos? Deus é Ele próprio o carrasco, a vítima e o altar? Depois destas palavras, o Mestre ainda disse “Ah! Ah!” e entrou em êxtase.

Agora ele perdeu toda a consciência externa. Não sabendo o que fazer, os discípulos permanecem imóveis e silenciosos.

O Mestre volta um pouco ao estado normal e diz: “Não estou sofrendo mais, estou exatamente como antes”.

Vendo-o assim além do prazer e da dor, os discípulos olham-no estupefatos. Ele olha para Latu e diz: “Vejam Lotô sentado, com a cabeça apoiada na mão. É como se o próprio Deus estivesse aí, apoiando a cabeça em Sua mão”.

O Mestre olha os devotos, desmanchando-se em ternura. Como se acaricia o rosto de uma criança, ele acaricia o rosto de Noren e Rakhal. Um momento depois, diz a M: “Se este corpo tivesse podido durar um pouco mais, a consciência de muitos teria sido iluminada”. Novamente se cala, depois acrescenta: “Mas isso não acontecerá”.

Os discípulos perguntam-se o que mais ele vai dizer. E ele fala de novo: “Isso não acontecerá. As pessoas tiravam tudo o que queriam desse bobo. Esse bobo distribuía tudo a qualquer um7. Nessa Era ninguém mais quer meditar nem repetir os Nomes do Senhor”.

Rakhal (carinhosamente) — Então peça a Deus que preserve seu corpo.

SR — Tudo é a Sua vontade.

Noren — Sua vontade e a vontade de Deus são uma só.

O Mestre não responde — parece estar refletindo. Depois diz: “O que eu posso perdir-Lhe? Agora vejo que tudo se tornou um. Por medo de Nonodini8, Radha disse a Krishna: “Vem morar em meu coração”. Depois voltou-lhe a nostalgia de Sua forma humana, um desejo tão forte que nos rasga como as garras de um gato — mas Krishna não se mostrou mais”.

Rakhal (em voz baixa) — Ele está falando do avatar de Chaitanya9.

 

3  Os discípulos estavam sentados em silêncio. O Mestre olhou-os afetuosamente, depois colocou a mão no coração. Que ia dizer?

SR — Aqui estão duas pessoas. A primeira é Ele.

Calou-se. Os discípulos esperaram a seqüência.

SR — A primeira é Ele. E depois há o Seu adorador. Aquele que uma vez quebrou o braço10, aquele que está doente. Vocês compreendem?

Os discípulos continuavam calados.

SR — Mesmo que eu fale, quem pode me compreender?

Um instante de silêncio, depois ele falou de novo: “Ele toma forma humana, torna-se avatar. Vem em companhia dos devotos, que voltam com Ele a cada vez”.

Rakhal — Então o senhor não deve nos abandonar!

O Mestre sorriu muito docemente e disse: “Um grupo de bauls11 chega em algum lugar; eles cantam, dançam e de repente desaparecem. Chegam — vão embora. Ninguém sabe como” (o Mestre e os discípulos riem).

De novo o silêncio, depois ele disse: “Tudo o que encarna tem que sofrer. Às vezes eu rezo: Faz com que eu não volte mais. Mas existe um provérbio: Quando a gente se acostuma a ser convidado, a cozinha de casa fica sem sabor. Assim, é preciso reencarnar — por amor aos devotos.

M pensou: o Senhor se oferece ao amor — é o amor que convida — Deus vem regozijar-se na companhia dos devotos. Será que foi isso que ele quis dizer12?

_____________

 

O Mestre olhou carinhosamente para Norendro e disse: um açougueiro intocável estava carregando carne. Mestre Shankara13 ia ao Ganges. O intocável roçou nele. Irado, Shankara disse-lhe: “Você me tocou!” O açougueiro respondeu: “Senhor, eu não o toquei e o senhor também não me tocou. Tenha a bondade de refletir. O senhor é o corpo? É a mente? É a vontade? Queira pensar naquilo que o senhor é: o Ser (Atman) impoluto, além dos três modos — sattva, rajas, tamas; três modos, e nenhum deles O afeta”.

Assim é Brahman. Como o vento: traz os odores bons e os maus. Eles vêm com o vento, mas o vento em si mesmo não é afetado.

Norendro — Sim, senhor.

SR — Além dos três modos, além de maya. Além da maya obscura (avidyamaya) e da maya luminosa (vidyamaya). O sexo e o dinheiro provêm da maya obscura, o conhecimento e a renúncia da maya luminosa. Shankara havia conservado esse aspecto de maya. E todo o trabalho que vocês têm por mim, você e os outros, vêm também da maya luminosa.

No extremo da maya luminosa encontra-se o conhecimento de Brahman. Como os últimos degraus de uma escada14, logo abaixo do telhado. Aquele que chegou até o telhado pode descer e subir novamente a escada. Depois de obter o Conhecimento, pode-se também conservar o “eu de luz”, a fim de iluminar os outros, ou então saborear a devoção, sentir a alegria na companhia dos devotos.

Norendro e os demais permaneceram em silêncio. Teria o Mestre descrito sua própria condição?

Noren — Alguns se zangam comigo quando falo de renúncia.

SR (baixinho) — “É preciso renunciar.” O Mestre indicou os membros de seu próprio corpo e disse: “Imagine que exista uma coisa aqui e outra por cima; se você quiser a primeira, vai precisar tirar a segunda. Se não tirar esta não terá aquela.”

Noren — É verdade.

SR (A Noren, baixinho) — Quando vemos que Deus preenche tudo, podemos ainda olhar outra coisa?

Noren — É preciso mesmo renunciar ao mundo?

SR — Vou repetir para você: quando se vê tudo preenchido por Deus, pode-se ainda olhar outra coisa? Existe algo que seja o mundo? Mas podemos renunciar mentalmente. Os que vêm aqui não são mundanos. É verdade que um ou outro ainda tem alguns desejos — alguns se comprazem com suas esposas (Rakhal e M sorriem). Mas esses desejos foram satisfeitos.

O Mestre olhava Noren com ternura. Enquanto olhava para ele, parecia pouco a pouco encher-se de alegria. Voltou-se para os demais e disse: “Grande”. Norendro sorriu e perguntou: “O quê, grande?”

SR (sorrindo) — Uma grande renúncia está se preparando.

Noren e os outros olharam para o Mestre em silêncio. Rakhal falou novamente.

Rakhal (sorrindo) — Parece-me que Norendro o compreende muito melhor.

O Mestre sorriu e disse: “Sim, e outros também compreendem”. Perguntou a M: “Não é?” e M respondeu: “Sim”.

O Mestre olhou para Norendro e Moni (M) e através de gestos com as mãos explicou alguma coisa a Rakhal e aos outros, primeiro designando Noren, depois designando M. Rakhal compreendeu o que o Mestre queria expressar e disse sorrindo: “O senhor nos disse que a atitude de Noren é a do herói, enquanto que M tem a atitude das gopis”. Noren sorriu e disse: “Vocês dizem isso porque ele (M) fala pouco e é tímido!”

SR (sorrindo, a Noren) — Bom, e eu, qual é a minha atitude?

Noren — A atitude heróica, a das gopis, todas ao mesmo tempo.

Ao ouvir aquilo, os sentimentos do Mestre ficaram exaltados. Pousou a mão sobre o coração e disse: “Sinto que aqui dentro tem alguma coisa”. Depois, através de gestos, pediu a Noren que explicasse.

Noren — “Alguma coisa”, quer dizer que a criação inteira está contida em seu coração.

SR (cheio de alegria, a Rakhal) — Você está vendo?

______________

 

O Mestre pediu a Norendro para cantar. Noren afinou um pouco a voz, depois cantou, dentro do espírito de renúncia que era agora o seu15:

 

Fugaz é a vida dos homens,

Como uma gota de orvalho sobre uma pétala.

Para atravessar o oceano do mundo,

O único navio é a companhia dos santos.

 

Após alguns versos, o Mestre perguntou: “Por que essas banalidades?” Então Norendro tomou a atitude de uma gopi e cantou16:

 

Existirá justiça neste mundo, minhas amigas?

O adolescente de Braj, para onde se foi?

A separação estilhaçou minha alma.

Ele esqueceu a humilde filha do leiteiro,

Está cortejando as damas da cidade,

Quem iria pensar, minhas amigas,

Que um amor tão terno acabaria assim?

Eu não tinha compreendido nada,

Sua beleza me enfeitiçou,

Coloquei Seus pés em meu coração.

Que meu corpo seja levado pelo Jamuna,

Que o veneno destrua esta vida miserável,

Que um cipó em meu pescoço

Enforque-me numa jovem árvore tomal,

Ou que minha voz repita

“Shem, Shem, Shem, Shem”

Até o final de meu alento.

 

Esse canto enfeitiçou Sri Ramakrishna e os discípulos. O Mestre e Rakhal estavam com os olhos cheios de lágrimas. Norendro, ainda no espírito de uma gopi embriagada de amor, cantou:

Tu és meu, Amigo? Que Te direi?

Sim, que Te direi eu, Senhor?

Não sei nada,não sei falar,

Sou apenas uma mulher e tive uma vida dura.

Tu és o espelho em minha mão,

Tu és a flor para meus cabelos.

Em meus cabelos, Amigo, eu Te levarei;

Prenderei essa flor escura

Em meus cabelos trançados, oculta aos olhares.

Tu és a pintura para meus olhos,

A tinta vermelha do bétel para meus lábios,

Enfeitarei meus olhos com essa tinta escura.

Tu és a pasta de sândalo para meu corpo,

O óleo perfumado para meus membros,

E o colar para meu pescoço.

Refrescarei meu corpo com esse óleo escuro,

Em meu pescoço, Amigo, eu Te prenderei.

Tu és a vida no corpo,

A lareira na casa.

Ó Bem-Amado, Tu és para mim

O que a água é para o peixe,

O que a asa é para o pássaro.



1 Nascido em 1854, morto em 1932; diretor da Morton Institution, uma importante escola de Calcutá. Passou os últimos anos de sua vida escrevendo o Kathamrita e transmitindo o ensinamento de Ramakrishna.

2 Música devocional, geralmente acompanhada por dança.

4 Este, Sri  Sri  Ramakrishna  Kathamrita, significa aproximadamente “o néctar das palavras de Sri Ramakrishna”.

5 Aliás, os pandits bengalis, e o próprio Ramakrishna, pronunciam o sânscrito como se fosse bengali.

* Instituto Francês de Indologia, Pondichéry, 1967; Les Belles Lettres, Paris, 1982.

6  Na verdade, M pensa que esse nome lhe foi dado em seu nascimento.

7  Reunidos pelo guru de SR, a “monja brâmane”; ele próprio parece ter ficado indiferente.

* Teóforo: que leva Deus — do grego theo (Deus) + phorós (que leva, que conduz).

8 Ver a repulsa de Tagore em R. Rolland, Inde, p.284 (Albin Michel). O próprio Ramakrishna ficava horrorizado pelos sacrifícios de animais (mas às vezes matava percevejos...).

* Há cerca de 18 milhões de sikhs na Índia, concentrados sobretudo no Punjab. Constituem um grupo religioso marcial, cuja doutrina foi estabelecida pelo Guru Nanak (1469-1538), o qual buscou reunir o melhor do hinduísmo e do islamismo.

* Ver o Diálogo 17, -----.

10  Swami Chetanananda, They lived with God, p. 300.

11 Revolta dos soldados indianos do exército britânico, aos quais se quer impor o uso do novo fuzil Enfield, cujos cartuchos são lubrificados com gordura de vaca ou de porco: hindus e mulçumanos ficam chocadíssimos (cf. Inde, Larousse, Paris, 1992, p. 31).

1 Aparentemente, um rapaz de dezoito a vinte anos na Índia de 1880 é visto e se vê como um adolescente de quatorze ou quinze anos de nossa época atual.

2 Veremos que essa pergunta a respeito de Krishna e Kali é feita com muita freqüência, especialmente pelos membros do Brahmosamaj. Talvez se trate de um dos argumentos da propaganda anti-hindu.

3 Kshirod  escreveu “the sky” e “the firmament”, com certeza uma tradução aproximada dos dois termos sânscritos para o ar e o “éter” (akasha).

4 Literalmente, o peixe-do-lodo, mudfish.

5 Um condimento ácido. Nos ensinamentos de Ramakrishna o tamarindo freqüentemente representa a luxúria.

* Original I.1, tradução inglesa 1.

1  A seção 1, omitida aqui, é uma longa descrição dos templos de Dakshineswar.

2 Literalmente Thakur, o Senhor. Em 1882, pelo calendário bengali, seu aniversário caía no dia 18 de fevereiro.

3 Keshav Chandra Sen, o mais popular dos reformadores religiosos em Bengala no fim do século XIX, chefe de uma das ramificações do Brahmosamaj, amigo e admirador de Ramakrishna.

4 Graças a essas indicações, M poderá afirmar mais adiante que o encontro se deu no domingo 26 de fevereiro de 1882. O Sr. Cook era um missionário americano.

5 Inicial ao mesmo tempo do nome do autor (Mahendranath) e de seu apelido Mastar (o professor), sob o qual ele mesmo se designa geralmente.

6 Há duas camas no quarto, uma ao lado da outra; o Mestre se senta de pernas cruzadas na menor para falar e dorme na outra — sendo muito fora do comum um sannyasin dormir numa cama. Notem que o autor sempre “orienta” a cena.

7 M conta, aliás, que havia saído de casa com sua esposa na véspera, depois de um conflito com seu pai e a segunda esposa deste, e se achava numa situação de grande angústia.

8 O narrador do Bhagavata Purana, principal Escritura da devoção a Krishna. Não confundir o Bhagavata com o Bhagavad Guita!

9 Grande místico bengali do século XVI, também chamado Gauranga, Gaur (“o dourado”) e considerado um avatar, uma descida de Deus (Vishnu).

10 Fórmula védica que os brâmanes recitam especialmente ao nascer do sol; como todas essas fórmulas, contém a sílaba OM (ou AUM), que simboliza o Absoluto.

11 Um subúrbio residencial (outrora) a alguns quilômetros ao norte de Calcutá, na vizinhança de Dakshineswar.

12 Denominação respeitosa dada a um “liberto-vivo”; nessa época, diziam “o Paramahamsa, o Paramahamsa de Dakshineswar” para designar SR. Ver o Diálogo 14, nota 44.

13 Abreviaremos muitas vezes o nome de Sri Ramakrishna como SR — Sri (às vezes pronunciado e escrito Sri) corresponde aproximadamente a “senhor” diante de um nome de homem, mas também é usado diante do nome de um deus, uma deusa, um livro sagrado...

14 Shidhu não voltou mais.

15 Esses detalhes têm sua importância: normalmente um renunciante veste um pano laranja (guerua), sem orla, e anda descalço.

16 O uso do termo “senhor”, aqui e em outros momentos, substitui de maneira monótona várias formas respeitosas do bengali.

* Em se tratando de diálogos, usaremos o nível de linguagem do português do Brasil adequado às situações.

17 Talvez se trate de Pratap Hazra (Diálogo 8, nota 21), e seu irmão pode ter vindo procurá-lo, mandado pela família. Nesse caso,“ele” designaria Pratap.

18  Sobrinho de SR, sacerdote do templo, talvez uma testemunha muda da cena.

19 Tradução aproximada de vidyashakti ou  avidyashakti; cada um dos grandes deuses tem sua shakti, seu complemento feminino, uma deusa  que representa sua “energia”. Assim, Kali, a Natureza toda-poderosa, a Mãe, é o complemento feminino de Shiva, o Absoluto. Da mesma forma, no casal humano, a esposa é a shakti do marido, e pode lhe trazer luz (vidya) ou obscuridade (avidya).

20 Literalmente: “Você é um jñani (alguém que atingiu o conhecimento)?”

21 É importante notar que em bengali a mesma palavra (samsara) é usada para o mundo e para a vida em família. Às vezes é impossível escolher com clareza entre os dois sentidos.

22 A expressão usada é “mulher e ouro”, mas essas palavras não estão em bengali corrente e sim em sânscrito. Trata-se de uma expressão estereotipada: traduzi-la usando a palavra “mulher” traz involuntariamente uma nuance de misogínia que não está na mente de SR. Às vezes a tradução literal se impõe, mas raramente.

23 Outro nome de Kali: “a Mãe de tez azul escuro”, como o céu noturno.

* Bilva (ou belAegle marmelos): marmeleira-da-índia, também chamada marmelos-de-bengala — árvore cujas folhas, consideradas sagradas, são usadas no culto; o fruto dessa árvore (veja também panchavati: Diálogo 1, nota 34).

24 Ou  Noren: Narendranath Datta, o futuro Swami Vivekananda. Até então ele havia feito umas poucas visitas e se mantinha muito reservado, contrastando com o amor exuberante de SR para com seus discípulos.

25 O ramo “protestante” do Brahmosamaj, desligado do de Keshav Sen.

26 Um nome de Vishnu.

27 Literalmente, “dar mostra de tamas”, o modo obscuro e brutal do ser, em oposição a rajas, o modo do vigor e do brilho, e a sattva, o modo da doçura e da paz.

28 Literalmente, sattva.

29 Sábio legendário. Atribuem-se-lhe os Bhakti Sutras, que ensinam o caminho do amor.

30 Um discípulo que se verá pouco, pois mora em Dacca.

31 No Ramayana, chefe do exército dos macacos e o companheiro mais fiel de Rama. Mais abaixo, Vibhisana é outro fiel de Rama.

32 Um dos aspectos da “Mãe”.

33 Trecho levemente resumido.

34 Grupo de árvores sagradas de cinco espécies diferentes, lugar de ascese de SR muitos anos antes. Ou:

Pequeno bosque no qual se praticam disciplinas espirituais, composto de cinco árvores sagradas — uma ashvattha (ou pipal), um baniano, um bel (ou bilva), um amalaki e uma ashoka — plantadas em círculo, de acordo com as indicações das Escrituras, e com um altar no centro. O panchavati do jardim de Dakshineswar foi plantado por Sri Ramakrishna e Hriday. (cf. RamakrishnaVedanta Wordbook, Vedanta press, EUA, 1978)

* sadhana: disciplina espiritual, ascese.

35 Ou Bhavanath, um jovem discípulo muito fervoroso e muito amado por SR, que será envolvido pela vida em família e se afastará antes da morte do Mestre.

36 A atitude geral desses jovens entre si, e dos adultos para com eles, corresponde mais à adolescência — tendo-se em conta a Índia ou a época.

Ou porque se trata da Índia, ou por causa da época, a atitude geral desses jovens entre si, e dos adultos para com eles, corresponde mais à adolescência. (Qual frase fica melhor?)

37 De bruços no chão, atitude usual diante de uma imagem divina ou de um santo.

38 O demônio que raptou Sita, esposa de Rama; Vibhisana, mencionado acima, devoto de Rama, é seu meio-irmão.

* Local espaçoso, com o teto sustentado por colunas, o natmandir situa-se diante de um templo e é usado para música devocional, reuniões religiosas etc.

39 Um discípulo pertencente a uma rica família de proprietários rurais, mas que levava uma vida retirada graças a uma renda bem modesta oferecida por seus irmãos. Sua casa era a “base” de SR em Calcutá.

40 Literalmente, “quantos centavos”.

41 Ramachandra Datta e Manomohan Mitra, os dois primeiros verdadeiros discípulos de SR, chegados em 1879. Eram dois primos de cerca de trinta anos: Rama era médico e ateu naquela época; Manomohan, funcionário e brahmo.

42 Um discípulo extremamente importante, o futuro Swami Brahmananda, uma personalidade majestosa. Havia sido casado muito jovem com uma irmã de Manomohan.

43 Nityagopal Sen , um discípulo ainda jovem, de temperamento muito extático, que depois da morte do Mestre seguirá um caminho independente. Parece ter deixado poucas pegadas.

44 O afluxo de sangue colorindo a pele do peito é um sinal exterior do êxtase, mencionado várias vezes nos Diálogos.

45 O pandit Vidyasagar, de que se falará novamente no Diálogo 3, fundador de várias escolas em Calcutá, numa das quais M ensinava.

46 Alimento oferecido aos deuses no santuário familiar; mas aqui se trata do alimento oferecido primeiro ao Mestre.

47 Ele podia entrar em êxtase de modo imprevisível, e colocar-se em situações perigosas. Já se queimara gravemente num braseiro, e em 1883 quebraria o braço esquerdo. Um pouco mais tarde, um discípulo (Latu) ficaria permanentemente em Dakshineswar.

48 Sobrinho e companheiro de SR, com passar do tempo tornara-se cada vez mais possessivo e arrogante e fora mandado embora por uma atitude inadequada para com os donos do templo. A saída de Hriday permitiu à multidão de discípulos o acesso a SR.

49 Um professor de sua escola, que ensinava sânscrito.

50 É o início do incansável proselitismo de M, junto de seus colegas professores, de seu patrão Vidyasagar, e sobretudo de seus alunos, o que provocará conflitos e o levará a deixar essa escola por ocasião da doença de SR.

51 Ver a tradução de Michèle Lupsa, n.º 133. Os “seis pontos de vista” são as seis escolas clássicas da filosofia indiana.

52 Veremos várias vezes a descrição dos “sete planos” aos quais a mente se eleva. Na fisiologia mística dos Tantras, esses sete planos são representados por sete lótus, entre a base da coluna vertebral (muladhara) e o alto da cabeça (sahasrara). A energia que percorre esses sete centros é identificada com a Mãe.

53 O cisne macho é Shiva, o cisne fêmea é Kali. Sua união é a ascensão da energia vital até o sétimo lótus, o de mil pétalas.

54 Em sânscrito Vrindavan, o lugar da infância de Krishna e de seus amores com as gopis.

55 Literalmente, Kanai — um nome de Krishna — depois Ka.

* Original I.2, tradução inglesa 5.

1 Vijay Krishna Goswami, um dos dirigentes brahmos que não aceitara nem o culto que Keshav permitia que lhe prestassem e nem o casamento de sua filha com o filho de um maharaja antes da idade autorizada. Vijay pertencia à linha espiritual vishnuísta dos Goswamis, descendentes de Advaita Goswami, companheiro de Chaitanya.

2 Veremos que se trata de um grande iate a vapor, que talvez pertencesse ao genro de Keshav, o Maharaja.

3 Um babu é um bengali respeitável. Freqüentemente as pessoas “bem situadas” são designadas pelo seu nome seguido de babu (cf. o espanhol don).

4 Isso prova a afeição de Vijay por SR, pois ele vai enfrentar um ambiente hostil, como veremos.

5 M conhecia Keshav, do qual sua esposa era prima.

* Roupa masculina hindu que consiste numa peça de tecido enrolada na cintura, descendo até os pés.

6 Santo famoso que vivia numa caverna em Ghazipur, perto de Benares. Após a morte de SR, Vivekananda irá para junto dele, e se sentirá tentado a tornar-se seu discípulo.

* Esse parágrafo foi omitido por Swami Nikhilananda.

7 Alguns termos sânscritos foram substituídos por palavras comuns. Traduzimos por “vedantista” o termo jñani, isto é, aquele que segue o caminho do Conhecimento; “o Uno” é Brahman; “a Alma” é o Atman, ou seja, a alma individual profunda. E “devoto” traduz bhakta. Aí se encontram portanto três dos caminhos tradicionais da Índia: jñana, raja, bhakti. Falta o caminho da ação, karma yoga.

8 NP — De acordo com a filosofia  Samkhya os vinte e quatro tattvas, ou princípios cósmicos, são: os cinco grandes elementos em suas formas sutis (éter, ar, fogo, água, terra); o ego, ou “consciência do eu”; buddhi, ou inteligência; Avyakta, ou o Não-Manifestado (no qual sattva, rajas e tamas permanecem em estado indiferenciado); os cinco órgãos da ação (mãos, pés, aparelho fonador, aparelho reprodutor, aparelho excretor); os cinco órgãos do conhecimento (olhos, ouvidos, nariz, língua, pele); manas, ou mente; e os cinco objetos dos sentidos (audição, tato, visão, paladar, olfato). Todos eles pertencem à Prakriti, ou Natureza, e são distintos de Purusha, ou Consciência. (cf. Swami Nikhilananda — The Gospel of Sri Ramakrishna, Sri Ramakrishna Math, Madras, p. 1046).

9 Shakti: deve-se traduzir por uma palavra feminina, “força”, “energia” (melhor do que “poder”, por exemplo), a fim de expressar que se trata da Mãe, manifestação pessoal do Absoluto Impessoal.

10 Mais um termo técnico e uma oposição clássica: o Jogo Divino (Lila) em oposição ao Absoluto, o Eterno (Nitya).

11 Adyashakti, a Energia Primordial.

12 Keshav dirige-se a SR com a forma mais respeitosa do verbo, ao passo que SR usa a forma “média” mais familiar, ou mistura as duas.

13 Escrituras nas quais Shakti, a Mãe, desempenha um papel primordial.

14 Kala é aqui um nome para Shiva, o Absoluto.

15 “Kali” significa “a Negra”, e sua imagem é negra. SR responde a certos argumentos da prédica contra o culto das imagens.

16 Alusão a uma festa em que as crianças soltam pipas, cuja linha tem pedacinhos de vidro para cortar a linha do vizinho.

17 Trata-se da maya, um dos grandes temas da filosofia vedântica: o encantamento, o feitiço pelo qual o homem perde, ou pensa ter perdido, a consciência do Uno (Brahman). Para Ramakrishna, maya identifica-se com a Mãe.

* Traduzido conforme Swami Nikhilananda.

18 Vrindavan, o lugar da infância de Krishna, alvo de grande peregrinação.

19 A pureza ritual, alimentar; a casta.

20 Os prazeres (kama), as riquezas (artha), a justiça (dharma), a libertação (moksha). A árvore é o legendário kalpataru.

21 A alusão é obscura. A tradução de Swami Nikhilananda denomina-a “Mundanalidade”.

22 No Ramayana, o pai de Sita, a esposa de Rama. Era ao mesmo tempo um rei e um sábio.

23 Aju Gonsai ou Goswami, um poeta vishnuísta com o qual tinha uma rivalidade amistosa (nota de Michèle Lupsa).

24 O mundo e Deus.

25 As gopis, apaixonadas por Krishna adolescente, cuja história é contada no Bhagavata Purana, que é algo como o Cântico dos Cânticos indiano. Radha é a mais amada dentre elas.

26 A sogra e a cunhada de Radha, com ciúme de seu amor por Krishna.

27 Vishistadvaita, uma forma de não-dualismo que mantém a realidade do Deus Pessoal ao lado do Deus Impessoal.

28 Tradução aproximada para “ator” (agente do ato), aquele que age por si mesmo, termo ambíguo em português.

29 Sat-chit-ananda, Ser-conhecimento-beatitude, um modo clássico de designar Deus sem personalizá-Lo.

30 O maior mestre da Vedanta, partidário do monismo estrito (advaita).

31 Em Kamarpukur, a aldeia natal de SR.

32 Sambhu Mallik, um homem rico e religioso, adepto do Brahmosamaj, por intermédio do qual SR fora colocado em contato com o cristianismo, e que durante alguns anos cuidara das necessidades cotidianas de SR.

33 O templo principal de Kali  em Calcutá.

34 A Índia, como a Grécia, tem seu mito das quatro Eras (yuga) da humanidade, mas com um tempo cíclico. A Era de Ferro é denominada kaliyuga, “a era ruim” (sem relação com a deusa Kali, “a Negra”).

* Antigo carro de praça puxado a cavalo, alugado por corrida ou à hora.

35 A saudação indiana às pessoas muito respeitadas (guru, pais): tocar seus pés e depois a própria testa.

36 M procura mostrar que SR, apesar de ser brâmane, faz poucas exigências quanto à pureza ritual.

37 O texto inverte os dois nomes, por engano a nosso ver.

38 Ver Diálogo 13, nota 1.

39 Que SR visitará no Diálogo 13.

40 Seitas cujo deus principal é, respectivamente,Vishnu, Shiva e a Mãe.

41 Talvez M esteja indicando aqui o início de sua missão de cronista.

* Original III.1, tradução inglesa 3.

1 Intercalando-o portanto entre os Diálogos 2 e 5, que ocorrem em dois dias consecutivos.

2 Ishvar Chandra Bandopadhyay, denominado Vidyasagar (1820-1891), em bengali Biddashagor; esse nome significa “oceano de conhecimento”.

3 Uma nota no capítulo X da Vida de Ramakrishna de Romain Rolland menciona que ele rejeitou Deus por ocasião da grande fome de 1864.

4 Ver o Diálogo 1, nota 13.

5 Hábito clássico dos sannyasins, cor de laranja claro, levemente rosado.

6 Diálogo 1, nota 6.

7 Muitos ascetas usam marcas de seita na testa e nos braços.

8 O fundador do Brahmosamaj (1828) e do movimento de modernização intelectual em Bengala, no início do século XIX.

9 Parágrafo não traduzido por Swami Nikhilananda, e ligeiramente abreviado aqui (assim como a descrição da casa).

10 Tudo isso faz pensar na atitude de Gandhi.

11 Dois traços de generosidade: incomodar-se para assistir ao casamento de pessoas humildes e oferecer a custosa roupa de bodas.

12 Um costume seu ao sair do êxtase.

13 Os bengalis são grandes consumidores de guloseimas variadas.

14 O texto é estranho: quem é o “jovem devoto”? A tradução inglesa de M pode também sugerir que o elogio “ele é como o rio...” aplica-se ao próprio M, em resposta à frase anterior, e M, por modéstia, relata-o como se fosse dirigido a uma pessoa indeterminada. A tradição próxima de M confirma essa interpretação.

15 Alusão ao mito em que os deuses e os demônios batem o oceano de leite.

16 Esse tema freqüente em SR assemelha-se ao tema evangélico “eles já têm sua recompensa”.

17 A mesma palavra pode significar perfeito ou cozido.

18 Os “seis pontos de vista” do canto de Ramprasad no Diálogo 1.

19 Cf. Mateus v. 43: “Sede como vosso Pai, que faz chover sobre os justos e os injustos...”

20 Diálogo 2,  nota 29.

21 Os rishis, autores dos Upanishads.

22 Essa palavra indica um conhecimento “além” daquele do jñani.

23 O sentido dessa frase e de tudo o que diz respeito à vijñana no contexto, é a reconciliação das três formas clássicas da Vedanta: o não-dualismo estrito (Shankara) que faz do Deus pessoal uma ilusão, o não-dualismo moderado (Ramanuja) e o dualismo (Madhva). Tendo pouca estima pela teologia, SR não as considera como doutrinas opostas, mas sim como tendências, atitudes interiores suscetíveis de variação. O ensinamento de Vivekananda deslocará o tom, conforme seu próprio temperamento e o dos ocidentais, fascinados pelo não-dualismo estrito: esse último é para ele a verdade última, e as duas outras escolas, aproximações desta.

24 SR aborda aqui um outro ponto sensível nesse homem tão generoso: a idéia de uma espécie de democracia espiritual. A comparação com a “desigualdade evangélica” (Lucas, 8.18 por exemplo) é interessante.

25 Tagui pronuncia-se aproximadamente como tyagui, um renunciante.

26 Thakur: Senhor.Esse modo de falar a um brâmane indica um homem de baixa casta.

* Figueira sagrada da Índia (ficus religiosa).

27 Isto se diz hamba; repetir “hammahamma” dá “aham, aham”, quer dizer, “eu, eu” em sânscrito. Mais adiante “tumm” sugere “tum, tumi”, “tu” em hindi ou bengali.

28 Esse canto acha-se no final do Diálogo 1, ver notas 53 e seguintes.

29 Ver Diálogo 1, nota 33.

30 Ver Diálogo 1, nota 34.

31 Esses dois versos são bastante obscuros. “Apanhar a lua” significa acalmar a mente. Ver a tradução de Michèle Lupsa, n.º 75.

32 Literalmente, nos Agamas, Nigamas e Tantras.

33 Tudo isso é muito próximo de um trecho do Diálogo 2.4.

34 Talvez se trate de meses lunares!

35 O fim da instrução religiosa é marcado por uma mudança brusca no tom, da forma corriqueira para a forma de polidez, expressa aqui pelo termo “senhor” — não é habitual em SR; se não for uma inadvertência, indica grande respeito.

36 Um babu é um homem importante (Diálogo 2, nota 3).

* Vento periódico, típico do S. e S. E. da Ásia, que no verão sopra do mar para o continente (monção marítima) e no inverno sopra do continente para o mar (monção continental).

37 A palavra empregada (“mantra-raiz”) indica mantras monossilábicos especialmente dedicados a uma divindade, talvez Kali no caso.

* Ver Introdução, página ---, nota ---.

38 Balaram Basu (ver Diálogo 1, nota 41).

39 A corrida entre Calcutá e Dakshineswar custa caro, e representa um encargo pesado para pessoas pobres (ver o fim do Diálogo 6 com Vijay). Mas Balaram deve ter pago.

* Original II.1, tradução inglesa 4.

1 Alimento oferecido aos deuses. O que situa a cena no meio do dia.

2 A maior festa religiosa do ano em Bengala, dedicada à Mãe.

3 O estado de grande exaltação, consecutivo à sua primeira experiência do êxtase.

4 SR compreendia o sânscrito, mas não o falava.

5 Enquanto os Ramayana são em geral versões da epopéia sânscrita em língua corrente, este, o “Ramayana Espiritual”, é um texto vedântico em sânscrito, que insiste na identidade entre Rama e Brahman.

6 Essa narrativa figura também no Diálogo 2.6.

7 Primo de SR, sacerdote do templo de Krishna.

8 O grande ciclone de outubro de 1864, quando um maremoto quase aniquilou Calcutá.

9 Esse kaviraj (médico indiano tradicional) cuidara também de SR (Diálogo 11).

10 Um aristocrata que tem o sobrenome de Thakur (Tagore) e o título de rajá, como seu irmão Shurindro, abaixo.

11 Esse homem muito rico, cuja propriedade avizinhava com o templo, conhecera SR desde sua juventude e tratava-o com um misto de condescendência e fé um pouco supersticiosa que indignava os discípulos. Ramakrishna não se zangava e preferia seu cinismo à hipocrisia. Sua mãe era muito ligada a Ramakrishna.

12 O mais velho dos cinco filhos de Pandu, herói do Mahabharata, o rei justo por excelência, que só disse uma única mentira em toda a sua vida, e por esse pecado fez uma breve estadia no inferno.

13 SR chamava assim o encarregado de negócios do Marajá do Nepal, Vishvanath Upadhyay, um velho amigo; nós o veremos em pessoa no Diálogo 9.

14 Esses títulos honoríficos eram conferidos pelo governo britânico.

15 A fundadora do templo de Dakshineswar. Não ter guardado rancor a SR ilustra a religiosidade dessa mulher notável.

16 No Diálogo 1, o primeiro desses cantos provoca o êxtase testemunhado por M.

17 Literalmente, de Brahman, mas o mesmo verso é citado noutro momento com o nome de Hari (Vishnu).

18 Trecho ligeiramente resumido.

19 Shrishrima, a “venerável mãe”, isto é, Sarada Devi (Sharoda Debi), a esposa de Ramakrishna. Notar o duplo Shri, que indica um grande respeito. Ela morava num dos pequenos pavilhões de música (nahabat) do templo, e preparava a comida de SR (que tinha o estômago frágil) e das visitas que ficavam à noite.

20 A assinatura “Premdas” indica um canto de Traylokya Nath Sanyal, o grande cantor do Brahmosamaj de Keshav, que muitas vezes encontrou inspiração na companhia de Ramakrishna.

21 Doyamoy, um nome que os brahmos gostavam de dar para Deus.

22 Nobobidhan, o nome dado por Keshav à sua própria mensagem.

23 Ele desprezava a devoção, e recitava mantras vedânticos em seu rosário.

24 Nome das quatro Escrituras principais do hinduísmo, e de uma fórmula sagrada.

25 A Escritura, o Adorador e o Senhor, os três pólos da religião.

26 Tagui é uma aproximação de tyagui, um renunciante: SR vê na renúncia a própria essência do Guita.

27 Literalmente “os vinte e quatro princípios cósmicos”. Acima, “o Jogo” é em realidade “a Jogadora”, ou seja, a Mãe.

28 Diálogo 1, nota 36.

29 Várias vezes nos Diálogos fala-se desses métodos de utilização religiosa da sexualidade, que chamaram a atenção do Ocidente. São praticados em segredo pelos seguidores de Krishna ou de Shakti. SR os proíbe a seus próprios discípulos, mas recusando-se a condenar: se uma pessoa segue tal caminho com um coração sincero, diz, ele o levará também a Deus.

30 De esposo ou de amante (ou até de mulher apaixonada no caso de Krishna).

31 Literalmente, da mãe.

* Saudações a Deus.

32 Em sua tradução inglesa, M acrescenta um comentário: é preciso ter uma fé de criança como o primeiro.

33 Um dos mais antigos discípulos (Ver Diálogo 1, nota 43).

34 Os almanaques astrológicos bengalis indicam os dias propícios para as viagens, os casamentos, etc.

* Figueira gigantesca (ficus indica ou ficus bengalensis), de cujos ramos descem raízes compridas, que penetram na terra e formam novos troncos.

35 Diálogo 2.6. Os seis crocodilos são as seis “paixões”: luxúria, ira, avareza, ilusão, orgulho e inveja.

36 Pronunciado em bengali mais ou menos como Poddolochon, donde a abreviação Podo.

37 Forma de culto em que se movem luzes ao redor da imagem de um deus.

38 Mahendranath designa-se como M (Mastar) enquanto testemunha que não intervém na ação e como “Moni” quando participa de modo especial.

39 Isso parece ter ocorrido no caso da esposa de M.  Nós a encontramos junto de SR após o choque terrível da morte de seu filho, e depois (após a morte de SR) em peregrinação a Vrindavan com “a Santa Mãe” Sarada Devi.

40 Tradução emprestada do n.º 111 da revista Védanta.

* Original I.3, tradução inglesa 6.

1 Trata-se aqui do Sadharan Brahmosamaj, subdivisão destacada da de Keshav, e à qual pertence Vijay. Pode-se supor que este transmitira o convite na véspera.

2 Shivanath Shastri, um chefe importante do Brahmosamaj, considerado e querido por SR, retribuía-lhe a amizade, mas guardava em relação a ele uma reserva que foi crescendo com o passar dos anos. Era um homem direito e muito generoso, excelente escritor e pregador, profundamente religioso, apaixonado pela ação social, mas sentia uma repulsa evidente por qualquer culto “idólatra” (quer dirigido aos deuses hindus, quer ao mestre espiritual) e por qualquer forma de intemperança.

* Bétel ou bétele: planta sarmentosa e aromática, cujas folhas e nozes são mascadas como estimulante e digestivo.

3 Rani Rasmani, a fundadora do templo de Dakshineswar.

4 Chaitanya e seu companheiro Nityananda, por vezes apresentado como seu irmão.

* Sementes de uma árvore tropical da Ásia usadas para fazer rosários.

5 Shiva.

6 Versão completa desse canto no Diálogo 1.7.

7 Freqüentemente no hinduísmo os opostos Deus com forma/Deus sem forma e Deus pessoal/Deus impessoal tendem a se confundir. O mesmo não ocorre entre os brahmos, que rejeitam tanto o culto das imagens quanto o Absoluto impessoal da Vedanta.

8 Satchidananda: Ser-Conhecimento-Beatitude.

9 O grande santo meio-hindu meio-muçulmano do século XV.

10 As imagens de Kali (Shyama) e Krishna (Shyam) são escuras, “da cor do céu noturno”. Talvez aqui SR esteja respondendo a zombarias sobre o culto das imagens.

11 Trata-se de uma análise das sensações que acompanham a meditação e o êxtase. Em outros trechos essa descrição psicológica é seguida de uma “fisiologia” tântrica do “corpo sutil”, na qual os sete planos se tornam os sete nós ou centros, às vezes representados por lótus, ligados por “nervos” ao longo dos quais sobe uma corrente de energia.

12 Não se trata de uma simples lisonja: Shivanath era um pregador célebre.

13 Diálogo 4, nota 7.

14 Em sânscrito, “as mãos derretidas”.

15 Um certo número de rituais hindus comportam oferendas aos ancestrais. Os sannyasins, por terem renunciado à sua família, não têm mais o direito de cumpri-los. Mas que isso se torne de certo modo fisicamente impossível é uma característica de SR, que se repete a propósito de outras coisas: ele não consegue tocar o dinheiro, por exemplo.

16 Os brahmos não aceitam o conceito de avatar.

17 Isto é, Mathur Babu, o genro de Rani Rasmani, homem rico e inteligente, protetor de SR durante os anos de sua ascese e loucura mística.

18 A deusa da beleza e da riqueza.

19 Vrindavan, onde se passou a história de amor de Krishna e Radha.

20 Os “ogros”, cujo rei era Ravana, o qual havia raptado Sita, a esposa de Rama.

21 O irmão de Rama.

22 Esse diálogo é interessante. Certamente SR crê na reencarnação, ao passo que aquele que faz a pergunta duvida. Mas SR não quer discutir religião. Ver o complemento na página seguinte.

23 Um dos grandes heróis do Mahabharata. Ele combatia no campo oposto ao dos Pandavas.

24 Um dos cinco irmãos Pandavas, o mais próximo de Krishna.

25 Krishna não leva armas na grande batalha, mas conduz o carro de Arjuna.

26 O final está ligeiramente abreviado.

27 Bhagavata-bhakta-Bhagavan (Diálogo 4, nota 25).

28Adhar Sen, um “jovem executivo brilhante”, que alcançara rapidamente um cargo elevado na magistratura de Calcutá, muito devotado ao Mestre. Morrerá em 1884, devido a uma queda de cavalo.

* Original I.4, tradução inglesa 7.

1 Vijay Krishna Goswami (ver o Diálogo 2, nota 1).

2 Ver o Diálogo 1, nota 41. Como ele era mais rico, pagava a viagem para os outros.

3 Diálogo 1, nota 26.

4 Ver o Diálogo 1, nota 9.

5 Ele era bastante gordo.

6 Comparar com o diálogo anterior, nota 20: Vijay e os brahmos (e M) talvez duvidem da reencarnação; a atitude de Ramakrishna é mais direta: “devemos acreditar...”.

7 Esses rituais figuram nos Tantras (ver o Diálogo 2, nota 12).

8 Sobrinho e companheiro de SR durante toda sua juventude (Diálogo 1, nota 50).

9 Essa comparação se acha também no Diálogo 1.6.

* Abrunho: pequena ameixa selvagem.

10 Cf. Lucas 4.26: “Se alguém não odeia seu pai, sua mãe...”

11 Cf. Lucas. 9.59: “deixe os mortos enterrar seus mortos”.

12 Esse camponês dirige-se à esposa com o “tu” familiar, o que é vulgar.

13 A tradução literal convém melhor aqui do que “sexo e dinheiro”. O original diz “os seres” e não “os homens”. A sexualidade é posta em causa enquanto armadilha de maya, mas SR não acusa as mulheres de devorar os homens. Sabemos que Vijay era casado pelo Diálogo 15, onde sua sogra é mencionada.

14 A expressão “cabeças raspadas” que designa esses “monges” e “freiras” vishnuístas é um pouco pejorativa. A história ilustra um certo número de idéias que figuram nas epopéias tradicionais e impregnam o universo mental do hinduísmo. 1) O tema da veracidade absoluta: se alguém é absolutamente verídico durante muito tempo, atinge um estado em que tudo o que diz, mesmo sem prestar atenção, realiza-se. 2) A idéia de que ofender um homem santo, mesmo por descuido, pode gerar catástrofes. 3) A idéia de que a castidade absoluta permite concentrar poder e, inversamente, o exercício da atividade sexual dissipa esse poder.

15 Nitai, o companheiro de Chaitanya (Diálogo 4, nota 4).

16 Na aldeia natal de SR.

17 Segundo a concepção hindu, o guru assume o discípulo, e sua incapacidade de libertá-lo afunda-os ambos ainda mais.

18 Lembremos que essa expressão significa  Ser-Conhecimento-Beatitude, um outro nome para Deus.

19 Upadhi, termo filosófico da Vedanta que se poderia traduzir por “atributo, etiqueta”.

20 Literalmente, as canções de Nidhu Babu, isto é, Ramnidhi Gupta, poeta do século XVIII.

21 Isto é, os Upanishads. Sobre os “sete planos”, ver o Diálogo 1, nota 54 e o Diálogo 5.6.

22 Diálogo 5.4. O mesmo que para a boneca de sal.

23 Diálogo 3.5.

24 Um tema constante do ensinamento de SR: a desconfiança perante a presunção teológica.

25 A tradução não está totalmente fiel: esse contexto limita a imagem aos “livres de nascença”. O sentido geral (“a graça”) está atestado mais adiante (Diálogo 3.6). O “vento do sul” não só é fresco como também é proverbialmente considerado como um vento favorável.

26 SR havia ido visitar recentemente o estúdio de um fotógrafo e pedira que lhe explicassem o processo.

* Original 1.5, tradução inglesa 8.

1 Amritalal Basu, um brahmo próximo de Keshav. Este, após dois anos de atividade febril, ficou gravemente enfermo e não se restabeleceu mais.

2 Trailokya Nath Sanyal, apóstolo da “Nova Dispensação” de Keshav, grande cantor e autor de belíssimos cantos religiosos, encontrava inspiração na emoção religiosa de Keshav e SR. Cantará nos funerais de SR.

3 Sobre Rakhal (mais tarde Swami Brahmananda), ver o Diálogo 1, nota 44.

4 Os peregrinos do grande templo de Vishnu-Jagannath em Puri trazem do arroz que é oferecido ao Deus e conservado seco.

5 Um nome de Vishnu, ou simplesmente de Deus.

6 Um nome de Krishna. A nota da tradução de Swami Nikhilananda acrescenta: “Segundo o Mestre, Rakhal, numa de suas encarnações anteriores, havia sido um pastorzinho de Vrindavan e companheiro íntimo de Sri Krishna”.

7 Literalmente, “fixado na ponta do nariz”, como o recomenda a yoga.

8 O tecido ocre usado pelos renunciantes.

9 O Chandi é um grande poema de louvor à Mãe; as pessoas religiosas pedem que um sacerdote o cante em suas casas. A idéia parece ser a de tratar o objeto sagrado — o livro do Chandi ou o hábito da guerua — como objeto banal.

10 Tal peça era de Trailokya, presente naquele momento! SR vai criticar discretamente, diante daqueles dois discípulos próximos de Keshav, o comportamento um pouco excêntrico deste após o casamento de sua filha e a proclamação da “Nova Dispensação”. O próprio Keshav havia desempenhado o papel de Pawhari Baba e fizera a aspersão de água. De acordo com o Diálogo de 7 de abril, Naren havia representado também.

11 Isso reflete a ardente atração de Keshav pelo cristianismo e sua tendência em imitar os sacramentos cristãos: aqui o batismo, noutro momento a eucaristia.

12 Personificava o pecado.

13 Um nome de Chaitanya.

14 Keshav parece ter aplicado a si mesmo as palavras de SR sobre o “mandato divino”. Nessa época ele multiplicava as proclamações proféticas, em bengali e em inglês bíblico.

15 O lingam.

16 Uma nota da tradução de Swami Nikhilananda (p. 303) diz que se trata de uma lenda hindu clássica. A frase significa “meditando em Deus, a pessoa se torna como Ele”, mas aqui seria melhor “imaginando o que ocorre em mim, você gostaria de se tornar como eu”.

* Original I.6, tradução inglesa 12.

1 Adhar Sen (Diálogo 5, nota 28).

2 Na juventude de SR esse setor era ainda uma verdadeira selva.

3 Esse pandit tivera contato com SR por volta de 1864, ou seja, quase vinte anos antes desse diálogo.

4 Nessa época SR era muito pouco conhecido e tinha imenso desejo de partilhar sua experiência.

5 Este último foi um dos dois grandes teólogos que, por volta de 1866, reconhecera em SR as características de um avatar.

6 A história está contada mais detalhadamente na grande biografia de SR por Swami Saradananda, com a particularidade de que não se trata de Brahma mas de Vishnu.

7 Mais adiante veremos o próprio SR jogar no Ganges dinheiro e terra juntos.

8 O pandit Vidyasagar, escritor, educador e filantropo, o “patrão” de M (ver o Diálogo 3).

9 Precisamos lembrar aqui a teoria dos três modos do ser: tamas obscuro e brutal, rajas brilhante e orgulhoso, sattva doce e puro.

10 Diálogo 5.4; Diálogo 6.6.

11 Esse poema está traduzido no Diálogo 12.1. (“Ó minha mente, não sabes cultivar”). Trata-se de “conseguir cultivar o campo”, e o último verso (“se não o conseguires, chama Ramprasad para ajudar”) está interpretado de modo bem diferente aqui — a outra interpretação parece melhor: cf. o nº 101 na tradução de Michèle Lupsa (o texto também está um pouco diferente).

12 A mesma pergunta é feita no Diálogo 3.3.

13 Ver o Diálogo 2.8.

14 Precisamos lembrar os dois pólos do pensamento hindu: por um lado, Brahman, o Absoluto, o Uno, o princípio masculino (Purusha), o deus Shiva; por outro lado, a Força ou Energia (Shakti), a Ilusão (Maya), a multiplicidade, a Natureza (Prakriti), o princípio feminino, a deusa Kali.

15 O Bhagavata Purana, escritura fundamental do culto de Krishna; as invocações abaixo, que SR repetia em seu culto pessoal, são de origem vishnuísta.

16 Um vaishnava é um adorador de Vishnu ou de Krishna.

17 Tamas, rajas, sattva.

18 As aldeias natais de SR e Hriday.

19 Segundo uma tradição que remonta ao próprio M, “ele” seria M e “a obra” consiste em anotar as palavras de SR.

20 A alusão está um pouco diferente no original. Esta foi emprestada da tradução de Swami Nikhilananda.

21 Pratap Chandra Hazra vivia no templo de Dakshineswar desde muito tempo, tolerado por SR. Brâmane do interior fugido de seus credores, pai de família negligente, com sua barba majestosa, cobiçoso, mentiroso, vaidoso, fazia pose de mestre espiritual e vedantista realizado, e aliás tinha inteligência e conhecimentos teológicos. Naren gostava dele, mas os discípulos em sua maioria sentiam-se muito irritados.

22 A cunhada e a sogra de Radha (ver o Diálogo 2, nota 25).

23 Jagaddhatri, sentada sobre um leão que segura um elefante com suas garras.

24 Quantas pessoas fazem essa pergunta!

25 Só usado pelos homens.

26 A raiz da palavra yoga significa “união, junção”.

27 Essa imagem ocupa a posição central no templo de Dakshineswar.

28 Ver Diálogo 2, nota 8.

30 A reflexão precedente sobre o avatar levou à menção de Chaitanya, o grande místico, considerado como uma “descida” de Deus. Portanto, existe aqui um jogo com o sentido dos nomes de Chaitanya e de seus dois principais companheiros, Nityananda e Advaita Goswami.

31 Uma idéia importante do hinduísmo: a da escolha de uma forma predileta (Ishta) entre os aspectos possíveis da divindade.

* Original I.7, tradução inglesa 13.

1 Literalmente “Eu sou Kha”.  Sobre Krishnakishor, ver o Diálogo 2.6.

2 Sobre Hriday, o sobrinho de SR, ver o Diálogo 1, nota 50.

3 Durante longos meses de inconsciência extática.

4 Sobre Adhar  Sen, ver o Diálogo 5, nota 28.

5 Vishnu.

6 Após a visão de Deus, a alma alcança a libertação, mas o efeito das ações passadas prossegue até a morte do corpo.

7 Em outra versão se diz que ele fora condenado a renascer seis vezes com um só olho e que sua libertação anulara as cinco outras. Isso ilustra a idéia de retribuição segundo o hinduísmo.

8 Os cinco irmãos heróis do Mahabharata.

9 O “Capitão” (Diálogo 4, nota 13) é um dos mais antigos fiéis de SR, o qual deve ter conhecido por volta de 1872-73.

10 Bachelor of Arts, primeiro grau dos estudos universitários.

11 Alusão a uma parábola familiar, a dos brâmanes que se calam quando seu estômago está cheio, assim como se calam quando seu coração está repleto pela realização de Deus (Diálogo 5.6).

12 SR gosta muito que lhe contem suas próprias parábolas. Veremos exemplos de pequenos exames a que ele submete M.

* Chakora: pássaro mítico semelhante à perdiz, e que segundo as lendas antigas alimenta-se do néctar dos raios da lua.

13 Diálogo 8, nota 21.

14 Mais uma vez, o Capitão “devolve” a SR uma de suas frases familiares.

15 Para um hindu ortodoxo, um inglês (ainda que vice-rei) é um sem-casta, um intocável.

* Original I.8, tradução inglesa 14.

1 A divisão à qual pertencem Vijay e Shivanath (ver Diálogo 4).

2 Um brahmo rico e idoso, admirador fervoroso de SR (ver Diálogo 8).

3 Literalmente, “como um filete de óleo”.

4 Provavelmente Shivanath evita Ramakrishna.

5 Traduzido segundo Swami Nikhilananda. O original é menos explícito.

6 Este é o leitmotiv que resume a espiritualidade de Ramakrishna. Ver o Diálogo 2.6.

7 “Deus” no sentido usual do termo, em oposição ao Brahman sem atributos, o Uno sem segundo da Vedanta.

8 Muito próximo de Keshav, Pratap Chandra Majumdar o sucederá na chefia de sua divisão do Brahmosamaj.

9 O santo rei pai de Sita. Ver o Diálogo 2, nota 21.

10 Expressão estereotipada para designar as austeridades (nota da tradução de Swami Nikhilananda).

11 Diálogo 1.5, assim como para a “manteiga” mais adiante.

12 Diálogo 2.5.

13 Importante lugar de peregrinação vishnuísta.

14 Estamos quase um ano depois do Diálogo 4. Vijay iniciou uma evolução que o levou de volta ao hinduísmo ortodoxo.

15 Eremita hindu.

16 Ave de rapina européia da família dos falcônidas.

17 Esse provérbio está em hindi.

18 Diálogo 3, nota 5.

19 Essa imitação dos sadhus está em hindi e devia ser muito engraçada.

20 Distinguem-se três tipos de amor: bhakti (devoção), bhava (amor extático) e prema (amor supremo).

21 Trata-se da kumbhaka, estado de concentração e morte aparente descrito pelos tratados de yoga e que ocorre sem ser buscado.

22 É o despertar da kundalini. Atualmente, as livrarias do Ocidente têm prateleiras cheias de livros sobre esse assunto!

23 Notar que o discurso se torna bem mais cortante com a chegada dessas pessoas respeitadas. Em sua história do Brahmosamaj, Shivanath Sastri refere-se a Samadhyayi como “a renowned Vedic scholar of the time” (um sábio védico famoso).

* Original II.10, tradução inglesa 15.

1 Trata-se do próprio M.

2 Essa doença não é denominada. Shivanath Shastri diz que ele sofre de diabetes, esse flagelo de Bengala. Mas o terrível acesso de tosse do final sugere tuberculose. Keshav morreu em janeiro de 1884.

3 Essa visita é seu último encontro e os Diálogos não mencionam mais o relacionamento deles.

4 A educação das mulheres fazia parte do programa do Brahmosamaj.

5 Um jovem iletrado de Bihar. Contratado para o serviço de Ram, discípulo de SR, havia-se afeiçoado profundamente a este último e cuidava dele em Dakshineswar. Sem nunca ter aprendido a ler, tornar-se-á o grande Swami Adbhutananda. Seus discípulos recolheram suas lembranças de SR, muito comoventes.

6 Essa observação é menos anódina do que parece: até o fim, Keshav deverá desempenhar seu papel de homem público perante seus discípulos.

** Prasanna.

7 A palavra “alma” traduz atma e não deve ser confundida. Tem um sentido muito mais impessoal do que num contexto ocidental. É o “Ser”.

8 Mesmo em êxtase, Ramakrishna  não deixa de demonstrar sua grande cortesia: não quer sentar-se mais alto que Keshav.

9 Provavelmente no chão também.

10 Esse gesto demonstra a humildade de Keshav: a mão esquerda é a mão impura; não é usada para comer e evita-se tocar alguém com ela.

11 O sentido da palavra traduzida por “força”, shakti, vai do poder, a força em geral, ao Poder personificado, a Mãe.

12 Numa única palavra: onulom-bilom, em sânscrito anuloma-viloma, “num sentido e depois no outro”, “itus et reditus”, “ida e volta”.

13 A resposta a essa pergunta foi omitida aqui, mas explicitada adiante: porque Deus está manifestado neles. Ver duas notas abaixo.

14 Hazra se dirige a SR tratando-o por “você”, de acordo com a presunção do personagem.

15 Numa outra versão, citada em A Vida de Ramakrishna de Romain Rolland, é o próprio Naren que diz “Se o senhor ficar pensando em mim o tempo todo, vai perder sua devoção”, e SR fica profundamente perturbado. No dia seguinte diz a Naren: “A Mãe me disse que eu penso em você porque vejo Narayana em você. No dia em que não O vir mais, nem sequer olharei mais para você”.

16 Um intendente do templo de Kali, que venerava SR e lia o Mahabharata para ele.

17 Novamente onulom-bilom. Ver nota 12.

18 Literalmente, os devotos cheios de sattva.

19 Palavra do vocabulário técnico da filosofia hindu. É o princípio masculino, enquanto Prakriti é o princípio feminino. Este é a Natureza, sempre em atividade, enquanto que Purusha permanece imóvel em contemplação. Ver a estátua de Kali dançando sobre o corpo imóvel de Shiva.

20 Os “quatro frutos” da canção de Ramprasad (Ver Diálogo 2.6).

21 Sambhu Mallik, ver o Diálogo 2, nota 31.

22 Nesta insolência para com Vishnu talvez entre o fato de que Mathur era um adorador fervoroso de Kali.

23 A deusa da riqueza e da beleza.

* Ver Diálogo 1, nota .....(bilwa)

24 Todo o trecho que se segue é ambíguo: ele dá a Keshav uma esperança de cura, mas exorta-o a desligar-se completamente.

25 Um kaviraj é um médico indiano tradicional.

26 Retorno à saúde ou numa outra vida?

27 Isso é contado no Diálogo 1.3.

28 O costume (de origem muçulmana) proíbe-a de vir pessoalmente na sala onde estão os homens e de dirigir-lhes a palavra. Donde o papel intermediário de Umanath Gupta, um discípulo próximo de Keshav.

29 Fundador do Aryasamaj, movimento de reforma do hinduísmo, contemporâneo do Brahmosamaj mas mais desenvolvido no oeste da Índia, e que se propunha restabelecer a religião védica primitiva (tal como a concebia Dayananda).

30 Antigo nome de Bengala. Nessa época Dayananda só queria falar sânscrito.

31 Lá em Dakshineswar.

* Original I.9, tradução inglesa 15.

1 Ver o diálogo anterior.

2 A partir de agora, M vai inserir nos Diálogos reflexões pessoais, de uma forma um tanto desajeitada no início (como aqui, onde a modéstia o faz dissimular-se por detrás do conjunto dos discípulos), depois com segurança e beleza cada vez maiores. Todos esses trechos foram omitidos por Swami Nikhilananda.

3 O culto, e especialmente o culto doméstico.

4 A proibição de “mulher e ouro” toma uma forma muito concreta para Ramakrishna. Várias testemunhas, Shivanath e Naren entre outros, atestam que lhe é impossível tocar qualquer metal.

5 De fato, várias narrativas mostram SR reagindo ao toque de certas pessoas como que a uma queimadura, mas não parece, por exemplo, que a saudação ritual a um sadhu (que implica contato) tenha sido proibida às mulheres.

6 Várias vezes M desejou deixar sua família e tornar-se sannyasin, mas SR o proibiu. A pergunta talvez esteja sendo colocada na boca de um “discípulo” mais jovem.

7 Verso de uma canção; os diques de areia são os laços do mundo e da família.

8 O menino Krishna.

9 O assunto deve tocar M, cuja esposa ainda está reticente em relação a SR, e não muito equilibrada.

10 Ver o Diálogo 2, notas 19 e 20.

11 Ver o Diálogo 1, nota ----.

12 Onulom-bilom, ver o Diálogo precedente, nota 12.

  * Original 1.10, tradução inglesa 23.

1 Shurendro (Surendranath Mittra) é um homem jovem ainda (34 anos), casado, sem filhos, alto executivo numa firma inglesa, com salário elevado. Conheceu Ramakrishna desde 1880, por intermédio de Ram e Monomohon, e SR o libertou de certas tendências para a bebida e a libertinagem, que o atormentavam. É um homem suscetível e generoso. Em 1886, proverá as despesas mais pesadas da doença de Ramakrishna, depois as dos discípulos monásticos.

2 Que ele acabara de comprar em outubro de 82 (fim do Diálogo 2).

3 Essa festa na casa de Ram, pouco tempo depois da morte de Keshav, não é descrita em detalhe nos Diálogos.

4 Krishna era filho do rei de Mathura; seus pais o haviam confiado a camponeses para subtraí-lo ao ódio de seu tio Kamsa; por isso sua infância se passa em Vrindavan (Brindabon) entre os pastores e as pastoras (gopis) às margens do rio Jamuna. Depois mandam buscar o adolescente Krishna para colocá-lo no trono de Mathura.

5 Shuresh e Shurendro são a mesma pessoa.

6 Na verdade, Niranjan só chegará no início da parte 2; talvez se trate de um dos seus primeiros encontros com SR. Será um discípulo muito próximo, que se tornará Swami Niranjananda depois da morte do Mestre, e não viverá muito tempo.

7 Mais adiante se falará dele (nota 24).

8 Um brahmo idoso, ver o Diálogo 10.

9 Como era o costume, explica Swami Nikhilananda, visto que Chaitanya (Gauranga) fora o fundador da tradição do kirtan.

10 Navadvip ou Nadya era a cidade de Bengala onde Chaitanya passara sua juventude.

11 Literalmente, Shrimati: “Nossa Senhora”.

12 Os textos poéticos e as canções do kirtan sem sua música não são muito interessantes para o leitor ocidental. Por isso foram um pouco abreviados.

13 O texto não o explicita, mas normalmente o papel principal é desempenhado por um homem.

** tamala: árvore de folhas azul-escuro, a favorita de Sri Krishna.

14 A canção seguinte foi omitida e o texto resumido.

15 O pai de Rama. Mais adiante, Nanda é o pai (adotivo) de Krishna em Vrindavan.

16 É a primeira vez nos Diálogos que é mencionada a possibilidade de que SR seja um avatar.

17 Isso parece contradizer os ensinamentos dados aos brahmos nos primeiros Diálogos. A diferença é que talvez Niranjan (que SR considera como um “sempre-livre”) ainda não tinha se comprometido com a vida.

18 Outro grande discípulo, o futuro Swami Premananda.

19 Uma das comparações favoritas de SR: uma grande alma é um “grande recipiente” no qual as emoções não se notam.

* O texto traz Norendro ao invés de Shurendro, o que é pouco verossímil.

20 As pessoas implicavam com Ram por causa de sua possível avareza, lembrando talvez as primeiras festas que ele organizara em sua casa. Depois, ele se tornara um especialista.

21 Bhagavan Das, famoso santo vishnuísta.

22 Frase obscura, não traduzida por Swami Nikhilananda.

23 Bhavanath  dirige-se a M de forma respeitosa, embora este não seja muito mais velho.

24 Mahimacharan Chakravarty, personagem que pertence ao “círculo externo” dos admiradores de SR, um tanto ridículo porque se dá muita importância (ver também o Diálogo 16).

25 SR dá uma leve alfinetada em Mahimacharon, que acaba de chegar bem na hora da refeição. Mas nisso vai também certa seriedade: a generosidade é a primeira qualidade que SR pede aos chefes de família.

26 Aqui SR se dirige a Mahima usando o tratamento respeitoso, mas na verdade está zombando um pouco ao pedir a esse brâmane pretensioso para prestar um serviço.

*

27 Protap Chondro Mojumdar (Pratap Chandra Majumdar) é uma das figuras importantes do Brahmosamaj. Muito próximo de Keshav, parece ter compartilhado o interesse deste pelo cristianismo. Ele será um dos delegados no Parlamento das Religiões de Chicago (1893) que tornará Vivekananda célebre.

28 Diabetes, provavelmente. Notar que Pratap cumprimentou à inglesa e não como os hindus e Keshav.

29 Satyendranath Tagore, segundo filho de Devendranath; o poeta Rabindranath era o décimo quinto.

30 Para Keshav (e todo o Brahmosamaj) o mundo é bem real: devemos agir nele com justiça, aproveitando-nos dele, sem que jamais seja necessário rejeitá-lo. Para o hinduísmo tradicional (e para SR) Deus é a realidade, e a vida no mundo é o pior que pode acontecer. São duas atitudes entre a quais o Ocidente cristão também oscilou ao longo dos séculos.

31 Ramabai Pandita (1858-1922). Os maratas são um povo da Índia meridional.

32 Essa história aparece também no Diálogo 3.5.

32 Um pisacha, categoria de ser demoníaco, sem equivalente ocidental.

33 As três gunas: sattva, rajas e tamas.

34 Pelo Bhagavad Guita.

35 Sambhu Mallik (ver Diálogo 2, nota 31).

36 Esta parábola já figura no Diálogo 3.6.

37 Divindade menor, cujo atributo é a riqueza.

38 Trata-se realmente de uma crise grave na igreja da “Nova Dispensação”, e que resultará num cisma quádruplo. Pratap, sucessor designado por Keshav, encontrava-se na Inglaterra por ocasião da morte deste. Ao retornar, foi-lhe recusada a cátedra de Keshav.

39 Keshav tinha a grandeza de alma necessária para aceitar comentários irônicos sobre o Brahmosamaj, mas não se sabe se o mesmo ocorre com Pratap.

40 Confraria religiosa vishnuísta da linha de Chaitanya. Sobre Samadhyayi, ver o Diálogo 10, nota 21.

41 Ver o Diálogo 10.4.

42 Chaitanya e Nityananda.

43 História bem irreverente, aliás; duvidamos que Pratap a tenha apreciado.

44 Esse canto já aparece no Diálogo 5.7.

45 Subentendido: mesmo após o samadhi. Como para São Paulo, só a caridade sobrevive à presença de Deus.

46 Ver Diálogo 1.5.

47 Encontra-se aqui uma idéia que está ficando na moda e que irá longe (especialmente na prédica de Vivekananda): a aproximação de certas idéias científicas com o Deus Impessoal do hinduísmo.

48 Essas palavras estão em inglês e explicadas em bengali por M: “as boas ações são recompensadas e as más são punidas”.

49 Foi a resposta de M no Diálogo 1.4.

50 A favor de Pratap, digamos que ele já ouvira aquele discurso com certeza, sendo aliás a parte do ensinamento de SR que as pessoas do Brahmosamaj rejeitavam. E sobretudo criticavam vigorosamente a conduta de SR em relação à sua própria esposa: vida de castidade e permanência no confinamento tradicional.

51 Isto é, luchis (pão fino feito de farinha e frito na manteiga). Na pronúncia interiorana de SR o l e o n são intercambiáveis.

* Original I.11, tradução inglesa 24.

** Souvenirs, Connaissance de l’ Orient, Gallimard, p. 210.

1 Rathyatra, Rothjatra, festa muito popular em Bengala e Orissa, dedicada a Vishnu Senhor do Universo (Jagannath), na qual se levam as imagens de Krishna, Balarama e Subhadra em carros puxados por homens, carros enormes como em Puri ou então bem pequenos para passeios curtos.

2 Discípulo chefe de família, brâmane ortodoxo, que não pertence ao círculo íntimo mas permanecerá fiel a SR até sua última doença.

3 Essa frase, não traduzida por Swami Nikhilananda, parece indicar uma visita à casa de M, que, desejoso de passar desapercebido, nada relata a esse respeito.

4 Provavelmente Narendro esteja irritado porque SR fala dele com todo mundo. Esse trecho não foi traduzido por Swami Nikhilananda.

5 SR pensa que as profissões “calculistas” desviam a mente de Deus.

6 Srish parece apenas estar “devolvendo” a SR o próprio ensinamento deste, transmitido à família por seu pai Ishan.

7 Ver o Diálogo 3.7.

8 Cf. a esposa que leva para a luz no Diálogo 1, nota 20.

9 Ou melhor, ele era naturalmente robusto, mas desgastado por anos de êxtase desenfreado e negligência para com seu próprio corpo.

10 No entanto, poderemos vê-lo caminhando, e bem rápido aliás, no Diálogo 17.

11 Sementes com que se fazem rosários dedicados a Shiva.

12 A fruta do tamarindo é muito ácida e a da mangueira é doce.

13 São as palavras pelas quais começa o livro dos Diálogos.

14 Mesma parábola que nos Diálogos 3.6 e 5.6.

15 Diálogo 1.1.

16 Ver Diálogo 2.8.

17 Os camponeses ainda estão no tempo da Companhia das Índias.

18 Um lutador famoso, explica a tradução de M.

19 De acordo com a tradução de M, já que o texto bengali não está claro.

20 Esse canto se encontra no Diálogo 5.7.

21 Literalmente, “oceano de amrita”, a ambrosia dos gregos,  bebida que dá a imortalidade aos deuses.

22 Ver Diálogo 13.7.

23 Ramakrishna vai reunir agora todos os grandes temas de seu ensinamento, que não se cansa de repetir. Podemos admirar-nos de que ele esteja dizendo ao pandit coisas conhecidas por todos, mas talvez queira mostrar-lhe o que deve ser uma “conferência”.

24 Normalmente, trata-se de praticar sem apego o nosso “dever de condição” (em geral fixado pela casta), mas aqui o sentido está desviado: a ação externa é também o conjunto dos rituais do hinduísmo.

25 Que, a rigor, dizem respeito à raja yoga.

26 Deus com forma.

27 Imenso gramado que serve como espaço para jogos, passeio, etc.

28 Poder-se-ia tentar um paralelo entre essa recusa dos “frutos” e o leitmotiv evangélico “eles já têm sua recompensa”, mas sem levá-lo muito longe: a idéia de uma retribuição mecânica da ação no hinduísmo opõe-se à da justiça de Deus na Bíblia.

29 SR está zombando claramente de Hazra, mas não compreendemos muito bem o modo como o faz. Talvez Hrishkesh, porta das grandes peregrinações no Himalaia, não fique nem tão longe nem tão alto.

30 Frase deslocada do parágrafo seguinte.

31 Jóia que Vishnu usa no peito.

32 Mesma comparação que no Diálogo 5.3.

33 Talvez haja nisso uma alusão à história de Naren (ver as biografias): quando da segunda visita de Naren a Ramakrishna, este o fizera entrar em samadhi, tocando-o. Esse incidente era bem conhecido pelos discípulos.

34 Essa frase descreve a situação de Narendro, e a frase seguinte sobre a confiança em Deus também é dirigida a ele.

* Ver Introd., página ---, nota ---.

35 A reprimenda com certeza serve para Hazra.

36 É a primeira vez, desde o início dos Diálogos, que M relata um fato “extraordinário”.

37 Existe aqui um jogo de palavras com o nome do pandit Shashadhar.

38 Com certeza Ishan está repetindo uma das comparações de SR.

39 A mãe (adotiva) de Krishna.

40 Ligeiramente resumida aqui.

41 É por isso que um liberto em vida é chamado “paramahamsa”, um grande cisne.

* Original 1.12, tradução inglesa 32.

[1] Traylokya Nath Sanyal, poeta e cantor, discípulo próximo de Keshav.

[2] Esses magistrados indianos (de nível subalterno) eram um pouco o símbolo das promessas do Império britânico no final do século dezenove.

[3] Esse parágrafo solene, omitido por Swami Nikhilananda, é muito interessante quanto ao pensamento de M. Encontraremos trecho análogo no diálogo seguinte.

[4] Essa agressividade surpreende, mas M é um leitor assíduo do Evangelho: “cheios de ciúme”, com certeza porque “discutiam quem seria o primeiro”, o que para M talvez prenuncie a divisão das igrejas cristãs; “desprovidos de compreensão” provavelmente porque várias vezes “Jesus lhes disse... e eles não compreenderam”. Para a tradição cristã, as características negativas dos discípulos (ademais de seu interesse histórico) valorizam a ação do Espírito Santo, que pode transformar simples pescadores em apóstolos. Isso não satisfaz a necessidade de admiração absoluta dos hindus (ver no Diálogo 14.3 a observação de SR sobre o pecador convertido). A idéia de que a Ásia tem maior capacidade do que o Ocidente materialista para compreender Cristo já era um tema na prédica de Keshav.

[5] Guita, VIII. 9-11; a “lembrança no momento da morte” será um dos temas da discussão.

[6] Essa expressão figura no início do Diálogo 1.

[7] No Mahabharata.

[8] Trecho obscuro. Estaria de acordo com o costume de SR de procurar deixar o plano do Absoluto para voltar ao relativo, e o “haxixe” seria maya então. Mas a palavra karana, a Causa, traduzida aqui por “Absoluto”, tem múltiplos significados, e a palavra traduzida abaixo como “coisas” poderia também ser compreendida como “o real”, com o sentido oposto.

[9] O parágrafo que se segue joga com três sentidos da palavra siddhi:  1) o haxixe indiano, 2) os poderes dos yoguis, 3) o estado de perfeição.

[10] O fogo sagrado é produzido pela fricção de dois pedaços de madeira.

[11] Ver o Diálogo 5.7.

[12] Literalmente, “o mundo lunar, o mundo solar, o mundo estelar”. Tais mundos figuram entre as moradas das almas, segundo certas concepções dos teósofos. Como Sri Ramakrishna não as menciona em outra parte, tudo indica que se trata simplesmente da lua, do sol e das estrelas.

[13] Swami Nikhilananda traduz: “O quê? Você está dizendo que a lua e o vaga-lume são iguais?”

[14] Expressão idiomática. Ver o Diálogo 10.2. (A nota de Swami Nikhilananda diz: “Um dos exercícios praticados às vezes pelos hatha yoguis; expressão que descreve também as austeridades em geral”).

[15] Sri Ramakrishna está se dirigindo a um público masculino na ocasião. Mas é evidente que a questão da castidade se coloca de modo geral para todos os que buscam a realização espiritual, homens ou mulheres.

[16] Aqui a ascese cristã acrescenta os demônios. Observar também que para os hindus, “os sentidos” compreendem os sentidos interiores: as faculdades intelectuais e o eu.

[17] M coloca entre parênteses (a Bíblia), mas provavelmente tratava-se de um fascículo de propaganda religiosa.

[18] Diálogo 2.6.

[19] Essa é uma idéia nova nos Diálogos, enunciada de modo a impressionar o jurista. Mais tarde, essa espiritualidade de entrega transformará Girish.

[20] Traduzido segundo Swami Nikhilananda.

21 Ver as primeiras palavras de SR no Diálogo 1.

22 Ver Introd., página ---, nota---.

23 Isto é, todos os bens (ver Diálogo 2, nota 19).

24 O Durga puja dura três dias: cultuam-se com entusiasmo grandes estátuas da deusa, de argila crua, pintadas e ornamentadas, que ao terceiro dia são carregadas em procissão e lançadas ao rio.

25 Ver Diálogo 5.2.

26 A rainha Vitória, uma vez que a Índia se encontrava sob o domínio da Inglaterra.

27 A tradução de Swami Nikhilananda diz “seu templo particular”, mas isso parece tornar o personagem demasiado grandioso.

28 Ver a parábola dos peixes na rede, Diálogo 1.6.

29 O tema da conversão final lembra aqui o sabor da prédica cristã medieval. Ver também o Diálogo 6.2.

30 A água que se despeja sobre os pés da imagem do deus durante o culto; a seguir, algumas gotas são colocadas pelo sacerdote na palma das mãos dos fiéis, que as bebem com devoção.

31 Só duas ou três pessoas (Baburam, Latu) podiam tocá-lo em seu estado de êxtase. Os outros lhe causavam um sofrimento agudo.

32 Literalmente, “receber seu darshan”.  As mulheres estavam portanto separadas dos homens, o que nem sempre ocorria entre os brahmos.

33 Todos esperam o jantar também.

34 SR gosta muito dessa comparação, que aparece aqui pela quarta vez.

35 Ver o Diálogo 2, nota 27. (verificar todos os “renvois”)

36 Muitos santos hindus são chamados “pai”, ou melhor, “papai” (baba) por seus discípulos. Assim como Pawhari Baba, mencionado no Diálogo 2.1.

37 A lua é um personagem masculino na Índia. Aqui se trata de Deus, evidentemente.

38 Texto ligeiramente abreviado.

39 O que certamente ocorre com os meninos na Índia, onde o pai representa um papel distante e severo.

40 Um dos filhos do rico Mathur Babu chamava-se assim. Talvez se trate dele.

41 Shiva, Brahman.

42 Dois bairros de Calcutá.

43 Esse cântico aparece integralmente no Diálogo 3.6.

44 Ver os Diálogos 2.6 e 11.5.

45 O sobrinho de SR, já mencionado no Diálogo 1, nota 19.

* Original I.13, tradução inglesa 33.

1 Linha omitida, citação de uma canção.

2 O outono é a mais bela estação na Índia, depois do calor do fim da primavera e da monção do verão.

3 Local da infância de Krishna. Diálogo 1, nota 56.

4 Vários desses “novos” são jovens alunos de M.

5 Mais tarde Swami Premananda.

6 Mais tarde Swami Yogananda.

7 A mãe de Baburam era profundamente religiosa. Quanto a Adhar, ele vinha todas as noites após o trabalho e muitas vezes logo adormecia.

8 Apo-Narayana, ver o Diálogo 1.6.

9 Lugar onde se faziam as necessidades. Os discípulos disputavam os pequenos favores para com o Mestre.

10 O sobrinho de SR, que o servira durante anos. Fora expulso do templo pelos patrões e havia ido embora para o campo, com a proibição expressa de retornar.

11 Ou tulasi: manjericão sagrado, usado no culto de Vishnu.

12 De acordo com a boa educação indiana, SR deveria dirigir-se a Hriday com o tratamento familiar e Hriday a SR com o tratamento respeitoso. Mas aqui Hriday começa com  o “você” informal e termina dizendo  “senhor”.

13 Não se sabe nada dessa segunda visita, à qual M não assistiu. Parece que depois ele não voltou mais, nem mesmo durante a doença de SR. Após o falecimento de SR, Hriday é visto em Calcutá, muito pobre e cheio de saudades. De vez em quando visitava o monastério, e deu informações inestimáveis a Swami Saradananda sobre a juventude de SR e seus primeiros anos em Dakshineswar — mas seria ele digno de confiança?

14 Vários meses consecutivos em êxtase, segundo suas biografias.

15 Aqui não se trata do samadhi imóvel, mas de uma forma de êxtase relacionada à bhakti.

16 Observar que SR não se apresenta como guru de Mahima.

17 Moeda divisionária da Índia, correspondente a 1/16 da rúpia.

18 Em “inglês” no texto: ciência.

19 Vidyashakti, ver o Diálogo 1, nota 20.

20 Talvez seu guru, donde a invocação abaixo. Se alguém quiser experimentar a receita, a estrela Svati é Arcturus.

21 O guru é identificado com Deus.

22 Citação em hindi, já vista no Diálogo 10, nota 15.

23 A esposa de Vishnu, deusa da beleza e da fortuna.

25 A capital do reino de Rama.

26 Traduzido conforme Swami Nikhilananda. O texto diz “após ter alcançado o conhecimento junto de seu guru”, mas o sentido é menos satisfatório.

27 Daqui até a anedota sobre Devendranath, M intercala suas próprias reflexões, omitidas na edição inglesa.

28 O fundador do Aryasamaj, que desprezava o hinduísmo tardio e queria voltar aos Vedas.

29 Abreviamos um pouco esse trecho, reduzindo ao máximo as citações do diálogo. Está claro que M aplica a si mesmo esse ensinamento, destinado aos homens casados. Mas vimos no §1 que SR se esforça para que os mais jovens, aqueles que ainda não entraram no mundo, escolham o caminho monástico. Encontramos a mesma ambigüidade na espiritualidade cristã e nas discussões teológicas para determinar se o estado monástico é  “mais perfeito” que o casamento.

30 Devendranath Tagore, pai de Rabindranath, chefe do primeiro Brahmosamaj. Era um homem admirável em muitos aspectos, mas um grande senhor, acostumado a muito respeito. Talvez a pequena cena insolente contada acima tenha trazido a Ramakrishna uma certa hostilidade da família Tagore.

31 Termo afetuoso, um pouco como o nosso “papai” —  uma das “três palavras que picam como espinhos”, e que SR não aceita mais de seus discípulos.

32 R. Rolland explica, com certeza baseado em informadores indianos, que o êxtase provoca um afluxo de sangue que deixa marcas duradouras na pele. Portanto a conclusão do exame é positiva.

33 Seria de se esperar “a Debendro”, mas talvez o respeito tenha contido M.

34 Yoga e bhoga.

35 Nas lembranças de Rabindranath Tagore, vemos ao contrário que seu pai passava meses solitário.

36 Vemos que o “riso” de  SR não se manifesta externamente: esse cumprimento agradou com certeza.

37 Citação, ver o Diálogo 2, nota 23.

38 Freqüentemente SR se refere aos Upanishads chamando-os assim.

39 Traduzido de acordo com Swami Nikhilananda, invertendo duas frases.

40 O bengali familiar de SR não consegue manter por muito tempo o registro do tratamento formal e polido (“senhor”).

41 Diálogo 4, nota 13.

42 Pequeno favor pessoal que freqüentemente vemos os discípulos prestando ao seu guru.

43 Estrangeiros, mlechchas.

44 Assistimos à cena no Diálogo 9.4.

45 Essa história não é especialmente vedântica, mas pertence à sabedoria das nações, como a história de Tchuang Tseu sonhando ser uma borboleta e perguntando-se se ele não era uma borboleta sonhando ser Tchuang Tseu.

46 Literalmente, “era um grande jñani”.

47 A sílaba sagrada do Vedas, geralmente transcrita como OM.

48 Segundo a Vedanta, o “corpo grosseiro” é esse que todos nós conhecemos; o “corpo sutil” corresponde ao estado de sonho; e também é o que acompanha a alma após a morte; o “corpo causal” corresponde ao estado de sono profundo.

* Chidakasha: o Akasha ou Espaço de Chit, a Consciência Absoluta; o Espírito Onipresente.

49 Aqui, SR cita um verso em sânscrito. O mesmo ocorre acima a respeito da bem-aventurança de Brahman.

50 O criador do universo, que ocupa uma posição modesta no hinduísmo.

51 Alusão a um episódio do Mahabharata. Os Yadavas (o clã ao qual pertencia Sri Krishna) haviam tentado reduzir a limalha aquele pilão de ferro, instrumento da maldição de um rishi, mas cada fragmento dera uma nova arma.

52 Como o próprio SR, nascido após uma peregrinação de seu pai ao grande santuário vishnuísta de Gaya.

53 A repetição de um mantra, dado geralmente pelo guru na iniciação. Quase sempre se trata de um Nome de Deus, mas mais provavelmente de um mantra vedântico no caso de Hazra.

54 No diálogo de 24/4 (não traduzido) ficamos sabendo que a mãe de Hazra morreu sem rever seu filho.

55 Na juventude de SR, durante sua grande peregrinação com Mathur Babu.

56 SR repugna em dizer “meu nome”.

57 Essa cena um pouco azeda está provavelmente relacionada a reprovações bem claras. Hazra às vezes pregava peças abomináveis, como sugerir a visitantes vindos de longe que SR estava ausente, para que ouvissem a ele. Também deixara entender aos jovens discípulos que o Mestre os enganava ao recusar comunicar-lhes seus poderes.

58 Literalmente, “mantras-sementes”, que são mantras monossilábicos sem significado explícito.

59 Esse belo parágrafo, omitido na edição inglesa, expressa o pensamento do próprio M, na perspectiva do ensino da renúncia dado acima por SR.

60 Conforme o ensinamento do Guita.

61 Grande devoto de Vishnu, filho do cruel demônio Hiranyakashpu, que o perseguiu.

62 Todo esse trecho foi omitido na tradução de Swami Nikhilananda.

63 As palavras em itálico aparecem em inglês no original.

64 Literalmente, o sanatana dharma, a religião eterna; nome que os hindus dão ao hinduísmo.

65 Vishistadvaita, a doutrina de Ramanuja, antes que a de Shankara.

66 Na filosofia Samkhya é o Homem cósmico, inativo, oposto à Prakriti, a Natureza, sempre em atividade.

* Original I.14, tradução inglesa 38.

1 No sul da Índia, nas cerimônias realizadas após a morte de Gandhi, o abade Monchanin ouvirá vários conferencistas sugerirem que Gandhi era um avatar; os discípulos de Ma Anandamayi consideram-na um avatar de Kali.

2 Dito isso, a concepção cristã da encarnação, bem conhecida por aqueles indianos ocidentalizados, incide fortemente sobre a discussão.

3 Assim fez para M no final do Diálogo 1.

4 Nada pode dar mais prazer a um discípulo hindu do que prestar esse tipo de pequenos favores pessoais ao seu guru. Os costumes da Índia, e mais geralmente do Oriente, impõem uma reserva muito grande nas relações com o sexo oposto e são ao contrário menos suspeitosos que os nossos nos contatos físicos entre pessoas do mesmo sexo. A atitude vitoriana importada influenciou M mas não Ramakrishna, que mais adiante veremos acariciando Naren (também educado à inglesa).

5 Isso parece ser proveniente de uma incapacidade de tocar as moedas, generalizada para todos os objetos metálicos. Esse fenômeno é relatado por várias testemunhas.

6 O “pequeno Noren” é elogiado várias vezes nos Diálogos por sua inclinação para a vida religiosa: pureza e sinceridade, renúncia, concentração, que o levam facilmente a estados elevados. Casado por sua família antes da morte de SR, para grande pesar deste, suas pegadas se perdem a seguir.

7 Isso significa que ele pouco se manifesta externamente. M devolve a SR uma de suas expressões: a água de um pequeno recipiente agita-se facilmente, a de um grande recipiente permanece imóvel.

8 É possível que Latu (que é do Bihar, e iletrado) fale um bengali rudimentar. Mas o mesmo ocorre com Nityagopal, que é bengali.

9 Chunilal Boshu, um vizinho muito modesto de Boloram, que viverá até 1936, uma das últimas testemunhas da vida de SR.

10 Frase acrescentada pela tradução de Swami Nikhilananda para completar a seqüência lógica.

11 Talvez a comparação com a lenha esteja deslocada: situa-se no mesmo sentido que a do ubre da vaca, com a idéia de uma “concentração” da presença de Deus no avatar.

12 Avatar significa “descida”.

13 Citação em sânscrito.

14 Essas duas palavras são uma tentativa de traduzir os termos manas e buddhi, que comportam uma nuance técnica nas concepções psicológicas hindus.

15 O manjericão sagrado, tulsi. Ver o Diálogo 16, nota 11.

16 Jovens discípulos que visitam regularmente SR. Só Baburam (Swami Premananda) se tornará “um navio grande”; Purna será casado à força por seus pais, permanecerá muito próximo e morrerá jovem; dos outros nada se sabe.

17 Nessa civilização das guloseimas, os visitantes trazem doces, que o Mestre redistribui.

18 No entanto, em diálogo posterior (14 de junho, não traduzido), SR reprova rigorosamente Naren por conviver com essas pessoas muito ricas. É que SR está preocupado; Naren ainda pode pender para o lado do mundo (como o fará Bhavanath, por exemplo), e tornar-se um “fiapo de palha” ao invés de um “grande navio”.

19 Esse cântico, composto por Girish para uma de suas peças, é uma litania de epítetos sânscritos em louvor a Krishna. Provavelmente o convite entre parênteses é retomado em coro.

20 Nimai e Nitai são outros nomes de Chaitanya (Gauranga, Gaur) e Nityananda.

21 Aqui Chaitanya é identificado com Krishna.

22 A partir daquele momento, M começará a cantar e não deixará de fazê-lo até seus últimos dias.

23 Ambos tinham grande fama de beberrões.

24 Literalmente, “qual é a idéia daqui?”

25 Esse cântico aparece no Diálogo 8.3.

26 Esse cântico descreve a imagem de Kali em pé sobre o corpo de Shiva estendido, que é a divindade central de Dakshineswar; Shiva é o Absoluto, Kali a Natureza criadora, o universo é a expressão da “loucura” de Deus.

27 Talvez se trate aqui do primeiro ataque da “dor de garganta”, mencionada no diálogo de 24 de abril (não traduzido neste volume), a qual se revelará como sendo um câncer. Mas estamos apenas a 11 de março e pode ser um simples resfriado.

28 A menção de M, aqui e um pouco abaixo, foi acrescentada nesta tradução; conforme seu hábito, M deixa esses comentários sob forma impessoal, ou escreve “certos devotos pensavam que...”.

29 Dessa vez M fala realmente em seu nome.

30 Citação em hindi.

31 Nityagopal Sen: ver o Diálogo 1, nota 45. Lembremos que se trata de um discípulo de temperamento místico, mas que não pertence ao círculo dos íntimos.

32 Nityagopal fala numa linguagem entrecortada, afetando talvez uma atitude infantil.

33 Literalmente, “duas notas da escala”. Nityagopal ficava muitas vezes em estado extático. Para SR, a abundância de manifestações externas mais revela um “pequeno recipiente” (nota 7).

34 Taraknath Ghoshal, o futuro Swami Shivananda.

35 “O homem nu”, ou seja, Tota Puri, o Mestre de SR em Vedanta.

36 Isso corresponde por um lado aos modos tamas e rajas, e por outro ao modo sattva, necessários todos os três para a marcha do universo.

37 Advaita, o monismo absoluto: “tudo é Um, o múltiplo é ilusão”.

38 Comparação já vista no Diálogo 16.6

39 Vemos pela insistência de SR ao longo dos Diálogos que essa doutrina tem sua preferência, mas Narendro (que se tornaria Swami Vivekananda), com um temperamento mais absoluto, sempre irá considerar o monismo como uma doutrina mais alta.

40 Uma lição que nos tem sido repetida incansavelmente desde o Diálogo 2.4. Naquela época Naren ainda tinha uma religião muito especulativa, atraída pela Vedanta pura.

41 Girish o trata como a um subordinado, donde a intervenção apaziguadora de SR.

42 Diálogo 2, nota 23.

43 A versão inglesa de M é mais cortante: “Agora mesmo ele o chamava de Deus encarnado, mas o Deus encarnado tem que se virar sozinho enquanto ele cuida de seus negócios”.

44 Esse verso é dirigido a Radha pelas gopis, suas companheiras.

45 Foi uma briga com Krishna que aborreceu Radha. Em sua tradução inglesa, M se pergunta aqui o que pode ter “ferido” Naren. Sugere que SR reconhecia assim o direito de Naren em rejeitar o avatar. No texto bengali essa idéia será longamente desenvolvida.   

46 Ver o Diálogo 5.6.

47 Como um discípulo diante de seu mestre.

48 A alusão a Gaur e Nitai, abaixo, sugere que se trata mais de uma citação que de um pedido direto a Naren.

49 Vemos que M começou a cantar, pelo menos quando está só.

50 M interpreta essa frase como uma visão mística; outros traduzem mehr Licht por “abram as venezianas”.

51 O comentário de M não é inteiramente exato. SR logo exigirá de Girish uma “procuração”, um abandono completo à vontade de Deus. E de fato Girish tomará mais tarde os votos de sannyasa sem marcas exteriores, ao mesmo tempo que os discípulos monásticos.

52 O dharma: religião, ordem e justiça ao mesmo tempo.

53 Trata-se de um aspecto da doutrina do avatar. Enquanto que a meta do homem comum é evitar o retorno a este mundo, o avatar vem acompanhado de um cortejo de almas “sempre livres” (ver no Diálogo 1.6 a imagem dos peixes na rede) que o seguem na terra para participar de seu Jogo (o grupo comporta mulheres também, mas estas quase não aparecem nos Diálogos). A frase “eles são Deus personificado” faz deles como que fagulhas desprendidas do avatar, mas não estamos certos de que se trate de uma doutrina bem definida. SR disse uma vez a M que achava tê-lo reconhecido, junto com Balaram, numa visão do cortejo de kirtan ao redor de Chaitanya.

54 Tradução francesa, La Colombe, Paris, 1956.  (dar outra publicação?)

* Original I.5, tradução inglesa 45.

1 Famoso também por sua generosidade, sua retidão e seu temperamento difícil; ele é descrito no livro de Shivanath Sastri Men I have seen.

2 O contato com SR não parece tê-lo mudado de maneira duradoura: encontramos no livro They lived with God de Swami Chetanananda (p.333) a seguinte frase: “em 1898, quando Sister Nivedita (a grande discípula inglesa de Swami Vivekananda) leu sua comunicação Kali, a Mãe no Albert Hall em Calcutá, o Dr. Mahendra Lal Sarkar fez algumas observações depreciativas a respeito da adoração de imagens”. O incidente, bastante violento, é relatado igualmente por Shivanath Sastri.

3 Já se falou de Ishan, com grandes elogios, no Diálogo 14.

4 Essa instrução a Ishan assemelha-se aos discursos para os “mundanos” dos Diálogos 1, 2 ou 5, e M não a retomou em sua própria tradução.

5 Do ponto de vista da reencarnação, os pais “não engendram” seus filhos, que desde o nascimento têm uma longa história para levar.

6 Janaka era rei de Videha, e videha pode significar “sem corpo”.

7 O texto diz simplesmente “são heróis”; “Narada e os outros” é um acréscimo de Swami Nikhilananda.

8 Isso não faz muito sentido. Após “o conhecimento” a tradução de M acrescenta “das obras de Deus”, que é mais aceitável. Inútil cansar a cabeça: o doutor está apenas tentando dar umas alfinetadinhas na bhakti.

9 Shivanath observa que SR pensa que jñana é masculino, mas trata-se de um neutro.

10 A tradução de M acrescenta: um louco não deveria ter permissão para entrar apenas  porque diz “Eu amo Deus”.

11 Essa pergunta está relacionada à sua vizinha “Ele é pessoal ou impessoal?” A idéia familiar no Ocidente de um Deus ao mesmo tempo pessoal e sem forma é relativamente desconhecida no hinduísmo.

12 Não se trata de uma tentativa para verificar a materialidade da imagem, mas de um “sinal” pedido a Deus.

13 Polidamente, SR coloca o doutor em seu lugar.

14 M acrescenta: “Não tenho simpatia por nenhuma cor. Prefiro o seu próprio gosto”.

15 Ver o Diálogo 5.5.

16 Aqui “o Absoluto” é colocado entre parênteses, em inglês, pelo próprio M.

17 Entre parênteses e em inglês no texto.

18 Ver o Diálogo 6.6.

19 Ver o Diálogo 6.7.

20 Para SR, perfeito hindu, o sentimento de casta, ou seja, a obediência ao seu próprio dharma, está relacionado a sattva.

21 Personagens do Ramayana, três meio-irmãos pertencentes ao grupo dos ogros (rakshasas). O primeiro é o raptor de Sita, o segundo um demônio muito forte mas sempre adormecido, o terceiro é um grande adorador de Rama.

22 Literalmente, “receber o darshan de Benares.

23 Faraday communed with Nature (Faraday comungou com a natureza): em inglês no discurso do doutor.

24 Mathematical formulas only throw the brain into confusion; os discípulos ficam boquiabertos diante da ciência do doutor, mas os trabalhos de Maxwell (que não era um filho da natureza) já têm dez anos no momento em que ele fala. O doutor representa um tipo meio cientista, como se pode encontrar freqüentemente.

25 Original inquiry.

26 n° 173 da tradução de Michèle Lupsa — a partir de um texto ligeiramente diferente.

27 Não sabemos quem foi Shantiram Singh. Swami Nikhilananda traduz como “um grande herói”.

28 Num diálogo do dia seguinte (não traduzido aqui) o doutor diz a M: “Ele deveria ter caracterizado Buddha como a compaixão encarnada, não como uma encarnação de Vishnu”. Talvez uma frase desse gênero esteja na origem da discussão seguinte sobre o avatar.

29 Que aparece nos Ramayana em linguagem corrente.

30 Um episódio célebre do Ramayana. O doutor discute a interpretação da epopéia, mas sem contestar a “historicidade” desta.

31 “Ciência”: em inglês bengalizado.

32 Em inglês.

33 Distribuíam as refeições ao meio-dia, evidentemente.

34 Mesma imagem que no Diálogo 16.6.

35 Uma soma colossal!

36 Imagem já vista várias vezes (cf. Diálogo 14, nota 34).

37 Karmanasa: “destruidor do karma”, isto é, da ação.

38 Ver o Diálogo 15, nota 36.

* Original I. 16, tradução inglesa 46.

1 Isso acarreta uma separação entre os discípulos que mais tarde se tornarão monges e os outros, menos firmes ou mais submissos a seus pais: Paltu, Purna, o jovem Naren, Bavanath... que permanecerão no mundo e não se tornarão “grandes navios”. Dizem, aliás, que por ocasião da doença de SR, M foi censurado por Vidyasagar por negligenciar os alunos e pediu demissão imediatamente, sem se preocupar com o futuro.

2 As a man, I have the greatest regard for him.

3 O doutor mistura o bengali e o inglês: actual loss e abaixo call e fee.

4 Encontramos Mahima nos Diálogos 13 e, sobretudo, 16.

5 God’s lower third, ou seja, o mais obscuro dos três modos (sattva, rajas e tamas).

6 Esta palavra deve ser pronunciada com o sotaque anglo-indiano. A atitude em questão é a devoção total dos discípulos para com seu guru.

7 Vijay deixara definitivamente o Sadharan Brahmosamaj para voltar ao hinduísmo, e tinha-se estabelecido em Dhaka como mestre espiritual independente. Os “brahmos” em questão talvez tenham seguido o mesmo caminho.

8 Latu e Narendro fazem parte do grupo dos “permanentes”, sobretudo Latu, que vela constantemente SR; Navagopal Ghosh é um discípulo casado, muito ligado a SR, assim como sua esposa; Bhupati aparece pela primeira vez.

9 Uma rúpia tem dezesseis anás, donde essas proporções.

10 Em princípio, um paramahamsa come pouco. Talvez haja também um pouco de implicância com a corpulência, presente ou passada, de Vijay.

11 O fato de chamar a Deus de “Brahman”, a menção do “novo caminho” no terceiro canto”, são características do Brahmosamaj e parecem indicar que esses cânticos são da autoria de Traylokya Nath Sanyal, o poeta e cantor do Brahmosamaj de Keshav, que assina “Premdas”. É possível que o segundo cântico tenha sido diretamente inspirado da narrativa feita por Ramakrishna de seu primeiro êxtase.

12 Esse poema está escrito em bengali arcaico ou arcaizante.

13 Um “sábio (rishi) real”, categoria inferior à dos brahmarshis mais adiante.

14 Ver Diálogo 17. 3.

15 Ver o Diálogo 17, nota 10.

16Laughing man” em inglês bengalizado, assim como “inquire” na resposta do doutor.

17 Um dos discípulos leigos de SR, Durgachoron Nag, exercia inicialmente a medicina tradicional; ao ouvir semelhante discurso, abandonou essa prática.

18 Ver o Diálogo 5.2.

19 Essa frase é estranha: contradiz a seguinte (Vijay primeiro) e por outro lado nenhum pandit foi mencionado.

20 O doutor diz em inglês natural, e abaixo display.

21 Dois grandes discípulos de Chaitanya.

22 Trata-se de um sacerdote da casa de Mathur Babu (Sejobabu), que residia no Kalighat, principal templo de Kali em Calcutá.

23 Guardian angel.

24 Naren parece banalizar um pouco o que Vijay, estupefato, considera como um desdobramento de SR. É uma das raras vezes em que os Diálogos de M mencionam um fato extraordinário.

* Original I.17, tradução inglesa 47.

1 Mais tarde Swami Abhedananda.

2 Parece que isso nunca se realizou.

3 Os Santals constituem um povo aborígene de Bengala, que permaneceu animista. A origem não-ariana das diversas deusas-mães parece uma teoria corrente, mas aqui a atitude do doutor expressa a rejeição do culto de Kali por muitos indianos “evoluídos”.

4 As palavras em itálico nesse diálogo estão em inglês no texto. Não se sabe ao certo o que se passa na mente do doutor, mas parece que sua desconfiança em relação à bhakti o faz dizer que essa luz não é de muito boa qualidade.

5 Ver o Diálogo 18.2.

6 Painter e art em inglês bengalizado.

7 Saratchandra Chakravarty: mais tarde Swami Saradananda.

8 Segundo os provérbios, os tecelões são pobres e pouco instruídos.

9 Bankim Chandra Chatterji, o mais célebre romancista de Bengala no final do século passado. Era patriota e fazia campanha para um retorno ao hinduísmo, ou melhor, contra a difamação sistemática do hinduísmo por parte dos missionários e intelectuais.

10 Esta cena é contada no Diálogo de 6 de dezembro de 1884, não traduzido aqui. Talvez Bankim tenha dito isso para se safar, com uma pirueta, de uma pergunta muito direta. Mas SR é demasiado verídico e demasiado ingênuo para segui-lo. Os Diálogos relatam um incidente semelhante com o grande poeta Michael Madhusudhan Dutt. Percebemos aqui as barreiras que separam SR dos intelectuais de Calcutá, mesmo os bem dispostos.

11 A história é um pouco ferina. Aparentemente um convite foi transmitido por M apesar de tudo, mas SR não pôde ou não quis ir.

12 Hari é Vishnu, Hara é Shiva, Gopala e Keshava são dois Nomes de Krishna. Quando se pronunciam esses Nomes à bengali, obtém-se aproximadamente os sentidos indicados.

13 Ver o Diálogo 14.3.

14 A tradução de Swami Nikhilananda acrescenta “no templo de Dakshineswar”.

15 Hriday, ou um jovem parente de SR chamado Dinu?

16 Mathur Babu (Sejobabu) pertencia à casta dos pescadores.

17 Cf. Mateus 10.29 “nenhum pardal cai... os cabelos de vossa cabeça estão contados...”.

18 O doutor está irritado e parece estar falando de maneira bem pouco polida.

19 Essa palavra aparece sempre em inglês, free will.

20 Girish tem uma experiência de libertino, refratário a qualquer moral, seduzido por Deus. Sua psicologia é do tipo augustiniano, A psicologia voluntarista, “pelagiana”, do doutor é para ele um trapo vermelho. Mas saber se os desejos vêm de Deus, ou do karma (ou da bomba freudiana que pulsa por baixo) é outra história.

21 Muitos sadhus buscam o “êxtase” das drogas.

22 Light, heat, duty, em inglês bengalizado.

23 Inclinação e livres (abaixo) estão em inglês bengalizado: inclination e free.

24 SR vai dar razão ao doutor de duas maneiras. Primeiramente, o prazer que sentimos em fazer nosso dever não torna “interessado” o seu cumprimento. Depois, a intenção do doutor é reta: ele procura agir bem, e mesmo que os motivos estejam misturados, ele conseguirá purificá-los com a ajuda de Deus.

25 Mathur Babu, segundo os biógrafos.

26 O termo empregado é vulgar, e devemos lembrar o que Kshirod afirma sobre a “trivialidade inocente” da linguagem de SR.

27 Para seus leitores americanos, Swami Nikhilananda traduz I rushed out of the room, mas nada me parece indicar a pressa no texto bengali. Este sugere a inocência e não a perturbação.

28 A libertação deixa ficar certas conseqüências materiais de um karma apagado.

29 A atitude de SR sobre a “questão da graça” é sempre equilibrada.

30 Hemkar, um juiz auxiliar. Ele conhecia bem SR e dizia isso para provocá-lo.

* Original 18, tradução inglesa 47.

1 O original traz cinco cânticos, mas só mantivemos dois. O primeiro, de Trailokhya Nath Sanyal, ilustra de maneira admirável a mistura de confiança e terror que impregna o culto de Kali.

2 Como no diálogo anterior, os trechos em itálico estão em inglês no texto.

3 O irmão de Rama.

4 Ele não consegue mais cantar.

5 Diálogo 2.6.

6 Parvati, esposa de Shiva.

7 O próprio SR, em todo caso, no Diálogo 3.3.

8 Um pequeno provérbio rimado omitido aqui. Na tradução de Swami Nikhilananda: When shall I be free? When “I” shall cease to be (Quando serei eu livre? Quando “eu” deixar de existir).

9 Diálogo 16, nota 47. O “corpo sutil” se separa do “corpo grosseiro” quando da transmigração, ou conforme a vontade de certos yoguis, donde a pergunta seguinte.

10 Segundo a tradução de M, de maneira precisa, manas corresponde aos sentimentos e à vontade; buddhi, ao intelecto; ahamkara, ao sentido do eu; chitta, à memória.

11 Com furúnculos, não com mulheres infiéis!

12 A tradução de Swami Nikhilananda acrescenta que esta foi fundada pelo Dr. Shorkar.

13 But do not worship him as God.

14 O texto e a tradução de M não indicam que o doutor se prosterna diante de SR e toca-lhe os pés com a testa (como o diz Swami Nikhilananda, talvez de acordo com outra fonte). A saudação tradicional às pessoas respeitadas (pais, avós, guru) consiste em inclinar-se, tocar-lhes os pés com a mão direita e depois a própria fronte.

15 God-like man.

16 Literalmente, “me bater com os sapatos”, um tratamento considerado muito humilhante, já que os sapatos são sujos, e portanto impuros.

17 Não sei se devemos admirar M como repórter ou como diretor de teatro por esse diálogo saboroso em que o doutor revela seus sentimentos com o pretexto de ocultá-los.

18 At least out of pity for your friends.

19 My feelings are worked up. Abaixo I shed tears in solitude.

20 We offer to him worship bordering on divine worship.

* Original III.24, tradução inglesa 49.

1 Shrishrima, ou seja, Sarada Devi. Ela prepara a comida do Mestre, ocultando-se, segundo o costume, dos olhares dos discípulos homens, o que lhe traz extremo desconforto.

2 Shoshi (Sashibhushan Chakravarty), particularmente devotado ao serviço do Mestre, tomará mais tarde o nome de Swami Ramakrishnananda.

3 Todos os discípulos enumerados, assim como Tarok e Gopal (o mais velho) farão voto de renúncia total após a morte do Mestre, mas nada está decidido ainda.

4 Também chamado Gopal mais velho, que viria a ser Swami Advaitananda; quanto ao jovem Gopal, parece não haver mais notícias suas após a morte de SR.

5 Ainda haverá melhoras em abril, e conversas com o doutor e outros.

6 A palavra está em inglês.

7 Essa atitude será também a de Sarada Devi, a Santa Mãe, esposa de SR, em seu próprio papel de mestre espiritual.

8 A cunhada de Radha.

9 Segundo uma nota de Swami Nikhilananda, Chaitanya é considerado um avatar simultâneo de Krishna e Radha. Mas a frase de SR basta-se a si mesma.

10 O episódio é contado num diálogo notável, não traduzido aqui.

11 Em Bengala, os bauls são menestréis místicos independentes, hindus ou muçulmanos, homens ou mulheres, que possuem um tesouro de cantos religiosos e que influenciaram Tagore de modo particular.

12 Na tradução de M esse trecho está um pouco diferente, com alusões mais explícitas ao Cristo.

13 O grande filósofo da Vedanta não-dualista (Advaita).

14 Ver o Diálogo 8.3.

15 O primeiro canto está em sânscrito.

16 Lembremos que Shyam (Shem), “o escuro”, é um outro Nome de Krishna e que a escura árvore tomal é seu emblema.

 

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